Por Monique Rodrigues do Prado
É muito comum ouvirmos mesmo nos campos mais progressistas que as pautas de gênero e raça são identitárias. Mais comum ainda é vê-las sendo tratadas de forma secundária como se de fato não houvesse nada de estrutural no sexismo e no racismo, de maneira que a discussão acerca do capitalismo fosse suficiente para dar cabo às atrocidades produzidas por esses outros mecanismos de opressão.
No entanto, a polemica frase da filósofa Sueli Carneiro que, em princípio pode causar desconforto em quem se diz progressista, carrega um mar de fundamentos.
Enquanto advogada negra percebo no exercício da profissão esse atravessamento de gênero e raça nos ambientes forenses, isso é flagrado na forma como sou tratada nos balcões dos cartórios ou nas audiências, passando pela compreensão estrutural de sub-representação. Todos sabemos que juiz, por exemplo, é uma das profissões mais elitizadas, símbolo de poder e status econômico-social. Ainda assim, nós mulheres negras somos apenas 1% na magistratura.
Recentemente assistimos ao caso de Matheus Fernandes, um jovem negro que ao adentrar uma loja no shopping Ilha Plaza, Zona Norte do Rio de Janeiro, para trocar o relógio de presente do dia dos pais foi violentamente retirado e agredido por policiais a paisana que trabalhavam como segurança no estabelecimento, mesmo Matheus tendo apresentado a nota fiscal do relógio que custava R$ 300,00 (trezentos reais).
O caso elucida exatamente a frase de Sueli Carneiro quando nos mostra que “entre a direita e esquerda eu continuo negro”, pois ilustra de forma cirúrgica que mesmo quando temos poder de consumo e status socioeconômico, continuamos negros.
Se por um lado a direita tem como cerne a conservação da propriedade e a esquerda tem como objetivo a democratização do acesso, visando socializar o consumo e os bens produzidos por todos nós que compomos a classe trabalhadora, ainda é possível perceber o hiato na dimensão racial da discussão, visto que as pessoas negras mesmo furando a bolha econômica e social, são cotidianamente atravessadas pelo racismo.
Um dos maiores símbolos eleito pelo capitalismo para demonstrar a posse, além de efetivamente a propriedade de um imóvel, é o veículo automotor que com o fordismo inaugura um novo modus operandi de produção em grande escala na indústria automobilística, mesmo as custas de trabalho operário exaustivo e com direitos trabalhistas precários.
Ainda assim, a posse de um veículo automotor não foi suficiente para uma família ser alvejada por bala de fuzil pelo Exército brasileiro com 80 tiros dentro de seu carro, ensejando no assassinato do músico Evaldo dos Santos Rosa.
Por isso, uma revolução democrática socialista que tenha como objetivo dar cabo ao capitalismo precisa de uma vez por todas compreender que não há nada de revolucionário em localizar a agenda racial como identitária, visto que o racismo é tão estrutural, quanto o sistema de opressões de classes.
Se da direita já não esperamos nada, especialmente com o crescimento de blocos extremistas, de outro lado para a esquerda fica o alerta sobre as implicações de como a elitização da discussão de classes fica distante da base, já que a força de trabalho desse país é massivamente negra.
A produção de conteúdo acadêmico é fundamental para criar ciência e educação. Entretanto, essa intelectualização não pode ser tamanha ao ponto das utopias revolucionárias estarem tão distantes que não olham para as contribuições do pensamento periférico, negro e diaspórico ou mesmo das produções sociocultural das bordas.
“Entre a direita, eu continuo negro” é uma provocação inclusive para quem se reivindica progressista a fim de olhar para a questão racial como a interseccionalidade que o racismo e o sexismo exige, visto que é fundamental que as agendas de classe, gênero e raça estejam na mesma direção.