Resgatando a insubmissão da Revolta dos Búzios

Pensando numa perspectiva de longo prazo sobre o punitivismo e o medo implantado a população negra na cidade de Salvador, é impossível não falar de uma certa “Pedagogia do medo”, de uma pedagogia usada para suprimir as Forças Revolucionárias durante a Revolta dos Búzios.

Por Lorena Machado Gonçalves* / Imagem: entniabrasileira.com.br

Pensando numa perspectiva de longo prazo sobre o punitivismo e o medo implantado a população negra na cidade de Salvador, é impossível não falar de uma certa “Pedagogia do medo”, de uma pedagogia usada para suprimir as Forças Revolucionárias durante a Revolta dos Búzios. O levante tentou mover de algum modo as pedras do escravismo colonial com a implantação de uma política que fizesse com que os seus e suas descendentes se sintam acuados em reagir as formas de opressão.

Todas as pesquisas feitas por mim até agora mostram como é difícil não falar sobre traumas coloniais escravistas sem falar do medo, da vergonha pública como educação das pessoas negras nessa cidade. Ao invés de começar necessariamente da escravidão, quero começar falando a partir  de uma Revolução de  imenso legado para memória coletiva, que aconteceu em Salvador em 1798, a “Revolta dos Búzios”, também conhecida como “Revolta dos Alfaiates” ou “Conjuração Baiana”.  Toda a revolta foi arquitetada, planejada cuidadosamente por escravizados, mulheres e homens, sendo os atores principais 4 homens negros: Lucas Dantas, Manuel Flaustino, João de Deus e Luis Gonzaga. Pessoas forras, alfaiates e policiais de baixa patente, os então milicianos, que viam que aquele modo de vida sofrida que levavam estava diretamente ligada a sua condição de escravo ou de pessoa negra. Naquele momento, planejaram encontros no antigo desterro do Dique, planejaram estratégias e fizeram todo circuito de como deveria suceder essa revolta, revolta essa que tem precedentes e inspiração longe a nível de distância física, mas muito perto em ideologia de libertação.

No Haiti, alguns anos antes, havia se iniciado a maior revolta feita por pessoas escravizadas pela libertação de seu povo. Clamando para si o que seu antigo colonizador pregava, Igualdade, Liberdade e Fraternidade, o Haiti havia conseguido expulsar Napoleão e todas as tropas francesas, libertando o seu povo das mazelas escravistas que operavam aquele sistema. Todo esse processo que repercutiu mundo afora, repercutiu também em Salvador, que naquele momento contava inclusive com mais pessoas negras do que brancas na cidade. Essas mesmas pessoas brancas estavam aterrorizados com medo de um novo Haiti próximo delas, que pudesse acabar com a sua morte, da sua família e dos seus descendentes. A Revolta dos Búzios acendeu uma luz que mirava na libertação do povo negro, mas também por consequência resultaria na destruição de um esquema “empresarial” de criação das fortunas  para pessoas brancas, numa cidade tão frutífera e rica de trabalho produzido pela população negra como era a então Salvador e seu rico Recôncavo.

Como tratar então desse problema? Como a população branca enfrentou essa eminente ameaça sobre a sua riqueza, sobre a sua vida e sobre a perpetuação do seu povo? Assim que as notícias da Revolta chegaram a população e as autoridades, através dos bilhetes deixados na porta da igreja contando sobre o que haveria acontecer, nos dias seguintes houve  grande mobilização para desmantelar os  possíveis participantes da conspiração. Pessoas foram presas e interrogadas, devassas foram feitas e depois de um longo processo, a sentença final mais avassadalora veio não só para punir, mas para ensinar uma grande lição a toda população preta da cidade: 4 negros enforcados e esquartejados numa Grande Praça, tendo cabeças, braços, pernas e outras partes de seus corpos deixados pela cidade em lugares bem visíves, como parte da atuação direta de uma “Pedagogia do Medo”.

Podemos ainda hoje passar perto da Praça da Piedade, local dos enforcamentos e que atualmente conta com um singelo monumento em homenagem as vítimas, e pela “Rua do Cabeça”, que tem esse nome pois foi o local onde uma das cabeças foi deixada. Essa é apenas uma das histórias que podemos contar sobre como medo branco era direcionado para as comunidades negras. É importante acrescentar que  eles não apenas colocaram os corpos físicos das pessoas negras ali, também condenaram as próximas 7 gerações daqueles homens, uma espécie de maldição contra o legado daquela mensagem que se tentou passar. Claro! Não bastava tentar contra suas vidas, haveria de falar também sobre seus descendentes para que nenhum deles ousasse se levantar novamente.

Essa mesma pedagogia que marcou os quatro homens na Praça da Piedade não era nada de novo desde os tempos de navios negreiros. Era essa perspectiva de ensino para que os negros pudessem ser tornar mansos, cativos obedientes para a produção reprodução e depois seguir o curto e o único caminho final, as piores mortes que o colonizador pudesse inventar. Há registros de várias histórias de como esses seres humanos eram sangrados, mortos, dilacerados como punição, ou até mesmo puro prazer.

Essa violência deveria gerar um medo, um medo de se revoltar, um medo de poder levar adiante a sua vontade de viver. Se transformou em banzo. É isso que se instalou, a depressão dos escravizados, onde agora eles mesmos optavam por tirar suas vidas. Era complexo o tipo de articulação a ser organizada para uma revolução, um tipo de articulação dentro de um sistema que mataria, fisicamente ou mentalmente, no menor deslize. Não só os mataria, mas deixaria com medo os seus iguais e ameaçaria toda a sua geração.

Hoje mais rebuscada, vista as complexidades do mundo contemporâneo, as articulações desse tipo de pedagogia, de ensinar a ser submissa e a ter medo do que pode vir acontecer quando se levanta a voz, nos deixa numa perspectiva onde a torneira sempre pinga, mas nunca está em abundância para o nosso Bem Viver. É complexo tentar entender a perspectiva de uma cidade como Salvador, onde as pessoas negras ainda são jogadas no moedor do turismo e da exploração que insiste em colocá-las nessa linha de frente para servir na informalidade. Sofrendo, nos mais diversos tipos de dificuldades que ensina que se as pessoas não fizerem aqueles tipos de trabalho, não poderão alimentar seus filhos e filhas ou dar conta de pagar os meios básicos para se viver. A pedagogia do medo que em 1798 levou cruelmente aqueles quatro homens, João de Deus, Lucas Dantas, Manoel Faustino e Luiz Gonzaga, hoje ameaça a vida de várias outras pessoas negras na cidade de Salvador.

A pedagogia do medo e do horror, elaborada para evitar revoluções como as feitas no Haiti e mais a frente a Revolta dos Malês e a Revolta dos Búzios em Salvador, espalhou um pânico entre a população branca no mundo frente a uma maquinaria fadada ao fracasso como a da escravidão. Por meios outros,  essa tutela da vida continua implantada nas mentes de várias pessoas negras na cidade de Salvador. Como quebrar essas correntes? Como trabalhar problemáticas tão complexas entendendo que precisamos sair dessa situação, mas que há também necessidades básicas, e que precisamos nos alimentar e ter um mínimo de vida com dignidade e um mínimo de conforto? É uma perspectiva difícil mas não impossível, temos que falar sobre porque sentimos medo e temos que, principalmente, cultivar nosso legado de insubimissão para aprender a minar essa rotina incansável da incerteza do amanhã.

 

*Soteropolitana,  tem 23 anos, é Bacharel em Humanidades pela UFBA e cursa Serviço Social na mesma Universidade. É pesquisadora bolsista do grupo LAPROA (UFBA) na área de Psicologia do Desenvolvimento Humano com foco em adolescentes e jovens adultos. Entusiasta e estudiosa sobre raça e gênero no contexto brasileiro

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