CRÔNICA: Eu, mulher negra, me autodeclaro RAIVOSA!

E tomo por direto assim o fazer. Você não sabe o por quê? Vou tentar te explicar. Se imagine aí você, desde a infância, ser preterida em casa, na escola, com as outras crianças. Imaginou? Agora imagina uma adolescência de novos preterimentos, nenhuma referência nas mídias, nenhuma referência nas artes,

Por Sacha Aguiar Ventura* / Imagem: Fábio Vieira

E tomo por direto assim o fazer. Você não sabe o por quê? Vou tentar te explicar. Se imagine aí você, desde a infância, ser preterida em casa, na escola, com as outras crianças. Imaginou? Agora imagina uma adolescência de novos preterimentos, nenhuma referência nas mídias, nenhuma referência nas artes, nenhuma referência amorosa, nenhum modelo de cabelo, nenhum modelo de nariz, nenhum modelo de roupa. Conseguiu? Agora partamos para a idade adulta, você carrega todos estes traumas, não conseguiu ser aceita quando criança, não se achou quando adolescente e agora você precisa decidir quem você quer ser, como pessoa e como profissional.

Me diga aí, quem você escolheria? Se você, como mulher negra, não se achou dentro de nenhum padrão, em nenhum círculo social em que andou até hoje, quem você escolheria ser e onde você almejaria chegar? Escolheu? Não?! Desafiador, diriam os profissionais de relações humanas. Mas eu te digo mais, enlouquecedor. Digamos que você queira mudar esta realidade, então. Talvez você escolhesse ocupar os espaços onde no passado, não conseguiu se enxergar e queira se tornar um modelo pras próximas gerações. Nossa, mais desafiador ainda! Imagine você, mulher negra, sair de um papel de apagamento, para um papel de protagonismo?

Devagar, vamos por partes, então. Você decidiu que vai ocupar um espaço de visibilidade, alçar voos não antes alcançados, vamos agora para a universidade pública, utilizar um espaço reservado para os negros como parte de um sistema de reparação à dívida histórica que perdura há mais de 400 anos, você entrou para um curso com vagas concorridas, considerado de elite acadêmica, através do sistema de cotas. Uau, meus parabéns! Agora todos estão muito orgulhosos de você e você realmente sente como se pudesse alcançar qualquer altura neste voo. Até o primeiro dia de aula.

Os otimistas pensariam agora “Nossa, você precisa mudar este mindset!”. Será? Voltemos a nossa imaginação, o primeiro dia de aula. Você chega na universidade, cheia de expectativas e entra na sala de aula, quem serão seus colegas de classe pelos próximos quatro anos ou mais? Respondo-te, mais pessoas brancas. Sim, elas mesmas. Aquelas em quem você foi comparada e se comparou por todos estes anos. Tudo bem, tudo isto faz parte dos seus planos de ocupar espaços, sigamos. No decorrer destes quatro anos você é observada, sempre muito observada, mas não como protagonista, e sim como objeto de estudo. Você olha ao redor e só enxerga aquele tipo de olhar julgador e questionador que te perseguiu a vida toda, eu o chamo de olhar ‘quem te deixou entrar aqui?’. O.k., é só uma fase, o futuro te aguarda com coisas maiores e melhores.

Parabéns mulher negra, você conseguiu se formar com honrarias (apesar dos pesares), o próximo passo é o mercado de trabalho! Como você se sentiria?! Eu estaria ansiosa por iniciar esta fase, por construir uma carreira, por construir um nome, por ser independente! É hora de participar de processos seletivos e, óbvio, você buscou grandes empresas, seus planos de voo são grandes, não caberiam em uma empresa pequena. A distribuição de currículos correu bem e você já tem entrevistas marcadas, cabeça erguida e coluna ereta, você está preparada pra o que vier!

Ao chegar ao local da entrevista de emprego você se depara com um espelho do mundo, somente pessoas brancas, nada novo sob o sol, estariam os otimistas felizes agora?! É chegada a sua vez de ser entrevistada e você põe o melhor sorriso confiante que existe pra cumprimentar a entrevistadora branca, a conversa é tranquila, você tem experiência de estágios, tem bagagem acadêmica e com honras, está vestida de acordo com a ocasião, fala bem e tem postura, vai dar tudo certo!

E deu, você foi convidada a conhecer o possível empregador, a pessoa que poderá confiar no seu profissionalismo e com quem você compartilhará seu propósito de sucesso. De novo, apenas pessoas brancas, de novo, você já sabia disso, confiança! Ao cumprimentar o seu possível contratante, você percebe que ele te estuda e demora mais um pouco no seu cabelo, menos 10% de confiança. Durante a entrevista ele se mostra impressionado com seu currículo, mas deixa um comentário sutil sobre a cultura rígida de vestimenta da empresa, menos 10% de confiança, ao final ele indaga sobre sua relação com outras experiências profissionais e seu cabelo, menos 15% de confiança. Vocês se despedem com a promessa de um futuro contato e você vai embora com um déficit de 35% de autoconfiança.

Outras entrevistas decorrem quase como um ritual, outros locais, mesmos questionamentos e você termina a semana com um déficit de confiança bem maior. Tá tudo bem, o fim de semana está próximo, você pode tirar um tempo pra sair com os amigos e ver um relacionamento antigo (aquele tipo, que você não sabe como rotular), enquanto aguarda a tão sonhada ligação. Se todo mundo espera alguma coisa de um sábado à noite, porque você faria diferente?! Tudo combinado com os amigos, mas infelizmente o paquerinha não estava disponível, outro compromisso o impediu de encontrá-la, acontece, não é mesmo? Sim, acontece inclusive de você chegar na balada com seus amigos e dar de cara com seu relacionamento antigo (não rotulado), mas ele não está só, de mãos dadas há uma outra mulher com ele, uma mulher branca, você imaginaria isso? Pois é, vida que segue.

Desculpa, me perdi aqui nas lembranças (digo, imaginação) e esqueci de perguntar, você está conseguindo me acompanhar? Espero que sim, me empolguei na explicação e achei que estava contando minha própria história, imagine! Podemos voltar, então? Certo. Nova semana, velhas expectativas (os otimistas vibram!), nenhuma ligação sobre propostas de emprego. Tudo bem, há uma gama de outros locais disponíveis, desce mais uma rodada de currículos entregues, entrevistas com mulheres brancas e entrevistas com homens de meia idade brancos, héteros e cis (nada contra, até tenho amigos que são!).

Duas, três semanas, um mês, um déficit estratosférico na sua autoestima e você recebe uma ligação com as palavrinhas mágicas “temos uma proposta para você”. Senhoras e Senhores, é chegada a hora de pôr em prática aquele plano de ser a melhor possível dentro até mesmo do impossível e deixar sua marca neste mundo. Autoestima em 100% novamente (cadê o pôr do sol? Preciso aplaudi-lo.)! Até que você recebe a proposta, um salário bem menor que o de mercado, uma quantidade bem maior de responsabilidades e uma exigência do código de vestimentas: amarre os cabelos! Autoestima menos 100%. Exatamente como eles dizem, criem qualquer coisa, menos expectativas. Mas você precisa trabalhar e entende que todo mundo começa de algum ponto, você aceita a proposta.

Sucesso profissional é o seu novo nome, apesar de os olhares serem os mesmos. Lembra daquele olhar na universidade? (e em todos os outros lugares.) Aquele que chamo de “quem te deixou entrar aqui?”. Pois é, aparentemente algumas coisas te perseguem, não importa aonde se vá. Eu te pergunto novamente, por que será? Conseguiu pensar em algo?! Eu tenho algumas teorias em mente aqui, mas vamos seguir com nossa lógica. Imagine você, se dedicando ao máximo, a primeira a chegar e última a sair, vestindo a camisa da empresa, falando com orgulho da sua marca e tentando fazer amigos, afinal, ninguém consegue chegar ao sucesso sozinho. Você sempre expõe suas ideias e opiniões durante as reuniões, apesar de usualmente um colega te interromper, ou outro colega repetir o que você acabou de falar e receber mais atenção que você, mas talvez você não esteja se expressando de forma correta, não é mesmo?!

Só que não, anos se passam e você finalmente entende que ninguém ali vai te escutar, você já utilizou várias formas diferentes de se expressar e simplesmente nenhuma delas foi levada em consideração, a não ser que tenham sido repetidas por outras pessoas, brancas obviamente. A promoção, apesar de você bater metas e cumprir rigorosamente as regras, nunca chegou. Seus colegas de trabalho, nunca a escutam em reuniões ou posicionamentos profissionais, apesar de disfarçarem bem este hábito, mas sempre estão dispostos a curtirem uma balada com você, porque só agora isso te incomodou? Um ou outro relacionamento surgiu, mas nenhum durou, a maioria não passava de saídas esporádicas, muito poucas em público e isso está começando a realmente te incomodar.

Neste momento você se percebe um ser humano amargo, os pés no chão, impossibilitando de criar qualquer expectativa ou esperança de uma vida melhor. Você sente raiva, de nada em  específico, mas de tudo um pouco. Das circunstâncias, dos anos dedicados a causas que não eram suas, das noites dedicadas a amores que nunca foram recíprocos, das esperanças perdidas, dos gritos emudecidos.   “Quem sou eu?”, você se pergunta com frequência. Onde foi parar aquela mulher cheia de planos, aquela mulher que queria mudar o mundo e ocupá-lo plenamente? Eu te respondo, ela foi soterrada em déficits estratosféricos de baixa autoestima. Aquela mulher se tornou enraivecida, ela não se reconhece mais e odeia o mundo que a tornou assim e a si mesma, por não tê-lo impedido de torná-la assim.

Você me entende agora? Você é capaz de entender porque eu estou sempre com raiva? Você consegue perceber que eu tentei? Que tenho tentado lutar todo dia e todo dia o espelho do mundo tenta me mostrar que este não é o meu lugar? Você, que ousa me chamar de revoltada, de pessimista, de insatisfeita, como se isso me ofendesse, você é capaz de se imaginar por 30, 40, 50 anos revivendo esta realidade? Pois eu, mulher negra, a tenho vivido por séculos agora. E eu te desafio a viver na minha pele. Sim, você, pessoa branca. Sinta-se à vontade para vestir minha pele e vivê-la, assistirei com atenção você tentar se agarrar a positividade e ao sorriso pleno no rosto, enquanto é preterida, oprimida, hostilizada, objetificada e apagada. Você seria capaz?

 

*Bióloga e especialista em Gestão de Empresas e Negócios.

 

 

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