Reparações, justiça econômica e erradicação da pobreza — o legado de Dr. Martin Luther King Jr.

Dia 15 de Dezembro é celebrado o Dia de Martin Luther King Jr, feriado nacional estadunidense em homenagem a Martin Luther King Jr. O feriado foi oficializado em 1983, sendo celebrado na terceira segunda-feira do mês de janeiro, data próxima ao aniversário de Dr. King. Embora o legado do Rev. King seja amplamente relacionado à sua luta pelos direitos civis e suas

Por Marry Ferreira / Imagem: AP / Jack Thornell

Dia 15 de Dezembro é celebrado o Dia de Martin Luther King Jr, feriado nacional estadunidense em homenagem a Martin Luther King Jr. O feriado foi oficializado em 1983, sendo celebrado na terceira segunda-feira do mês de janeiro, data próxima ao aniversário de Dr. King. Embora o legado do Rev. King seja amplamente relacionado à sua luta pelos direitos civis e suas frases sobre a importância do amor ecoarem nas redes sociais, sua luta foi marcada por discussões sobre privilégio branco, brutalidade policial, reparações, erradicação da pobreza e justiça econômica.

Essa descentralização do debate de Dr. King sobre redistribuição da riqueza ocorre, em grande parte, porque essa narrativa não se encaixa em um discurso meritocrático, desigual e imperialista da sociedade em que fazemos parte. A história dos direitos civis tem grandes marcos, como o boicote aos ônibus de Montgomery, o Civil Rights Act de 1964 e o Voting Rights Act de 1965, que envolveram atuações de Dr. King e diversos outres líderes negres estadunidenses que ecoam até os dias de hoje.

Março de 1965: Martin Luther King com sua esposa Coretta Scott King e colegas durante uma marcha pelos direitos civis de Selma, Alabama, à capital do estado em Montgomery. William Lovelace / Express / Getty Images

Em seu discurso “Where Do We Go From Here?”, em 1967, Dr. King discutiu a necessidade de renda garantida para pessoas pobres e a criminalização da pobreza: “Estou agora convencido de que a abordagem mais simples provará ser a mais eficaz – a solução para a pobreza é aboli-la diretamente por uma medida agora amplamente discutida: a renda garantida”.

Seu ativismo apresentou diversas críticas ao sistema econômico estadunidense que favorecia a riqueza e intensificava a pobreza. Em “My Pilgrimage to Nonviolence”, em 1958, Dr. King destaca sua trajetória e as relações da injustiça racial e econômica. “Também aprendi que o gêmeo inseparável da injustiça racial era a injustiça econômica. Embora eu tenha vindo de uma casa com segurança econômica e relativo conforto, nunca consegui tirar da minha mente a insegurança econômica de muitos de meus companheiros de brincadeiras e a trágica pobreza daqueles que vivem ao meu redor”.

Um dos seus discursos mais famosos, “Eu tenho um sonho”, 1963, em Washington expôs uma ampla luta econômica que pessoas negras estadunidenses enfrentaram e continuam a enfrentar sem uma reparação adequada dos direitos civis e econômicos. A Marcha em Washington buscou igualdade perante a lei, mas também uma declaração de direitos econômicos para os trabalhadores.

Enquanto não olhamos para todos os discursos ao longo de sua vida, a condenação do próprio sistema que Rev. King estava desafiando não ganha o destaque que essa luta deve ter. Sem justiça econômica, entrar pela porta da frente de uma loja ou somente lutar por uma representatividade na televisão pode ser um começo, mas não se faz suficiente. Isso tudo soa muito familiar para um país como o Brasil, onde crianças negras continuam a ser assassinadas pela polícia mesmo dentro de suas casas, onde homens negros morrem somente por ir ao supermercado, onde pessoas trans sofrem violência a índices alarmantes, mas pessoas brancas e instituições governamentais se resumem a postar um quadrado preto com hashtags nas redes sociais – e quando assim o fazem.

Em “Letter from a Birmingham Jail”, em 1963, Rev. King criticou a forma como tais grupos brancos se diziam discordar da forma como pessoas negras protestam. “Não acredito que você teria elogiado tão calorosamente a força policial se tivesse visto seus cães violentos e raivosos literalmente mordendo pessoas negras desarmadas e não violentas. Não creio que você elogiasse tão rapidamente os policiais se observasse o tratamento horrível e desumano que dão aos negros aqui na prisão da cidade; se você os assistir empurrando e xingando velhas negras e jovens negras; se os visses darem tapas e pontapés em velhos negros e meninos, se os visses, como fizeram em duas ocasiões, recusando-nos a dar-nos comida porque queríamos cantar a nossa graça juntos. Lamento não poder acompanhá-lo em seus elogios ao departamento de polícia”.

Enquanto muitas pessoas se apegam à ênfase de Dr. King no amor e na não violência, as mesmas desviam a atenção da injustiça racial embutida no sistema econômico o qual ele criticava. Na mesma carta de 1963, Dr. King questiona pessoas brancas que se diziam opostas à segregação e à discriminação, mas nunca tomaram uma posição real contra isso. “Quase cheguei à conclusão lamentável de que o grande obstáculo das pessoas no caminho em direção à liberdade não é só o Conselheiro dos Cidadãos Brancos ou a Ku Klux Klanner, mas o moderado branco que é mais devotado à ordem do que à justiça; que prefere uma paz negativa que é a ausência de tensão a uma paz positiva que é a presença da justiça; que diz constantemente: “concordo com você no objetivo que busca, mas não concordo com seus métodos de ação direta”; que paternalisticamente sente que pode definir o calendário para a liberdade de outro homem; quem vive pelo mito do tempo; e que constantemente aconselha o negro a esperar até uma “estação mais conveniente”.

Dr. King via a violência como algo que vinha de muitas formas. Ele criticou a violência da pobreza, do desemprego, da desumanização e da falta do acesso à educação. A mesma violência que se manifesta nesse cenário pandêmico através da falta de políticas que pautam as diferentes realidades da população negra brasileira, que diminui a velocidade com que o vírus se espalha e que interfere nesse sistema genocida e na necropolítica que define o valor da vida de quem vive e de quem morre.

Hoje, quase 40 milhões de estadunidenses vivem em extrema pobreza e a maioria dos alunos em muitas escolas não têm o suficiente para comer. Uma enorme faixa de trabalhadores de todas as rendas e ocupações vive de salário em salário, cientes de que seus empregos, casas, seus cuidados de saúde, sua educação e suas famílias permanecem vulneráveis ​​a uma economia que os trata como despesas a serem eliminadas ao invés de pessoas a serem cuidadas. Em um cenário de Covid19, os chamados trabalhadores essenciais são os que mantém a economia funcionando, mas que os menos essenciais se favorecem dela. Quando o Dr. King pregou seu sermão na Igreja Batista Ebenezer, em 1965, ele não se referiu a ações solidárias quando disse que sonhava com o dia que todos os filhos de Deus teriam comida e roupas e bem-estar material para “seus corpos, cultura e educação para suas mentes e liberdade para seus espíritos”. Ele estava se referindo às mudanças estruturais, a mudanças no sistema como um todo.

 

Apesar de se muito se dirigir à imagem de Dr. King para se falar de direitos civis e luta por justiça social nos EUA, essa luta foi e é coletiva. Dorothy Cotton, confidente do Rev. Dr. Martin Luther King Jr. e a única mulher em seu círculo íntimo de assessores, Ella Baker, ativista contra o encarceramento em massa; e Jo Ann Robinson, ativista e crítica do tratamento dado aos afro-estadunidenses no transporte público, foram algumas das muitas mulheres e líderes negras dos direitos civis que lutaram por uma mudança sistêmica. Coretta Scott King, esposa de Dr. Martin Luther King Jr foi uma das grandes influências de seu trabalho, e é uma importante ativista líder de diferentes movimentos e protestos na luta por justiça econômica e social.

Dorothy Cotton – Arquivo fotográfico de Bob Fitch, © Bibliotecas da Universidade de Stanford

No ano em que foi assassinado, em 1968, Dr. Rev. King fez diversos pronunciamentos sobre o direito dos trabalhadores, supremacia branca, a Guerra do Vietnã e o imperialismo dos EUA. Em seus últimos dias, ele e outros líderes dos direitos civis embarcaram na Campanha dos Pobres, em Memphis, Tennessee, em uma coalizão para exigir financiamento federal para pleno emprego, uma renda anual garantida, diminuição da pobreza e garantia de habitação para os pobres. Para Dr. King, aquela era “a oportunidade da América para ajudar a preencher o abismo entre os que têm e os que não têm. A questão é se a América o fará. Não há nada de novo sobre a pobreza. A novidade é que agora temos as técnicas e os recursos para erradicar a pobreza. A verdadeira questão é se temos vontade”.

No entanto, às 18:05h de quinta-feira, 4 de abril de 1968, Dr. Martin Luther King foi assassinado a tiros enquanto estava na varanda fora de seu quarto no segundo andar no Lorraine Motel, em Memphis, Tennessee. A notícia do assassinato de Dr. King gerou grandes surtos de violência em todo o país. Rev. King havia chegado ao Tennessee na quarta-feira, 3 de abril, para se preparar para uma marcha na segunda-feira seguinte em nome dos trabalhadores do saneamento de Memphis em greve .

Coretta Scott King lidera uma marcha com Ralph Abernathy, poucos dias depois de King ser baleado

Hoje, mais de 50 anos depois de sua morte, seu legado e de muitas outras pessoas negras que lideram movimentos na Diáspora, ainda apontam para o mesmo caminho: habitação, educação, saúde, e economia são áreas onde o racismo e a desigualdade se manifestam amplamente. Um futuro onde as pessoas negras não só sobrevivam, mas prosperam, precisa passar pela  justiça econômica.

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