Reforma Política: Sem Participação Popular não há Mudança Possível

Por Jonas Pinheiro

É quase unanimidade entre todos que discutem política no país que o Brasil precisa urgentemente passar por uma Reforma Política. Este cenário faz da pauta um objeto de disputas em que diversas propostas surgem, algumas com intenções de manter o poder nas mãos dos mesmos grupos que historicamente compõem a elite econômica e política brasileira: um perfil majoritariamente formado por homens brancos, ricos, heterossexuais e conservadores. Desta forma, um dos principais desafios para as populações chamadas de minoritárias (justamente por não ocupar estes espaços de poder) é forjar formas de participação política em um sistema estruturalmente desigual.

 

As propostas debatidas no Congresso 

Um dos principais pontos debatidos acerca da Reforma Política foram às formas de financiamento de campanhas eleitorais. Em 2015 o Supremo Tribunal Federal proibiu que empresas doassem para os candidatos, além de criar um teto de gastos, numa tentativa de inibir a prática de Caixa 2. O financiamento passou então a ser feito por pessoas físicas. Em 2017 foi criado pelos parlamentares o Fundo Eleitoral, um financiamento público distribuído para os partidos de acordo com o tamanho da bancada no Congresso, o que reforça as siglas e políticos que já estão no poder. Além disto, há o fundo partidário, uma verba para manutenção dos partidos, mas que também pode ser usada em parte para campanhas; e o autofinanciamento do candidato, o que favorece os candidatos mais ricos.

Veja outros projetos e leis que propõem alterar as lógicas atuais do sistema político brasileiro:

Clausula de Barreia: a PEC aprovada em 2018 tem o intuito de diminuir o número de partidos e limita o acesso ao Fundo Partidário e ao tempo gratuito de TV e Rádio de acordo com o resultado nas eleições anteriores. A PEC foi implementada progressivamente a partir deste ano, e já atingiu 14 partidos nesta última eleição. A proposta enfraquece os partidos novos e pequenos, não dando espaço para que surjam novas alternativas.

Voto Distrital: Atualmente o modelo pelo qual os parlamentares são eleitos é o voto proporcional, cada partido neste sistema tem direito a números de cadeiras de acordo com o quoeficiente eleitoral (a divisão entre votos válidos e cadeiras disponíveis) atingido. Com a proposta os estados seriam divididos em distritos de acordo com o número de vagas disputadas, cada distrito elegeria um deputado. Na Bahia, por exemplo, seriam 63 distritos. Há variações do sistema, como o distrital misto, em que metade das vagas seria escolhida de maneira proporcional e a outra metade pelo sistema distrital. No entanto, a variação mais defendida hoje pelos deputados é o chamado distritão, em que cada estado constituiria um distrito. Efetivamente esta proposta apenas acaba com o atual sistema proporcional e os deputados mais votados se elegeriam. Em agosto o presidente da Câmara Rodrigo Maia (DEM – RJ) sinalizou que se houver consenso o voto distrital misto pode ser implementado ainda em 2020, para isso teria de ser aprovado até o fim deste mês. Junto com a proposta do distrital misto, que funcionaria em cidades com mais de 200 mil habitantes, figura a proposta de lista fechada em municípios menores, nela os eleitores não escolheriam diretamente os vereadores e votariam em listas previamente definidas pelos partidos. O número de cadeiras permaneceria com à proporção que existe hoje no sistema de quoeficiente eleitoral.

Parlamentarismo: A proposta, que chegou a ser defendida por Michel Temer (MDB) em 2017, propõe uma mudança no sistema de escolha do poder executivo. Com ela, escolheríamos os parlamentares e eles escolheriam o chefe do executivo, um primeiro ministro comum em alguns países europeus. Tal sistema deixaria nosso sistema ainda menos participativo.

A grande questão, no entanto, é que estas propostas não alteram efetivamente as estruturas do sistema político. Enquanto não se pensar em maneiras de implementar a participação e representatividade política do povo brasileiro, as estruturas de poder irão permanecer intactas e a crise de legitimidade que acomete o país hoje permanecerá. Uma das possíveis soluções apontadas para solucionar esta questão é o uso de referendos e plebiscitos para as decisões políticas, algo já previsto em lei, mas que depende dos parlamentares para ser aplicado. Uma alternativa neste sentido foi a PEC das Cadeiras Negras, proposta pelo então deputado federal negro baiano Luiz Alberto (PT) em 2011. O projeto propunha uma reserva de vagas para pessoas de acordo com o último censo demográfico. Rejeitado por políticos tanto da esquerda quanto da direita o projeto foi engavetado após ser aprovado pela Comissão de Justiça e Cidadania da Câmara.

 

Participação política e representatividade

            Apesar de ser maioria entre a população, pessoas negras (formada por pretas e pardas) e mulheres vivem um cenário de sub-representação quando o assunto é a participação na política institucional.

Apesar disto…

Infográfico: Revista Afirmativa 2019

 

Para a ativista baiana Samara Braga este cenário de pouca representatividade tem relação com a questão cultural que vê no homem branco a figura de poder, uma herança do escravismo e colonialismo. “Esse sentimento de colonizado ainda persiste apesar de tudo. É mais fácil a pessoa simpatizar com a imagem de um homem branco de meia idade, do que com uma mulher negra, um homem negro ou uma mulher trans, um homem trans”, comenta Samara, que em 2016 se tornou a primeira pessoa transgênero a concorrer a um cargo executivo no Brasil. Na ocasião, a política negra foi candidata à prefeitura de Alagoinhas (BA) pelo PSOL, obtendo 269 votos (0,36% do total), numa candidatura com poucos recursos financeiros. Ela avalia que 2016 foi um divisor de águas para a participação política da população trans, e comenta que vê um futuro promissor sobretudo com a eleição de Erika Malunguinho (PSOL), deputada estadual eleita em São Paulo: “Acho que são as portas se abrindo e nossa própria comunidade começando a acordar para a necessidade de se inserir lá dentro para ter realmente representatividade nesses espaços, afinal de contas todo lugar é nosso lugar”. Outras duas mulheres trans foram eleitas em 2018 em mandatos coletivos: Erika Hilton, uma das nove deputadas da Bancada Ativista em São Paulo, e Robeyoncê Lima codeputada das Juntas, em Pernambuco.

Foto: Reprodução

“Nós precisamos que cada vez mais pessoas que representam as minorias comecem a despertar para o seu ‘eu político’. Botar a cara no sol, como a gente costuma falar”

Samara Braga, primeira transgênero candidata a um cargo do executivo no Brasil

Para o integrante negro do PSOL, Hamilton Assis, um cenário de maior representação política perpassa por furar os “bloqueios” das grandes mídias. “Isso será fundamental para alterar a representatividade dos negros e negras no Congresso Nacional e na política brasileira, que historicamente nos invisibilizou e eu sou a prova disso”, comenta o baiano que já foi candidato a vice-presidente em 2010, a prefeito de Salvador em 2012 e a senador em 2014. “Neste sentido considero as mídias alternativas um importante caminho para viabilizarmos esta possibilidade”, aponta o militante após agradecer o convite para entrevista, o que não costuma acontecer em outros meios. O político cita também a questão de classe e o racismo estrutural brasileiro, que nega aos negros e periféricos à possibilidade de acesso aos espaços de poder.

No entanto, ser negro, mulher, trans ou indígena, não garante necessariamente que estes políticos estejam alinhados com as pautas dos movimentos sociais que reivindicam direitos para estes grupos. Exemplos não faltam, o vereador por São Paulo, Fernando Holiday (DEM), é um dos casos mais emblemáticos. Negro e gay, o político que ficou conhecido por fazer parte do Movimento Brasil Livre (MBL), repudia ambas as pautas as categorizando como “vitimismo”. O caso mais recente que põe em cheque essa questão da representatividade é o do deputado Hélio Negão (PSL), ou Hélio Bolsonaro (nome usado em campanha). Eleito deputado federal, o político negro é um dos principais aliados do presidente Jair Bolsonaro, declaradamente contra as pautas das minorias representativas e que constantemente dá declarações de cunho racista.

Para Hamilton esse processo não é de cooptação e sim uma escolha política destes agentes. “Os negros e negras que se elegem ou militam em partidos de direitas o fazem por opção política, porque consideram que suas estratégias ou a perspectiva desses partidos contemplam as suas aspirações de sociedade”, assinala enfatizando que para mudar este cenário é preciso se inserir na disputa narrativa para que se possa figurar como uma opção para aqueles que cedem ao discurso da direita.

Hamilton Assis na Greve Geral pela educação em 14 de Junho Foto: Marcos Musse

“Se não entendermos esse processo não saberemos como reaproximar-nos do nosso povo e ao ignorarmos as suas motivações, poderemos jogá-los de vez nas mãos da direita”

Hamilton Assis, candidato a vice-presidente em 2010 pelo PSOL

 

E a esquerda

Apesar de teoricamente estar alinhada às pautas das populações excluídas socialmente, historicamente a esquerda chegou a negligenciar as demandas destes povos. Relatos como a da militante Lélia Gonzales no livro Lugar de Negro e em artigos publicados na década de 80 apontam para a dificuldade de conseguir apoio político para as questões negras. Mais recentemente a também militante Sueli Carneiro comentou que “entre direita e esquerda, nós somos negros”. Nas eleições do ano passado, o candidato a deputado federal negro pelo PSOL de São Paulo, Douglas Belchior, reclamou da distribuição de recursos e da concentração destes em candidaturas brancas. O deputado teve 46.026 votos e chegou a comemorar a eleição, no entanto após uma mudança no quoeficiente eleitoral com o total de urnas apuradas foi retirada a sua vaga. Outra candidata a reclamar publicamente do partido foi Duda Salabert, primeira candidatura transexual para o senado. Atualmente no PDT, a política anunciou desfiliação em abril deste ano devido à “transfobia estrutural”.

Apesar disto, Samara Braga, hoje no PC do B, comenta que nunca sofreu discriminação dentro do PSOL, e que se filiou ao partido justamente por se sentir representada. Para ela, estamos em meio a um processo que é novo e é preciso se atentar para isso. “É uma questão de tempo para as coisas se adequarem, inclusive dentro destes partidos. Até porque, estas pautas são muito recentes e não eram sequer discutidas tempos atrás. Então é importante a gente também entender que há um processo de adaptação, e que está avançando apesar dos pesares”.

Para Hamilton, estes fatos acontecem porque os partidos de esquerda em geral baseiam seus métodos em experiências europeias, o que fez com que a maioria privilegie a perspectiva de classes e ignore outras opressões. O político enfatiza que, no entanto, a luta dos movimentos negros em todo mundo têm alterado essa concepção. “No caso brasileiro, sem sombra de dúvida o movimento negro foi fundamental para isso, mas a sua interferência e participação nos espaços de direção dos partidos ainda é muito pequena. Por isso precisamos tomar partido e intervir decisivamente para alterar e qualificar a ocupação desses espaços”.

 

Mandatos coletivos surgem como opção

Quando foi convidada para fazer parte da chapa que iria compor a Bancada Ativista, Chirley Pankará ficou meio receosa, mas ainda assim participou das reuniões iniciais mesmo sem imaginar que conseguiria vencer o pleito. Paralelamente fazia a seleção de Doutorado em Antropologia Social da USP,  sendo da área de educação também não imaginou que passaria. Hoje a indígena, que se mudou para São Paulo 20 anos atrás vinda da aldeia que carrega em seu nome e que fica no semiárido pernambucano, é doutoranda na USP e co-deputada da mandata coletivo da Bancada Ativista. Representada por Monica Seixas (PSOL), fazem parte do coletivo também: Anne Rammi, Claudia Visoni, Erika Hilton, Fernando Ferrari, Jesus dos Santos, Paula Aparecida e Raquel Marques. O movimento, que se identifica como pluripartidário, já havia apoiado à candidatura de Sâmia Bomfim, hoje deputada federal, para Câmara de Vereadores em 2016, e na eleição de 2018 foi eleita com 149.877 votos para Assembleia Legislativa de São Paulo.

Apesar de ser uma estratégia informal, a lei eleitoral permite apenas um nome e foto na urna, os mandatos coletivos tem se mostrado uma tendência nas últimas eleições e uma opção para as dificuldades das minorias representativas em sua inserção na política institucional. Além da Bancada Ativista, em 2018 foram eleitas a candidatura Juntas, em Pernambuco, formada pelas mulheres feministas: Joelma Carla, Katia Cunha, Robeyoncé Lima e Carol Vergolino. Em Minas Gerais uma experiência semelhante une as esferas municipal, estadual e federal. A Gabinetona, iniciada em 2017, é representada na Câmara Municipal de Belo Horizonte por Cida Falabella e Bella Gonçalves, na Assembleia Legislativa por Andréia de Jesus e no Congresso Nacional por Áurea Carolina.

Para Chirley Pankará, que também é militante de movimentos sociais dos povos tradicionais e diretora há 8 anos do Centro de Educação e Cultura Indígena em São Paulo, a iniciativa é um desafio, mas tem se mostrado positiva e importante. “Há um apoio do coletivo, que é diverso. A gente dialoga toda segunda-feira e está funcionando. Só alerto que os mandatos coletivos devem ter uma linha de pensamento que se relaciona. Na foto dos deputados no mandato coletivo estão 9 pessoas, dissonante em relação a outros mandatos. Eu creio que é uma boa alternativa e deve crescer a partir daqui”, comenta a co-deputada, que diz que hoje ter vontade de montar um mandato coletivo de indígenas.

Foto: Reprodução

“Os povos indígenas já têm 519 anos de desafios né? É preciso unir forças e ocupar espaços dito de poder”

Chirley Pankará, co-deputada da Bancada Ativista

Para Hamilton Assis, apesar de não ser uma experiência nova já que no período da ditadura e da redemocratização houve candidaturas e mandatos coletivos, no contexto atual eles se configuram como uma opção extraordinária. “Acho que as candidaturas negras e que sofrem opressões deveriam continuar a aprofundar essas experiências”. Opinião compartilhada também por Samara Braga, que acredita que o povo brasileiro precisa fazer melhor uso da democracia. “Acho até mais democrático do que um mandato de uma só pessoa, podendo unir forças e pensamentos a gente consegue traçar caminhos mais elaborados e mais sólidos para o futuro”, comenta.

É notório que a democracia brasileira nunca conseguiu ser plena para as populações excluídas socialmente, mesmo que com direitos assegurados pela Constituição Cidadã de 1988. Por isso é preciso uma mudança neste sistema que permanece a privilegiar determinados setores da sociedade. Cabe a nós resistirmos e criarmos formas de interferir neste jogo.

 

Este texto faz parte da série de reportagens da Revista Afirmativa “Reforma Política, e nós com isso?”, que debate acerca das políticas que interferem diretamente na vida dos segmentos populacionais brasileiros socialmente negligenciados. Entenda mais clicando na imagem.

Ilustração: Annie Ganzala.

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