Jornalismo em Ação: Comunicação, Território e Resistência no Sul da Bahia

Por Richard Santos*

No dia 2 de março de 2021, a Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) inaugurou seu curso de bacharelado em Jornalismo com uma aula magna do professor Muniz Sodré. Idealizado para suprir a ausência de formação jornalística na região, marcada historicamente como um deserto comunicacional, o curso se consolidou como um espaço de formação crítica e inclusiva. Em 2025, com a primeira turma formada, o programa reafirma seu compromisso com a democratização da comunicação, priorizando estudantes da região e ampliando o papel da UFSB como agente transformador no território do Sul e Extremo Sul da Bahia.

A importância de tal marco, é porque consideramos a comunicação, por essência, um espaço de poder e disputa simbólica. Ela carrega consigo o potencial de construir narrativas, fortalecer identidades e provocar rupturas estruturais em sociedades marcadas por desigualdades históricas. No sul e extremo sul da Bahia, região rica em diversidade cultural e social, mas historicamente marginalizada no cenário educacional brasileiro, o curso de Jornalismo da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) nasce como resposta a um clamor urgente: democratizar o acesso ao conhecimento e formar jornalistas que sejam agentes de transformação social.

A criação da UFSB em 2013 marcou um ponto de inflexão na história da educação superior na região. Foi a primeira universidade federal a se estabelecer no sul e extremo sul baiano, um território composto por 48 municípios, abrigando uma população de mais de 1,5 milhão de habitantes. Antes dela, o acesso ao ensino superior público federal era uma realidade distante para grande parte dos jovens locais, principalmente aqueles oriundos de comunidades periféricas, indígenas, quilombolas e rurais. Com a UFSB, essa barreira começou a ser rompida, especialmente com a proposta pedagógica inovadora baseada em ciclos de formação, que amplia o acesso e cria trajetórias acadêmicas mais flexíveis.

No entanto, mesmo com a presença da universidade, a oferta de cursos específicos em áreas estratégicas, como a Comunicação, ainda era limitada. A região, até então, contava basicamente com o curso de Comunicação Social com habilitação em Rádio e TV, oferecido pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), em Ilhéus, o que não supria a demanda por profissionais capacitados em jornalismo. O curso de Jornalismo da UFSB, implantado no campus Sosígenes Costa, em Porto Seguro, veio, portanto, preencher uma lacuna histórica, criando novas possibilidades formativas e ampliando o horizonte profissional dos jovens locais.

Esse contexto geográfico e social influencia diretamente a construção do perfil dos estudantes que ingressam na UFSB. Em sua maioria, são jovens negros, indígenas e descendentes de comunidades tradicionais, oriundos de escolas públicas e muitas vezes os primeiros de suas famílias a acessarem o ensino superior. Esse dado não é apenas estatístico — ele carrega implicações profundas sobre o projeto pedagógico do curso de Jornalismo. Trabalhar com um público historicamente excluído dos espaços acadêmicos exige romper com as lógicas tradicionais de ensino e reconhecer o saber popular, comunitário e ancestral como parte essencial do processo formativo.

É nesse ponto que a reflexão do sociólogo Clóvis Moura se torna central. Em Sociologia do Negro Brasileiro, Moura evidencia como o racismo no Brasil operou por meio de mecanismos sutis e violentos de exclusão social e econômica dos negros. Ele utiliza a metáfora das “barragens de peneiramento” para descrever como o sistema educacional brasileiro filtra e seleciona quem tem acesso ao conhecimento formal e, consequentemente, às oportunidades sociais. Esse processo, historicamente, colocou os negros e indígenas nas margens dos centros de decisão e poder.

O curso de Jornalismo da UFSB nasce justamente para romper essas barragens, ao propor uma formação crítica e sensível às especificidades regionais, estamos quebrando barreiras históricas de exclusão e ampliando o acesso a espaços de produção de conhecimento.

Mas romper a barragem não basta se a água não encontrar novos leitos por onde fluir. O desafio vai além do acesso: é preciso construir currículos que dialoguem com as realidades dos estudantes e permitam que suas vozes ressoem nas práticas acadêmicas. O curso de Jornalismo, ao integrar ensino, pesquisa e extensão, propõe uma pedagogia que valoriza os saberes locais e a comunicação comunitária como práticas legítimas de produção de conhecimento.

Inspiramo-nos, nesse aspecto, em Muniz Sodré e suas contribuições para o pensamento comunicacional no Brasil. Em Pensar Nagô, Sodré propõe uma epistemologia que se afasta do eurocentrismo acadêmico e valoriza saberes ancestrais, especialmente aqueles ligados à matriz africana. Para ele, pensar nagô é pensar em redes, em coletividade, em processos dinâmicos de comunicação que não se limitam aos modelos ocidentais de racionalidade linear. Essa concepção dialoga diretamente com a proposta do curso de Jornalismo da UFSB, que entende o comunicador não apenas como um técnico de informações, mas como um mediador cultural, um construtor de pontes entre universos simbólicos diversos.

Essa perspectiva também atravessa o nosso trabalho, como idealizador do curso, que desde o início enfatizo a necessidade de um currículo sensível às práticas culturais locais e às dinâmicas sociais do território. Essa proposta pedagógica não se limita ao ensino técnico do jornalismo, mas amplia o escopo para uma comunicação insurgente, que desafia os monopólios informativos e promove a pluralidade de vozes.

Em A Ciência do Comum, Sodré argumenta que a comunicação não deve ser entendida apenas como uma técnica de transmissão de informações, mas como um espaço compartilhado de experiências, afetos e saberes. Para ele, o comum é o lugar da vida cotidiana, onde se desenrolam as práticas sociais e onde o jornalismo encontra seu verdadeiro sentido: dar visibilidade às dinâmicas sociais que, muitas vezes, passam despercebidas pelos grandes meios de comunicação.

Ao adotarmos essa perspectiva, entendemos o jornalismo como prática social profundamente enraizada em contextos locais. No sul e extremo sul da Bahia, onde a pluralidade cultural se encontra com desafios socioeconômicos históricos, o jornalista não pode se limitar a ser um mero narrador de fatos. Ele precisa ser um mediador atento às contradições locais, alguém capaz de compreender os conflitos por terra e território, as lutas ambientais, os desafios educacionais, a riqueza das manifestações culturais e a complexidade das relações comunitárias.

Portanto, o curso de Jornalismo da UFSB se organiza a partir de uma lógica que ultrapassa os cânones tradicionais da academia. Aqui, a comunicação comunitária não é uma disciplina periférica — ela é central na formação dos estudantes. Compreendemos que a democratização da comunicação passa pela ampliação do acesso aos meios de produção midiática, mas também pela valorização dos saberes populares. Projetos de extensão, como rádios comunitárias, jornais de bairro, podcasts locais e plataformas digitais geridas por coletivos comunitários, fazem parte da rotina dos estudantes desde os primeiros meses do curso.

A realidade da região sul e extremo sul da Bahia impõe desafios concretos para os futuros jornalistas. Territórios indígenas, comunidades quilombolas, movimentos sociais do campo e da cidade convivem com a presença do agronegócio, do turismo predatório e de interesses econômicos que frequentemente entram em conflito com os direitos das populações tradicionais. O jornalista formado pela UFSB precisa estar preparado para atuar nesse ambiente, compreendendo as dinâmicas locais e sendo capaz de dar visibilidade a pautas que muitas vezes ficam à margem dos grandes meios de comunicação.

A ausência histórica de cursos superiores na área de Comunicação nesse território contribuiu para o esvaziamento do debate público e a reprodução de narrativas que, muitas vezes, atendem apenas aos interesses das elites locais. Nesse sentido, a construção do currículo do curso de Jornalismo foi pensada de forma a oferecer não apenas uma formação técnica sólida, mas também uma base crítica consistente. Disciplinas como Ética Jornalística, Comunicação Comunitária, Jornalismo Ambiental, Mídias Digitais e Produção Multimídia se somam a componentes teóricos que discutem os desafios da comunicação contemporânea, o papel do jornalista na sociedade e as especificidades da comunicação em contextos de diversidade cultural.

A proposta curricular também inclui áreas de ênfase que dialogam diretamente com as demandas regionais. A ênfase em Comunicação Comunitária, por exemplo, prepara os estudantes para atuar junto a movimentos sociais, coletivos culturais e comunidades tradicionais, valorizando o direito à comunicação como um direito humano fundamental. A ênfase em Jornalismo Cultural explora a riqueza cultural da região e prepara os estudantes para produzir conteúdos que dialoguem com as expressões culturais locais, ao mesmo tempo em que questionam as narrativas hegemônicas que frequentemente marginalizam as culturas periféricas. Já a ênfase em Jornalismo Científico visa aproximar o conhecimento acadêmico da sociedade, formando profissionais capazes de traduzir informações técnicas em narrativas acessíveis, com especial atenção para questões ambientais, de saúde pública e educação.

A escolha dessas ênfases não foi aleatória. Elas refletem o compromisso do curso com uma formação que vai além dos muros acadêmicos. 

Ao integrar saberes locais e práticas jornalísticas críticas, o curso de Jornalismo da UFSB se propõe a ser um espaço de resistência e criação. Em um mundo marcado pela concentração dos meios de comunicação e pela proliferação de desinformação, formar jornalistas éticos, críticos e sensíveis às realidades locais é, mais do que nunca, um ato político.

E ao olharmos para a trajetória da UFSB, percebemos que sua criação e consolidação já representam um rompimento significativo com os mecanismos tradicionais de exclusão acadêmica. Ao se tornar a primeira universidade federal do sul e extremo sul da Bahia, ela amplia as possibilidades formativas na região e contribui para o fortalecimento de um projeto educacional inclusivo, democrático e comprometido com os direitos humanos.

O curso de Jornalismo, nesse contexto, não é apenas mais uma oferta acadêmica — ele é parte de um projeto maior de democratização do acesso ao conhecimento e fortalecimento do debate público. E, nesse processo, cada estudante que entra nas salas da UFSB carrega consigo a possibilidade de se tornar um narrador de sua própria história e de suas comunidades.

Clóvis Moura já nos alertava sobre a necessidade de romper as “barragens de peneiramento” que limitam o acesso aos espaços de poder e decisão. O curso de Jornalismo da UFSB, ao se consolidar em um território historicamente marginalizado, assume esse desafio. Mais do que formar jornalistas, queremos formar sujeitos críticos, conscientes de seu papel social e preparados para construir novas narrativas.

Ao trazer para o centro do debate questões étnico-raciais, territoriais e culturais, o curso contribui para a construção de um jornalismo que não apenas informa, mas transforma. Um jornalismo que escuta, que questiona e que se compromete com a verdade e com a justiça social. E, acima de tudo, um jornalismo que reconhece a comunicação como direito, não como mercadoria. Esse é o compromisso que assumimos — com nossos estudantes, com nossas comunidades e com o futuro da comunicação no sul e extremo sul da Bahia.

*Richard Santos é escritor, pesquisador e docente na Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), com atuação nos programas de pós-graduação em Ensino e Relações Étnico-Raciais e em Estado e Sociedade. Coordena o Grupo de Pesquisa Pensamento Negro Contemporâneo e o programa de extensão Jornada do Novembro Negro. Doutor em Ciências Sociais pela UnB e pós-doutor em Cultura e Sociedade pela UFBA, Santos tem experiência como artista multimídia e publicou obras importantes sobre racialidade e mídia, como Maioria Minorizada e Branquitude e Televisão. É membro da LASA e do Observatório do ODS 18.

** Este é um artigo de opinião que está dentro da nossa política editorial, mas não reflete necessariamente o posicionamento da Revista Afirmativa

Compartilhar

plugins premium WordPress