Apesar dos desafios, as ativistas propõe novo panorama de transformações e justiça social nas eleições 2020
Por Laila Thaíse
Diante de um cenário de tantas incertezas impostas pela pandemia da Covid-19 e a crise política do país, as mulheres negras sergipanas estão organizadas mobilizando a população e forjando formas de resistência do sertão à cidade. A pandemia tem afetado de maneira mais cruel a vida destas sujeitas, suas famílias e comunidades, seja através da ausência de condições básicas de sobrevivência, como água potável nas periferias, falta de alimentos, desemprego ou aumento da violência de gênero no contexto doméstico.
As dificuldades com a pandemia se agravam também no dia a dia das Comunidades Quilombolas, que já enfrentavam diversas formas de violência racistas, como a precariedade ou a total falta de acesso às unidades e serviços de saúde.
Diante do contexto de agravamento da pobreza e do racismo, iniciativas de distribuição de cestas básicas e kits de proteção (máscara e álcool em gel), como as da Central Única das favelas (CUFA), Comunidade Oju Ifá, Casa Mar, Punhos de Ouro, Auto-organização de Mulheres Negras Rejane Maria e outras, foram ações de solidariedade fundamentais para fortalecer as comunidades mais afetadas.
O ano da pandemia, e do racismo como agenda pública, coincidiu com um ano de eleição e gerou um fenômeno interessante no Brasil, e em Sergipe. Mulheres negras sergipanas de diversas frentes sociais colocaram seus nomes para concorrer às eleições e defender as pautas da população negra e pobre. Segundo dados divulgados pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o Nordeste é a segunda região com mais candidaturas de mulheres negras. Do total de mulheres candidatas na região, 68% são negras, perdendo apenas para o Norte com 76%, região com maior número de candidaturas negras femininas.
Apesar dos números otimistas no enfrentamento a sub-representação negra e feminina na política, as dificuldades para o êxito destas candidaturas são inúmeras, a má distribuição dos recursos do Fundo Especial do Financiamento de Campanha (FEFC) ainda é um problema, e que apesar da vitória na decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em relação a distribuição do Fundo para as candidaturas negras, a medida não tem sido respeitada pelos partidos. A norma funciona assim: se em uma cidade X, o partido Y tem 40% de negras entre as candidatas mulheres, as candidatas negras devem receber 40% dos recursos.
Segundo a organização Mulheres Negras Decidem, mulheres negras recebem menor investimento para suas campanhas e tinham menor tempo nas propagandas do partido, o que reflete no resultado final, já que a campanha influencia na elegibilidade. Com essa nova decisão do TSE, o tempo de propaganda eleitoral também deve ser proporcional ao total de candidatos negros e mulheres que o partido apresentar.
Conforme aponta o último Dossiê da Situação da Mulher Negra, 70% das mulheres sergipanas são negras. Não à toa são elas que têm encabeçado ações de relevância no enfrentamento a Covid-19, e agora, em um movimento de coragem, compõem também a maior parte das candidatas no estado, ocupando diversos partidos, não só de esquerda, mas também de centro e de direita. Este fenômeno inclusive preocupa os movimentos negros alinhados a uma perspectiva de esquerda, maioria do campo.
Para a jornalista e militante do Movimento Negro Unificado, Wanessa Fortes, “a direita se apropriou do discurso de igualdade racial, mesmo não fazendo na prática, muitas mulheres negras estão saindo candidatas pela direita. Eu acredito que seja uma questão de visão política distorcida, porque a direita não nos cabe, como a esquerda também muitas vezes só nos usa para cumprir uma cota racial”, reflete.
Os desafios destas campanhas são inúmeros, seja pelas estruturas racistas e machistas dos partidos de direita (e também de esquerda), seja pela exigência do isolamento social e a não possibilidade do corpo a corpo tão importante nas campanhas. Como aponta Wanessa, o contexto demonstra ainda mais a coragem das mulheres negras sergipanas que colocaram seus nomes a disposição para a disputa política institucional. Conheçam quem são delas.
Artistas negras sergipanas na disputa de poder
Josineide Dantas, ou Gigi Poetisa (Psol/SE), que é candidata a vereadora pela segunda vez, salienta que é preciso utilizar a criatividade porque não se pode colocar as pessoas em um risco maior do que já estão. “Nós, candidatas e candidatos, precisamos ter a responsabilidade social de reforçar para as pessoas que ainda estamos em processo de pandemia, que a doença continua matando pessoas, e que quem mais morre somos nós, mulheres, pobres e negros”, declara a cordelista.
Gigi conta que também é agente de saúde, mulher periférica e militante do movimento negro sergipano, tem 5 filhos e muita disposição e convicção para encarar a disputa política. “A nossa proposta política é construída coletivamente e dialogada com as comunidades através do trabalho de base, pois como agente de saúde tenho vivenciado as dororidades do nosso povo. Diante das necessidades, pude perceber que precisamos dialogar com a diversidade de raça, gênero e construir um projeto de cidade para todes, todas e todos, com um olhar de equidade voltado para os vulneráveis que vivem em situações de riscos social”, destaca.
Gigi traz em seu programa político questões como o direito à moradia, a luta por uma educação voltada para a formação inclusiva através da cultura, da arte de rua, como já é desenvolvida nas periferias, a exemplo do grafite no movimento Hip Hop. “O Hip Hop se tornou uma ferramenta libertadora, preparando a juventude para o mercado de trabalho”, ressalta.
A saúde pública é central nas pautas elencadas pela candidata, destacando a importância de um programa que inclua as especificidades da população negra, quilombola, indígena urbana e cigana, inserindo práticas integrativas de acordo com a cultura de cada povo e o fortalecimento do SUS.
Assim como Gigi Poetisa, a ativista e rapper Iza Negratcha (PT/SE), também mulher negra, é atuante nas frentes de luta, especialmente da juventude negra e das comunidades periféricas.
Iza é ativista na luta de mulheres encarceradas e atuante na Frente Nacional de Mulheres do Hip Hop. Sua trajetória é marcada por duras batalhas. Ela passou pelo sistema carcerário, vítima dos equívocos da justiça. Como mulher negra, da periferia, buscou não apenas lutar por si, mas contribuir para que todas as mulheres que foram cerceadas do direito à liberdade pudessem conhecer seus direitos. A questão carcerária ainda é um dos problemas mais graves vivenciados pela população negra. Segundo pesquisa do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC), o Brasil é o 4º país que mais prende mulheres, dentre essas, 68% das mulheres encarceradas são negras.
Em 2019, Negratcha foi organizadora do Fórum Nacional de Mulheres do Hip Hop, sediado em Sergipe. O evento que reuniu mulheres do país todo para tratar da cultura do Hip Hop, da atuação das mulheres e de como o Hip Hop vem abordando as questões de raça, gênero, sexualidade, juventude e outras. Atualmente ela está candidata à vereadora em Nossa Senhora do Socorro, região Metropolitana de Aracaju, e vem enfrentando dificuldades com a sua candidatura, como o não recebimento da cota do fundo partidário destinada às candidatas negras.
“Eu vejo como problema maior a descrença no nosso potencial dentro da periferia, agem como se fossemos candidaturas laranjas. A gente não recebeu nada do fundo partidário, as cotas que vieram destinadas aos candidatos/as negros/as só vieram para 5 candidatos/as, que já tem poder aquisitivo, e os outros ficaram de fora, e aí a gente tem a dificuldade de estruturar essa campanha, a gente enfrenta obstáculos maiores em relação aos outros candidatos”, desabafa Iza.
Assim como Iza Negratcha, outras candidatas negras apontam os mesmos problemas com relação ao acesso ao Fundo Partidário, um outro agravante que tem gerado desconforto no Movimento Negro são as fraudes relacionadas a identificação racial para o recebimento do Fundo Partidário.
Isolamento social para quem?
Em meio ao caos da pandemia, o Movimento de Pessoas em Situação de Rua/SE iniciou uma série de ações no intuito de cobrar dos órgãos públicos quais medidas seriam tomadas para garantir a proteção das pessoas que vivem nas ruas de Aracaju, visto que as pessoas em situação de rua são as que mais sofrem com a negligência do Estado. Segundo dados do IBGE, cerca de 210 milhões de pessoas no Brasil estão vivendo nas ruas do Brasil, e essa população está ainda mais vulnerável neste período de pandemia.
Zenaide Sandres (PT/SE), candidata a vereadora em Aracaju, é uma das referências da luta do movimento das pessoas em situação de rua. Militante dos movimentos negros e de direitos humanos, ela esteve à frente na luta pelos abrigos municipais no período de pandemia, bem como, acompanhando as distribuições de cestas básicas levantadas pelo movimento para esta população.
Quilombola, nascida no município de Porto da Folha (Se), ela é educadora social, militante política e das causas sociais desde os anos 80 nas pastorais da igreja. Zenaide iniciou sua militância aos 19 anos no Movimento Sem-Terra (MST), como dirigente nas regiões Norte e Nordeste do país. A candidata estudou Ciências Políticas com foco em Economia Política em Havana/Cuba, durante dois anos. Foi dirigente estadual do Partido dos Trabalhadores nos anos 90, assessorou a Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de Sergipe (FETASE) e foi presidente da Cooperativa dos Técnicos e Autonomos de Sergipe (COOPTASE). Foi a primeira Coordenadora de Política para Mulheres de Aracaju.
“Nossa luta é para que essas pessoas possam ser acolhidas ou contempladas em programas de habitação popular, entre outros direitos como emprego e renda, assistência, saúde e educação”, enfatiza.
Mulheres quilombolas na força ancestral
Quem vê o sorriso fácil de Xifroneze Santos (PSD/SE) não imagina que ela já viveu tantas vidas em uma só. Mulher quilombola da Comunidade de Caraíbas, no município de Canhoba (SE), localizado ao norte do estado, atua na luta pelo território desde 2004. Neze, como é mais conhecida, conta que foram inúmeras as reuniões, conferências, conselhos até que ela conseguisse compreender que as conquistas da comunidade também perpassavam por decisões político partidárias.
A política, uma das fundadoras da Associação Dona Paqueza Piloto, decidiu através da demanda coletiva de sua comunidade que era necessário concorrer as eleições para que a população quilombola tivessem suas demandas atendidas. “Decidimos participar da política partidária com a visão de apoiar os projetos de desenvolvimento comunitário de Caraíbas, vimos a importância de candidaturas de representatividade quilombola e a necessidade do nosso lugar de fala. Neste sentido, participei pela primeira vez das eleições de 2018 como candidata a deputada estadual, levando comigo a bandeira do movimento quilombola de Sergipe, com o recorte racial, territorial, e com foco nas mulheres e no povo negro”, assevera Xifroneze.
Esse ano, Xifroneze está candidata novamente, dessa vez ao cargo de vereadora, ressaltando a importância da disputa para que a população quilombola tenha seus direitos respeitados e garantidos. Além de Xifroneze, a população quilombola sergipana conta com a candidatura de Gressi Santana (PT/SE), da comunidade Mocambo em Aquidabã, localizado no Agreste Sergipano, e já conseguiu eleger Silvânia Correa de Moura (PT-SE), ao cargo de vereadora, no município de Amparo do São Francisco, primeira quilombola eleita em Sergipe, onde atuou em prol dos direitos das comunidades quilombolas.
Mulheres de axé no poder pelo fim da intolerância religiosa
Mesmo durante a pandemia, os terreiros continuam sendo alvos de ataques racistas. Tais práticas tem sido uma das maiores violências que a população negra e de axé tem vivenciado desde que se inaugurou os primeiros espaços de culto aos Orixás no Brasil. Segundo dados do Ministério de Direitos Humanos, entre 2015 e o primeiro semestre de 2019, foram 2.722 casos de intolerância religiosa, desses, a maior parte foram contra religiosos de matriz africana.
Diante de tanta violência, o povo negro, principalmente as mulheres negras de axé, seguem defendendo as demandas da população e destacando o combate à intolerância religiosa e o direito a liberdade de culto no Brasil, em um país em que teoricamente o Estado é laico e o direito ao livre culto está previsto na Constituição Federal de 1988.
Assim, Sergipe nos brinda com candidaturas corajosas de mulheres negras de axé como Ana Íres Lima (PT/SE), militante do Movimento Negro Unificado (MNU), Mãe Rosimeire de Xangô (PSC/SE) e da yakekere Mãe Acácia Maria Santos (MDB/SE), do Axé Ilê Obá Abassá Odé Bamirê, que foi gestora em Igualdade Racial do município de São Cristóvão (SE) e tem atuado em prol da garantia de direitos dos povos de terreiro e demais segmentos socialmente estigmatizados.
Imagem de Destaque: Marcha de Mulheres Negras/SE 2018. Crédito: Pedro Alexandre Oliveira