“A Argentina não é um país branco”: como séculos de apagamento nas estatísticas demográficas consolidaram o mito da homogeneidade racial no país

A narrativa de uma nação constituída essencialmente por herdeiros da imigração europeia se consolidou ao ponto de o primeiro censo demográfico a contabilizar raça/cor em todos os questionários ter acontecido em 2022

Por Andressa Franco

O jogo de volta das oitavas de final da Copa Libertadores da América 2024, entre Atlético-MG e San Lorenzo, no dia 20 de agosto, como já é esperado quando equipes brasileiras e argentinas se enfrentam, chamou atenção para a preocupação com o racismo nos estádios.

Na ocasião, tanto o San Lorenzo, quanto o Rosário Central, outra equipe argentina que enfrentou o Fortaleza pelas oitavas de final da Copa Sul-Americana naquela mesma semana, emitiram um comunicado através das redes sociais. Nele, foram listadas dicas para seus torcedores evitarem cantos e gestos racistas por serem “considerados crimes graves no Brasil”, ressaltando a possibilidade de prisão. O recado não foi muito efetivo, já que após o jogo em Belo Horizonte cinco torcedores argentinos do San Lorenzo foram levados à delegacia, suspeitos de cometer atos racistas e agredir policiais.

O que se destaca no alerta dos clubes, é que podem ser traduzidos como um conselho apenas para que seus torcedores não sejam penalizados pela lei brasileira, e não uma repreensão ao racismo como um crime de ódio. 

Acontece que a Argentina se entende como uma nação constituída essencialmente por herdeiros da imigração européia e branca. Uma narrativa estabelecida no final do século XIX e fortalecida no século XX, sobrevivendo até hoje, a ponto de a principal demanda dos movimentos afro-argentinos ser o reconhecimento no censo demográfico nacional.

Talvez uma declaração do ex-presidente argentino Alberto Fernandez ajude a sintetizar esse pensamento: “os mexicanos saíram dos índios, os brasileiros saíram da selva, mas nós argentinos chegamos dos barcos, barcos que vinham da Europa”. A frase foi dita em 2021, durante um evento com o premiê da Espanha. Logo, se “não há negros na Argentina”, como poderia o racismo ser uma preocupação dentro do país? 

Onde estão os negros na Argentina?

“Na Argentina as pessoas fenotipicamente negras chamam muita atenção”, a afirmação é de Denise Braz, no artigo “Onde estão os negros na Argentina?”, publicado pela Revista ABPN em 2018. Ela continua: “Algumas perguntas são bem invasivas, nada inocentes, nos tiram do sério. A primeira: ‘De onde você é?’. Esta pergunta não nasce da curiosidade simplesmente, ela nasce do mito equivocado de que não existem negros argentinos: portanto, aqueles que aqui estão são todos estrangeiros.”

Denise passou férias em Buenos Aires em 2012, onde viveu essa experiência. Em 2018, voltou para a capital argentina para fazer mestrado em Antropologia Social na Universidade de Buenos Aires (UBA), e hoje é doutoranda em Estudos Latinos Americanos pela Universidade do Texas, nos Estados Unidos.

Denise Braz fez mestrado em Antropologia Social na Universidade de Buenos Aires (UBA) – Imagem: Reprodução Redes Sociais

Em busca de responder à pergunta que dá título ao seu artigo, a doutoranda descobriu que os argentinos já têm essa resposta na ponta da língua, como ensaiadas desde a época escolar: “Morreram todos nas guerras”, “Não sobreviveram à epidemia de febre amarela” e “No país teve muita mestiçagem, com o tempo os negros foram desaparecendo”.

Em entrevista para a Afirmativa, Denise é categórica: a Argentina não é um país branco. “Se você viajar para outras cidades saindo de Buenos Aires vai ver um grupo de pessoas enorme que já são pardos, fenotipicamente falando. Mas eles vão falar que são brancos. Já em Buenos Aires e Sul da Argentina, que tiveram uma imigração italiana e alemã muito pesada depois da Segunda Guerra Mundial, realmente tem um grupo mais representativo de pessoas brancas.”

O argentino Guillermo Omar Orsi é professor da Universidade Comunitária da Região de Chapecó e doutor em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Ele reforça esse diferente entendimento do que de fato é ser branco, fenotipicamente falando, no país. 

“Nós tendemos a acreditar que pessoas com tons de pele mais escuros continuam sendo brancos e eles também se reconhecem como brancos. Acho que isso contribuiu com a sensação de desaparecimento dos negros”, afirma o professor, que é branco, e não teve colegas negros durante sua graduação na UBA.

Guillermo Omar Orsi – Imagem: Reprodução Universidade Federal da Fronteira Sul

Ele também ressalta que a imagem de Buenos Aires, onde está concentrada a maioria da população branca, acabou se refletindo como toda a experiência nacional. “O imaginário coletivo de Buenos Aires representa o país, e é o que o mundo observa com maior frequência. Então isso se sustenta, e se entende que a Argentina é branca”, completa.

O papel da educação no apagamento da história afro-argentina 

Estimativas dão conta de que, entre os séculos XVI a XIX, mais de 200 mil africanos escravizados chegaram a Buenos Aires e a Montevidéu, capital do Uruguai. Para efeito de comparação, o Brasil recebeu quatro milhões nesse mesmo período. Ainda assim, a Argentina tinha sua economia tão baseada na mão de obra escravizada quanto nós. 

Um censo realizado em 1778 apontou que cerca de um terço da população argentina era formada por afrodescendentes e africanos. Desse modo, embora a participação forçada como “linha de frente” nas guerras de independência e as epidemias enfrentadas por Buenos Aires no século XIX tenham tido um significativo número de fatalidades, Denise defende que não foram o suficiente para reduzir a zero a população negra do território.

Mas o tratamento dispensado a essa parcela da população, de fato, a afetou de maneira desproporcional. “Como a febre amarela matava muita gente, eles separavam os negros e brancos. Os negros foram para longe da capital. E ali eu acredito que houve um genocídio, porque não se teve o menor cuidado com as pessoas negras, eles cuidavam dos brancos. Obviamente, quem teve mais cuidado sobreviveu”, pontua a antropóloga. Como a população negra vivia majoritariamente em bairros mais pobres, com pouca infraestrutura e falta de saneamento básico, aumentou a vulnerabilidade à epidemia. Porém a antropóloga enfatiza que não morreram todas, como costumam sinalizar.  

Para ela, uma importante raiz da assimilação desses discursos pelos argentinos está na educação. O que se explica quando olhamos para Domingo Faustino Sarmiento, que é considerado o pai da educação da Argentina, e presidiu o país de 1868 a 1874.

Domingo Faustino Sarmiento

Sarmiento acreditava na superioridade da cultura europeia e via os povos indígenas e os afro-argentinos como obstáculos ao progresso da nação. Grande admirador da França, ele defendia a imigração europeia como um meio de “branquear” e melhorar a população. 

A cineasta Julia Cohen Ribeiro conheceu de perto essa educação. A jovem, filha de pai brasileiro e mãe argentina, nasceu e cresceu no Rio Grande do Sul até os 10 anos, quando se mudou para Buenos Aires, onde vive até hoje. “Sou afro-argentina porque construí minha identidade negra nesse país, que é muito particular porque ainda estamos lutando com a ideia de que aqui não existem pessoas negras.”

Julia concluiu o Ensino Fundamental e fez o Ensino Médio em escolas argentinas, e não recebeu nada em sua educação relacionado à população negra. “Nada. Nenhuma menção. Passa a noção de [que os negros são] um passado bem distante, mas sem desenvolver o porquê. É como os dinossauros, de um dia para o outro desapareceram”, compara a jovem, que teve apenas um outro colega negro em sua turma.

Julia Cohen Ribeiro é diretora de afroturismo na agência Lundarda Travel, em Buenos Aires – Imagem: Arquivo Pessoal

A cineasta também lembra dos diversos estereótipos e de como os afrodescendentes enquanto escravizados eram a única imagem reforçada no ambiente escolar. Além disso, nas peças escolares costumavam queimar rolhas para pintar o rosto das crianças brancas que atuavam como personagens históricos. Prática racista conhecida como blackface.

É sobre uma dessas histórias de personagens históricos não contadas nas escolas que Julia se debruçou através da produção de um documentário em 2020. “Maria Presente, a memória nas nossas vozes”, se dedica a reconstruir a história de María Remedios del Valle. Ela foi uma mulher negra que lutou nas Guerras de Independência da Argentina e foi reconhecida como Mãe da Nação, mas a despeito de sua importante contribuição nas batalhas, se viu obrigada a mendigar nas ruas de Buenos Aires no final da vida. 

María Remedios del Valle – Imagem: Divulgação

O curta foi o vencedor do Concurso Nacional de Documentários María Remedios del Valle: Capitana, Madre de la Patria, promovido pela Secretaria de Desenvolvimento Cultural. “Eu conheci a história de Maria Remedios já grande, a partir do contato com outras pessoas afro-argentinas. O ativismo foi a grande escola da minha vida”, frisa Julia, que integra o Kukily – Colectivo Artístico Afrofeminista Internacional. 

A heroína morreu em 8 de novembro de 1847. Em 2013, foi promulgada a Lei Nacional 26.852, que institui a data como “Dia Nacional dos Afro-Argentinos e da Cultura Afro”, e incorpora a data ao calendário escolar. Em maio deste ano, começou a circular na Argentina uma nova nota de 10 mil pesos com a imagem de María Remedios, e do General Manuel Belgrano, que a nomeou a capitã do exército.

Pela primeira vez no censo demográfico 

Um dos fatores aos quais o mito da homogeneidade racial branca argentina é atribuído, é a falta de dados demográficos atualizados e detalhados sobre a população negra no país. 

Em 1778, o censo somava 30% da população como africanos e afrodescendentes, porcentagem que se manteve nos censos de 1810 e 1837. No entanto, em 1887, houve uma queda significativa nesse número: 1,8%. O motivo da abrupta queda em apenas 50 anos, não se dá apenas pelas justificativas que estão na ponta da língua dos argentinos, mas pelo próprio censo ter alterado suas categorias étnico-raciais naquele ano.

Em seu artigo, “‘Não há negros na Argentina’: o mito da homogeneidade racial argentina”, Guillermo chama atenção para a pouca confiabilidade dos censos. Seja pelo não registro de raça/cor das pessoas, seja pelos recenseadores não visitarem bairros ou zonas pobres e de difícil acesso (onde a maioria da população era negra), e até mesmo devido à própria resistência de parte da população negra em ser recenseada, já que essa informação poderia servir para o recrutamento do exército.

Em sua tese, Denise defende o Censo como a construção política de embranquecimento mais eficaz do país. Ela explica que de fato houve uma estratégia política da Argentina para que os negros morressem nas guerras. Mas como “os negros ainda estavam lá”, recorreram então ao Censo para invisibilizá-los. 

“Você não passa 15 minutos com um argentino sem que ele fale do sobrenome italiano, alemão ou espanhol. Eles lutam pelo passaporte desses países, porque é uma prova de que são brancos. São pessoas que odeiam ter nascido em Latinoamérica e sentem que nasceram no lugar errado”, detalha.

A pergunta acerca da autoidentificação étnico-racial só retornou ao censo em 1994, no qual foram incluídos os indígenas e, em 2010, quando incluíram-se os afrodescendentes – mas apenas em 10% dos cadernos da pesquisa – que contabilizaram 143 mil afrodescendentes. Antes do censo de 1994 não havia a pergunta étnico-racial, porque para o Estado estava subentendido que a população argentina era integralmente branca. 

Para que a pergunta retornasse ao recenseamento mais de 120 anos depois, houve uma grande incidência de grupos afro-argentinos, que realizaram junto ao Instituto Nacional de Estatística e Censos um estudo em 2005, batizado “Prova Piloto de Afrodescendentes”. O levantamento estimou que o número de afrodescendentes estava entre 4 e 6% da população total do país, o que representa um total aproximado de dois milhões de pessoas.

“Se um grupo não está no censo, ele não existe para o Estado. Não tem como reivindicar política pública”, alerta Denise. O último censo argentino foi realizado em 2022. Pela primeira vez, a pergunta sobre autodeclaração afrodescendente esteve presente em todos os cadernos de pesquisa. Os resultados mostram que o país concentra 302.936 pessoas negras, mais que o dobro do último levantamento. Ainda assim, Denise observa que o número tem sido menosprezado pela sociedade argentina, que ainda vê o número como ínfimo.

A pesquisadora acredita que os números ainda não refletem a totalidade de afro-argentinos, em especial dado o período da coleta de dados, e o receio da contaminação por Covid-19. “O próximo vai ser ainda maior. O movimento negro tem feito um trabalho de consciência muito grande, ido à televisão, estado em espaços políticos, mudou o calendário escolar”, projeta. 

A disputa não está apenas em quantos argentinos são negros. Para Julia, uma preocupação é a negação da contribuição da cultura africana para a formação do país cuja capital é conhecida como Paris da América do Sul. O que também impossibilita o autorreconhecimento de muitos. Seja na dança, com o tango, que tem origem na milonga e no candombe, seja na culinária com o assado argentino, seja na própria linguagem castelhana, que também tem muitos africanismos.

“Tem muitas investigações para fazer, ainda não temos um museu de História Afro e faltam muitos livros para escrever. Mas muitas conversas já foram feitas. Acho que vamos ver a diferença em alguns anos”, finaliza.

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