“A carne mais barata do mercado é a carne negra”: uma leitura do filme Quanto Vale ou é por quilo?

O filme Quanto Vale ou é por quilo? (2005), dirigido pelo cineasta paranaense Sérgio Bianchi, é mais um exemplo do recente cinema nacional de temática realista, cujo argumentos foram baseados em livros-reportagem ou romances que exploram a realidade do país e são, pretensamente, baseados em informações reais, principalmente para atrair o público.

Por Lecco França*

O filme Quanto Vale ou é por quilo? (2005), dirigido pelo cineasta paranaense Sérgio Bianchi, é mais um exemplo do recente cinema nacional de temática realista, cujo argumentos foram baseados em livros-reportagem ou romances que exploram a realidade do país e são, pretensamente, baseados em informações reais, principalmente para atrair o público. Do ponto de vista técnico, o filme mescla a linguagem documental com a ficcional, uma mistura interessante que muda o olhar do espectador, fundamental para a intenção do filme.

O roteiro é uma livre adaptação do conto “Pai contra mãe”, de Machado de Assis, publicado no livro Relíquias da Casa Velha (1906), entremeado por pequenas crônicas de Nireu Cavalcanti sobre a escravidão, extraídas dos autos do Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, e tem a intenção de revelar as mazelas e contradições de um país em permanente crise de valores. Para cumprir essa função, a narrativa vale-se de dois recortes temporais: o século XVIII, com o comércio de negros escravizados em expansão, em que o senhor branco dita as leis, e os tempos atuais, apontando para a virulência da exclusão social e uma Nova Ordem Mundial, em que as organizações não-governamentais desempenhariam um papel a princípio complementar ao do Estado. Neste sentido, a narrativa também faz uma crítica à beneficência social, às ONGs, e ao conceito de responsabilidade social das empresas. O discurso da participação e da postura politicamente correta, para Bianchi, representa a última palavra em matéria de exploração da mão de obra barata e da mais valia.

Na cena de abertura do filme, o espectador é remetido a um episódio ocorrido em 13 de outubro de 1799, quando uma expedição de capitães do mato captura escravos na zona rural do Rio de Janeiro e toma posse de um dos cativos de dona Joana, uma negra alforriada, interpretada por Zezé Mota, que havia comprado para si alguns escravos que pudessem ajudá-la na manutenção de sua pequena propriedade.

Decidida a fazer valer um direito seu que fora desrespeitado, ela forma uma comitiva, parte em direção à casa do mandante da expedição e o chama de “branco ladrão”. O episódio se conclui com seu posterior julgamento e condenação por invasão de propriedade e racismo. É presa e obrigada a pagar uma fiança estabelecida em 15 mil réis.

Do conto para o filme, na trama que transcorre atualmente, uma ONG implanta o projeto “Informática na Periferia” em uma comunidade carente. A personagem Arminda, que trabalha no projeto, descobre que os computadores foram superfaturados, decide denunciar a situação, e por esse motivo, coloca sua vida em risco. Do outro lado temos Candinho, jovem que está desempregado e com a mulher grávida, que sonha com a ascensão social, tem dificuldades para sobreviver e sustentar a família, quando recebe uma proposta para trabalhar como matador de aluguel. Ele então é contratado para matar Arminda, pois esta havia denunciado na imprensa o roubo do dinheiro público (o famoso caixa-dois), realizado pela Stiner Empreendimentos Assistenciais. Candinho aborda Arminda quando esta entra em casa, a joga no chão e ela, em estado de choque, em silêncio, não consegue suplicar pela sua vida. Ele então executa Arminda, grávida, com dois tiros no peito. Depois, volta para casa e dá a “boa nova” à família: finalmente havia conseguido um emprego. O trabalho novo era advindo de uma troca de favores, uma possível retribuição ao serviço que havia realizado: silenciar a voz daquela que denunciava o esquema por detrás da filantropia de fachada, não mais com a máscara de folha de flandres, mas com a morte.

Além deste final, bastante fiel ao texto machadiano, Bianchi apresenta um outro fim para o filme. Nele, Arminda se rende à lógica da luta de todos contra todos e propõe a Candinho que eles dividam entre si o dinheiro advindo de recursos não contabilizados pela Stiner, e que formem uma central de sequestros, a fim de redistribuir a renda concentrada na mão de poucos.

Dessa forma, o filme traz à tona a permanência na atualidade de nosso passado escravista, deixando clara a impossibilidade de olhar o presente sem levar esse passado em conta, assim como as persistentes desigualdades econômicas, sociais e de direitos no país. Na medida em que o conto machadiano é adaptado para a atualidade – nas figuras de Candinho, Clara, tia Mônica e Arminda – Bianchi mostra o elo imprescindível com a História para uma visão crítica da atualidade.

No atual jogo “democrático” e de “participação” da sociedade civil em prol de demandas não atendidas pelo Estado, as ONGs ou o Terceiro Setor, como se convencionou chamar – aparecem no filme funcionando como empresa, incorporando seu discurso típico e objetivando, enfim, o lucro. Responsabilidade social ou solidariedade são exaltadas e mobilizadas como marketing dessa nova indústria que gerencia a miséria e os miseráveis.

A crítica ácida de Bianchi recai, portanto, justamente naquilo que muitos têm entendido como solução ou alternativa para os dilemas inerentes ao capitalismo que são as ONGs. Além disso, o filme também mostra a miséria e a prisão como economicamente rentáveis e geradoras de emprego. Numa das cenas, quase ao final do filme, dois personagens definem o sequestro como mecanismo de distribuição de renda e de justiça social. A criminalidade surge então como elemento movimentador da economia, também a partir da construção de presídios. O personagem de Lázaro Ramos, quando estava preso, chegou a comparar os presídios brasileiros aos navios negreiros, devido às condições precárias de sobrevivência de ambos. As prisões e o tratamento dispensado aos detidos são de tal forma degradantes e desumanos que, em vez de recuperá-los para o convívio social — objetivo declarado da maioria das casas de correção do país —, os tornam ainda mais revoltados.

Dessa forma, o filme expõe mais uma vez a ferida da violência social no país que não cicatriza e traz uma reflexão interessante sobre a indústria da miséria no Brasil e a herança da escravidão na sociedade brasileira atual.

QUANTO VALE ou é por quilo? Direção: Sérgio Bianchi. Rio de Janeiro: Agravo Produções Cinematográficas, Riofilme, 2005. 1 DVD (104 minutos).

 

*Lecco França é professor universitário, pesquisador, escritor, curador e crítico de cinema. Membro da Associação de Profissionais do Audiovisual Negro (APAN). E-mail: leccofranca@gmail.com.

 

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