Religiões de matriz africana sofrem com assédio, perseguição e violência de igrejas evangélicas

Pesquisa mostra que igrejas evangélicas abriram cerca de 17 templos por dia no Brasil em 2019. O país passou de 100 igrejas nos anos 60 para mais de 60 mil em 2015.

Pesquisa mostra que igrejas evangélicas abriram cerca de 17 templos por dia no Brasil em 2019. O país passou de 100 igrejas nos anos 60 para mais de 60 mil em 2015.

Por Andressa Franco

Em fevereiro de 2022, um homem evangélico interrompeu as atividades religiosas do terreiro de candomblé Ilè Alaketú Asé Omí T’Ogun, em Vitória da Conquista (BA), para fazer uma pregação. Além do som alto, os candomblecistas relataram que ele tentava “exorcizar” quem chegava ao terreiro. O caso foi registrado em boletim de ocorrência e denunciado na Promotoria de Justiça de Combate ao Racismo do Ministério Público baiano.

No mesmo mês, o terreiro de candomblé Logun Edé, que existe há quase 50 anos na cidade de Eunápolis (BA), foi vítima de um ataque semelhante. Na ocasião, um grupo de cerca de 20 evangélicos fez uma pregação cristã em frente ao terreiro utilizando um carro de som. Três pessoas que frequentam o terreiro de candomblé foram agredidas fisicamente. Entre elas, a neta da Yalorixá Luziene Almeida. Um boletim de ocorrência também foi registrado na delegacia, embora Luziene tenha precisado insistir.

“Nós ligamos para polícia, a polícia não veio. Do jeito que estava eu fui pra delegacia. O escrivão falou: ‘minha senhora isso é um nadinha, não dá nada’, eu falei: ‘é esse nadinha que eu quero que você registre’”, lembra Luziene. Até o momento, como previu o escrivão, ainda não deu em nada. “Foi pro juiz e estou até hoje esperando ser chamada.”

Esse ano, a reportagem do Marco Zero Conteúdo esteve no Quilombo Teixeira, localizado no município de Betânia (PE), para conversar com Francisca dos Santos, que passou de última umbandista da comunidade, para a última a ter sua fé convertida. Há pouco mais de um ano, a senhora frequenta um templo da Igreja Mundial do Poder de Deus. A igreja tem sede fundada em São Paulo (SP) pelo pastor Valdemiro Santiago, cujo nome já esteve envolvido em diversos escândalos de exploração da fé alheia e propaganda enganosa. Cientes ou não disto, a maior parte das 300 famílias do Quilombo hoje são evangélicas.

Francisca dos Santos, última umbandista do Quilombo Teixeira que foi convertida – Imagem: Géssica Amorim/Coletivo Acauã

O Brasil vive um crescimento vertiginoso da religião no país nas últimas décadas. De acordo com uma pesquisa realizada pelo Centro de Estudos da Metrópole (CEM) da USP, igrejas evangélicas abriram cerca de 17 novos templos por dia no Brasil em 2019. O país passou de cerca de 100 igrejas nos anos 60 para mais de 60 mil em 2015. A Europa levou cerca de 500 anos para realizar a mesma transição. O estudo aponta que quanto mais igrejas abertas, mais fiéis, mais coleta de dízimo e mais capitalização para conquistar mais fiéis, investindo, por exemplo, em telecomunicações.

Neopentecostalismo em territórios quilombolas

Os quilombos, como o Quilombo Teixeira, não escapam desse cálculo. Ana Gualberto é historiadora, mestre em cultura e sociedade pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e diretora executiva de Koinonia Presença Ecumênica e Serviço. A organização tem entre suas frentes o Observatório Quilombola. Ela explica que a identidade quilombola é baseada na ancestralidade, cultura e modo de vida, conectado com o período da escravização. Assim, as práticas religiosas são inerentes à vida das comunidades.

“Não há uma religiosidade certa ou errada para estar dentro dos territórios quilombolas. O problema é o racismo. Por que a religião de matriz africana é combatida inclusive nos territórios quilombolas, um espaço reconhecido por sua identidade negra?”, questiona Ana, que é candomblecista e também integra a Rede de Mulheres Negras da Bahia. A historiadora ressalta que esse racismo se dá na demonização das diversas religiões de matriz africana. 

Ana Gualberto é historiadora, mestre em cultura e sociedade – Imagem: Arquivo Pessoal

Para Lívio Martins, Babalorixá do Terreiro das Salinas, localizado em São José da Coroa Grande (PE), esse processo mina a tentativa de sobrevivência do povo preto que foi “arrastado para o Brasil”. “Sobrevivência inclui os aspectos cultural e religioso. Esses movimentos de religiões neopentecostais é um apagamento de nossa identidade a partir do momento que me faz distanciar da minha ancestralidade. Isso é muito perigoso.”

Pernambuco é estado mais evangélico do Nordeste

Lívio, assim como Dona Francisca, é pernambucano, e conhece a realidade do estado. No censo do IBGE de 2010, Pernambuco figurava como o estado com a maior concentração de evangélicos do Nordeste em proporção e números absolutos. 

O assédio público de neopentecostais por meio de intimidação a adeptos de religiões afro-brasileiras tem crescido no estado. Comerciantes e clientes da Feira de Caruaru, boa parte praticantes de religiões afro-brasileiras, são coagidos e expostos como “demoníacos”.

No dia 1 de janeiro de 2022, o Terreiro das Salinas foi incendiado. Em entrevista para a Afirmativa na época, Lívio Martins relatou que a maioria dos ataques contra os povos de terreiro na região vêm de religiões neopentecostais. 

Lívio Martins em seminário sobre combate ao racismo religioso na Assembleia Legislativa de Pernambuco – Imagem: Reprodução ALEPE

Um exemplo, conta, era a iniciativa do Salinas de distribuir sopa toda sexta-feira. Desde que começaram, uma igreja passou a esperar que terminassem para celebrar um culto no mesmo espaço. Além de ataques, como o sofrido pelo Terreiro das Salinas em 2022, também é possível observar práticas como pregação, passeatas, distribuição de panfletos, uso de carros de som, entre outras ações por parte de grupos evangélicos próximos a terreiros.

“Muitas vezes o racismo religioso não é direto, como quando incendiaram nosso terreiro. Recentemente teve uma passeata de uma igreja em que todos os cantos eles gritavam que o local era do ‘Senhor’, e não do ‘diabo’. Um desses locais foi a rua do Salinas”, lembra. 

Igreja da Assembleia de Deus no quilombo Bredos – Imagem: Géssica Amorim
Cristianismo na África

No dia 13 de junho, as autoridades do Quênia atualizaram o número de mortes no “massacre da floresta Shakahola” para 303. Foi por esse nome que ficou conhecido o caso do pastor evangélico que incentivou seus fiéis a praticarem um “jejum extremo” para conhecer Jesus. O líder religioso, Paul Nthenge Mackenzie, está preso desde o dia 14 de abril. Ele já foi preso duas vezes desde 2017 por casos semelhantes. As buscas por mais fossas coletivas seguem pelo terreno da região florestal, próximo à cidade de Malindi.

Prisão do pastor queniano Ezekiel Ombok Odero – Imagem: Reuters

Dias depois de descoberto este caso, no dia 27 de abril, o Ministério de Interior do Quênia anunciou ter prendido um segundo pastor suspeito de incitar o jejum em fiéis de uma igreja do país africano. O pastor Ezekiel Odero mantinha mais de 100 pessoas em greve de fome dentro do centro de oração da Igreja Nova Vida na cidade de Mavueni.

Antes disso, no dia 9 de abril, o pastor Francisco Barajah, da Igreja Evangélica de Santa Trindade de Moçambique, faleceu na tentativa de imitar o jejum de 40 dias e 40 noites que Jesus Cristo teria feito no deserto, de acordo com a Bíblia.

Um estudo publicado pela Sociology of Religion, de Oxford, revela que há quase 700 milhões de cristãos na África, o que o torna o continente mais cristão do mundo em termos de população. Vale destacar que muitas igrejas evangélicas promovem “Missões na África”. 

Para Ana Gualberto, se trata de uma nova prática de colonização. A historiadora explica que a maior diferença entre as religiões de matriz africana e as cristãs é o caráter proselitista. Ou seja, o empenho em converter pessoas ou grupos a determinada religião.

“Esse é o problema do cristianismo. Convencer o outro que o seu caminho é o correto. No Brasil existem missões de evangelização de povos indígenas, ações sociais em comunidades urbanas condicionadas a começarem a professar só aquela fé. É a negociação da fé como elemento de nova colonização”, lamenta. 

Educação e ação do poder público são caminhos apontados 

Tanto os assédios quanto os crimes de ódio são uma realidade com a qual nos habituamos no país, que é laico. No levantamento “Respeite o meu terreiro”, realizado pela Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde (Renafro) e divulgado em 2022, 78,4% dos entrevistados relataram que pessoas em suas comunidades foram vítimas de racismo religioso. Na Bahia, em 2022, o Ministério Público, por meio do Mapa do Racismo, registrou 37 denúncias de casos de intolerância religiosa.

Ana Gualberto ressalta que só é possível combater essas práticas através de uma tríade de ação: educação, informação e ação do poder público. Este último relacionado principalmente à aplicabilidade da legislação. “As pessoas não são responsabilizadas por seus atos. Portanto elas o repetem”. A ativista explica que o primeiro obstáculo é a própria tipificação do crime, seja enquanto racismo, seja enquanto racismo religioso. 

No que diz respeito à educação, chama atenção para a aplicação efetiva da Lei 10.639/2003 e 11.645/2008, que tornam obrigatório o ensino da História e cultura africana e afro-brasileira no currículo escolar. Quanto à produção de informação qualificada, Ana afirma que os povos de terreiro sofrem com fake news há anos. “Temos no Brasil as concessões de TV para que essas igrejas produzam coisas horrorosas sobre as outras religiosidades. Isso é constante e é uma ação concedida pelo Estado”. 

A curto prazo, a diretora de Koinonia aponta as organizações da sociedade civil e os espaços religiosos comprometidos com o diálogo como pontes para combater a desinformação. Por mais que admita que as igrejas dispostas à essa construção são minoria. “Parece que estamos enxugando gelo, mas quando criamos os espaços de diálogo, conseguimos ver alguns processos de transformação”, finaliza. 

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