A nova fronteira revolucionária do Povo Negro

(...) É nesse âmbito que muitos irmãozinhos e irmãzinhas negras podem se deixar levar pelo academicismo e por sua vaidade para se perder num emaranhado de “estrelismos”. De minha parte, faço um apelo: não transformem a militância negra em uma bandeira pessoal de aprovação particular. Em especial: não anseiem a adoração de pessoas brancas ou negras.

Por João Pablo Trabuco* / Imagem: Af Rodrigues

Se há tempos a população negra passa por um processo de tortura e exclusão social promovido pelas autoridades brancas, também é possível notar que políticas de afeto e resistência são comuns entre os nossos. A contemporaneidade expressa seus novos valores em diversos termos: autocuidado, skincare, terapia ocupacional, aromaterapia, e por aí segue uma sequência de medidas que visam melhorar a autoestima de todes.

Contudo, ser negro(a) num país declaradamente racista, como o quer a famílicia do Poder Executivo, pede que as formas de se amar sejam mais intensas. Bell Hooks em Anseios: raça, gênero e políticas culturais alega que “uma forma politizada de cuidado mental é a nova fronteira revolucionária a ser cruzada pelo povo negro”.

Sim, os discursos a respeito das mortes de jovens negros a cada 23 minutos no Brasil continuam sendo necessários, o levante negro proposto por mim e pela Dra. Ana Luiza Nazário em texto publicado na Revista Afirmativa, também. A espiritualidade pode se mostrar um caminho de cura, fé nos Orixás, fé nos(as) nossos(as).

Mas se há um ponto intocado e que agora faço questão de mencionar é a propositura de uma vida comunitária e honesta. Em sua última passagem pelo Brasil, realizada em 2019, Angela Davis é recebida calorosamente pelo público do evento “Democracia em colapso?”[1] em São Paulo. O discurso dela passeia pelos complexos-industriais-prisionais, reafirmação da raça e, no ponto que mais me sensibiliza, a produção intelectual de escritoras brasileiras.

Angela Davis cita Lélia Gonzalez e recusa o título de líder de uma causa. Mais ainda: aponta, do seu lugar hegemônico em relação ao Sul-Global, a posição imperialista dos Estados Unidos da América. Há uma potente colocação a respeito de sermos todes americanos(as), uns do Sul, outres do Norte, mas todes americanos(as).

Trago essa fala, especificamente, para lembrar que também a escrita dela rememora que “nossas histórias nunca transcorrem isoladamente”, o que me faz concluir que ansiar por prestígio e fama em nome próprio são estratégias de cooptação capitalistas denunciadas pelo nosso pai contra-colonizador Abdias Nascimento.

Assim, quando vivemos em comunidade e conhecemos outras pessoas e histórias, permitindo-as falar e ser e estar “descobrimos que essas outras narrativas são, na verdade, nossas próprias narrativas” (DAVIS, 2018, p. 124). Conhecendo e vivendo e sendo uma comunidade negra, devemos deixar de lado valores que não são nossos, como o egoísmo e a vaidade e a ganância, afastando-os do nosso cotidiano.

Acredito que a fala de Bell Hooks a respeito da saúde mental negra nos leve a um caminho de amor, no qual reside a sinceridade, partilha e honestidade. Se pensarmos num contexto hegemônico, qualquer definição de sentimentos se vê ancorada em diretrizes acadêmicas. O simples “sentir” demanda uma referência bibliográfica, formatação adequada e outros pormenores.

É nesse âmbito que muitos irmãozinhos e irmãzinhas negras podem se deixar levar pelo academicismo e por sua vaidade para se perder num emaranhado de “estrelismos”. De minha parte, faço um apelo: não transformem a militância negra em uma bandeira pessoal de aprovação particular. Em especial: não anseiem a adoração de pessoas brancas ou negras.

A assimilação cultural, estratégia política de embranquecimento, é apresentada por Abdias Nascimento em O genocídio do negro brasileiro como um caminho de desestruturação da negritude, no qual há a “concessão aos negros, individualmente, de prestígio social”. Tal feito mina as relações pessoais porque transforma a luta negra em uma briga por espaços de poder e escalas de visibilidade midiática individuais.

Não é preciso muito para compreender que esses espaços são brancos e que qualquer pessoa negra jamais se encaixará plenamente neles porque não há lugar para a pessoa negra dentro de um sistema capitalista heteropatriarcal.

Se há vida pra se viver, que vivamos em conjunto e aprendamos a amar e a respeitar da mesma maneira. Caso contrário, repetindo a lógica da Casa Grande, jamais conseguiremos deixar a Senzala que nos assola.

Até o dia em que sejamos finalmente livres, resistiremos.  

Axé, axé, axé

*Mestrando em Direitos Fundamentais e Justiça pela Universidade Federal da Bahia, Membro do Grupo Núcleo de Estudos sobre Sanção Penal (NESP – Diretório Nacional / CNPq), Membro do Grupo Historicidade do Estado, Direito e Direitos Humanos: interações sociedade, comunidades tradicionais e meio ambiente (Diretório Nacional / CNPq), Bolsista FAPESB (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia) 2019/2020, Advogado.

 

 

 

REFERÊNCIAS

DAVIS, Angela. A liberdade é uma luta constante. Tradução de Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2018.

HOOKS, Bell. Anseios: raça, gênero e políticas culturais. Tradução de Jamille Pinheiro Dias. São Paulo: Elefante, 2019.

NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro. 4. Ed. São Paulo: Perspectivas, 2016.

 

Compartilhar

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

plugins premium WordPress