Cova Rasa: Descoberta de cemitério de pessoas escravizadas em Salvador (BA) traz à tona uma história de sangue e resistência

Como a descoberta de um cemitério de pessoas escravizadas em Salvador pode ajudar a desenterrar um passado fundamental para a memória da cidade

Por Matheus Souza

Mitos e lendas sobre cidades perdidas permeiam as civilizações desde os tempos remotos. Atlântida, El Dorado, Pompéia. Todos conhecem o fascínio causado pelas histórias de grandes e avançadas civilizações, que, após uma era de prosperidade e avanços encontram a inescapável ruína, como El Dorado, a cidade de ouro perdida da América do Sul que teria sido destruída com a chegada dos invasores espanhóis.

Tróia, por exemplo, era considerada apenas uma lenda oriunda da tradição oral do povo grego, descrita no poema de Homero, até que em 1873 o arqueólogo alemão Heinrich Schliemann descobriu sob o solo de Hisarlik, na Turquia, as ruínas da afamada cidade.

Para além da mitologia, tal como em El Dorado, os europeus em sua sanha colonizadora, destruíram e assassinaram povos e cosmologias formidáveis, que hoje adormecem sob o solo esquecidos aos que caminham alheios logo acima. Em Salvador (BA), uma recente descoberta sobre um cemitério de escravizados enterrado sob um estacionamento no centro da cidade traz à tona uma rica  história de batalhas sangrentas, conflitos por liberdade, justiça e poder, com vilões traiçoeiros e heróis de bravura inestimável. Uma Salvador que muitos preferem que permaneça invisível e soterrada.  

Após a destruição de Tróia, segundo o mito, Eneias – o herói troiano – conseguiu fugir da cidade tomada pelos gregos, e com alguns sobreviventes fundou, na região da Península Itálica, a cidade de Lavínio, que mais tarde viria a se tornar Roma. 

O nome da capital italiana é bem conhecido entre os soteropolitanos – por sinal, um termo de origem grega que quer dizer “aquele que é de Salvador” – já que a expressão Roma Negra é comumente utilizada para se referir a capital baiana. Apesar da origem dessa alcunha não ter nada haver com as epopéias romanas, o mito de Tróia e a sua ligação com a construção de Roma servem uma base interessante para falar da descoberta arqueológica recente na cidade, afinal, assim como a capital italiana, a Salvador atual foi construída sobre os escombros de um passado violento. 

No último dia 14 de maio, começou no estacionamento da Pupileira, localizado no bairro de Nazaré, uma escavação com o objetivo de localizar e recuperar os corpos de cerca de 100 mil pessoas escravizadas e marginalizadas, no que pode ser o maior cemitério com essas características da América Latina. A data de início não foi escolhida por acaso, em 1835, nesse mesmo dia, quatro homens negros africanos, que no Brasil receberam os nomes de Jorge, Pedro, Gonçalo e Joaquim, foram fuzilados na área onde hoje é o Campo da Pólvora. Eles foram mortos por terem participado da Revolta dos Malês, uma das principais insurgências da história do Brasil, cujos heróis podem estar enterrados no local recém descoberto.

A pesquisa sobre o cemitério tem início quando a urbanista e doutoranda em arquitetura, Silvana Olivieri, junto com o professor Samuel Dias, elaboram um dossiê a partir da sobreposição de mapas históricos do período dos séculos XVIII e XIX. Isso se somou a indícios registrados na literatura e documentação histórica da cidade, apontando para a possível existência de um cemitério na região do antigo Campo da Pólvora, na época localizado onde hoje é o estacionamento da Pupileira. Segundo o estudo, o local serviria para enterramento de pessoas escravizadas e marginalizadas na sociedade.

A partir desse levantamento de fontes etnohistóricas, Silvana junta-se ao grupo Arqueólogos,  uma empresa de pesquisa e consultoria arqueológica com sede em Salvador, responsável por elaborar e financiar a escavação. Após diversas tentativas de obter uma autorização para realização da pesquisa arqueológica no local junto ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), em março deste ano, após recorrer ao Ministério Público da Bahia (MP-BA), a equipe finalmente conseguiu firmar o Termo de Cooperação Técnica com a Santa Casa – proprietária do terreno do estacionamento – para liberação da escavação.

“Em julho de 2024 eu e Silvana acabamos nos encontrando durante um evento de arqueologia em Salvador, onde ela me apresentou os dados sobre a pesquisa a respeito do cemitério, e a partir disso nós firmamos uma parceria e passamos a seguir juntos pela busca da autorização para realização da escavação”, nos conta Jeanne Almeida Dias, arqueóloga responsável por elaborar o projeto da escavação.

A equipe técnica envolvida na localização das ossadas contou com 10 especialistas em arqueologia. Dentre os parâmetros estabelecidos no Termo de Cooperação Técnica, constava que o prazo para realizar a pesquisa no local seria de apenas 10 dias. Jeanne explica que, pelo tempo apertado e por questões éticas, optou-se por não realizar exumação ou coleta dos indivíduos encontrados. “[As ossadas] são uma materialidade que trazem consigo diversas questões relativas a aspectos simbólicos e sensíveis dentro da sociedade, por isso entendemos que a coleta e encaminhamento desses indivíduos precisam de um diálogo maior com a população baiana.”

A partir da positivação de duas dessas intervenções, isto é, ao confirmar a existência do cemitério com a localização de duas amostras de corpos enterrados no local, a pesquisa foi dada como encerrada. A finalização prematura da escavação se deve a dois fatores: as fortes chuvas que aconteceram durante os dias de trabalho, que encharcaram o solo e dificultaram ainda mais a operação; e ao fato de que as ossadas foram encontradas à cerca de 3 metros de profundidade, sob um solo já úmido e muito ácido, o que tornou o material extremamente frágil para coleta, já que os corpos foram enterrados empilhados.

O MP-BA solicitou que a área onde foi realizada a escavação, equivalente a quatro vagas de veículos, não volte a ter a função de estacionamento. O local foi denominado como Sítio Arqueológico de Importância e recebeu o nome de Cemitério dos Africanos em sua Ficha de Registro de Sítio. O material ósseo coletado, juntamente com os demais fragmentos encontrados no local, seguem para o laboratório da Arqueólogos para análise. O Relatório final será entregue à Santa Casa, IPHAN e MP. A Santa Casa sinalizou que irá realizar uma audiência pública para discussão das próximas etapas.

O achado do Cemitério dos Africanos não é único, e denota o importante papel histórico da cidade dentro da manutenção da herança dos povos tradicionais que habitavam estas terras. Em 2020, por exemplo, foi descoberta uma urna de sepultura Tupi-guarani do período pré-colonial durante as obras de requalificação na Avenida Sete de Setembro.. O professor, pesquisador e doutorando em História Social, Clíssio Santana, brinca que “em qualquer lugar que for escavado no Centro Histórico de Salvador, será encontrado registro de outras sociedades, principalmente elementos pertencentes às comunidades africanas”.

O professor acredita ser possível a existência de outros cemitérios como o encontrado, explicando que, como não havia leis para sepultamento até 1835, nem tampouco cemitérios públicos, pessoas escravizadas eram sepultadas de maneira improvisada e sem nenhum tipo de registro em cemitérios como o da Pupileira. “É um solo arqueológico que silencia uma história afro-brasileira e indigena, e acredito que é através da arqueologia e das pesquisas históricas que podemos revelar e recontar a história dessas populações que foram apagadas ao longo dos séculos”, complementa. 

Já Jeanne aponta que, com a exclusão do povo negro do processo de narrativa histórica escrita, a arqueologia surge como uma ferramenta de memória permanente da influência dos povos da África na Bahia. “A memória afetiva, a memória da pele não tem como ser apagada. É um processo material permanente. Quando a escrita nos é negada, a arqueologia surge como grande potência para trazer essas informações e preencher lacunas. É isso que espero desse trabalho”. A pesquisadora negra, lembra que há várias lacunas na história geradas pelos processos violentos que os grupos de africanos sofreram. “Está na hora da arqueologia resgatar essas informações de oralidade que foram apagadas”, complementa Jeanne.

A historiadora, professora e mestra em Educação e Contemporaneidade, Luana Soares, nos conta que, tanto a descoberta do cemitério de escravizados, quanto a da urna indígena e tantas outras, “ expõe uma história de morte e de violência de uma colonização que não assegurou a dignidade e o sepultamento dessas pessoas de maneira apropriada, respeitando suas crenças e com o devido cuidado”.

Luana finaliza afirmando que, em tempos de revisionismo histórico e negação da verdade como os que estamos vivendo, descobertas como essa podem fomentar o interesse pelo assunto na Bahia e incentivar a proteção a esses sítios arqueológicos. “Essa relevante descoberta pode impulsionar a pesquisa sobre a escravidão e seus crimes na Bahia, além de promover a preservação do patrimônio material do Centro Histórico, buscando impedir a devastação e a gentrificação que têm afetado a região.”

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