Por Monique Prado / Imagem: Diego Bresani
A segregação afetiva consagra o preterimento no corpo da mulher de pele escura, já que o racismo produz o estrangulamento dos afetos. Afinal quem é o sujeito desejado em uma sociedade recortada pelo racismo? Será que esse desejo é capaz de formar comunhão entre sujeitos sem que isso se baste a esfera privada ou a manutenção dos afetos em lugares escondidos?
Alterar esse imaginário e a forma com a qual as mulheres negras se relacionam é a proposta trazida por alguns intelectuais os quais vêm pensando o afeto como elemento central para que pessoas negras gozem do seu estado de sujeitos.
Se as relações socio-afetivas produzidas até aqui são disfuncionais e causam desequilíbrio nos afetos, em razão dos atravessamentos de raça, gênero e classe, tal sistema precisa urgentemente sofrer uma transgressão no seu modus operandi.
As sujeitas marcadas pelo encontro dessas opressões estão com a caneta na mão e ponto. Não precisam de ninguém para se autodeclararem sujeitas. Entretanto, a segregação afetiva ainda é parte de um problema estrutural produzido pelo racismo, de maneira que as mulheres negras se defrontam com dois problemas no campo dos afetos: a hipersexualização de seus corpos, os quais serão aceitos pela branquitude e, no outro extremo, o completo enojamento/apagamento que as levam ao celibato forçado. Essas são dimensões já investigadas na academia por autoras como Virgínia Bicudo, Neusa Santos e Claudete Alves da Silva Souza que lançaram os seus olhares sobre a constituição do sujeito negro identificando também o recorde de gênero.
Se engana quem entende que o preterimento de umas e a hipersexualização de outras mulheres negras é apenas uma anomalia social. Ao contrário, a disfunção dos afetos é a forma estrutural da branquitude continuar produzindo colonização, já que essas mulheres sequer são consideradas em um relacionamento.
Todavia, os corpos dessas mulheres negras – que aparentemente estariam aprisionados, resumidos a estatísticas de preterimento contínuo, hipersexualização ou celibato forçado – se encontram em outro patamar da experiência humana, pois como diria Lélia Gonzales, as mulheres negras são capazes de perceber coisas particulares das vivências sociais por estarem na base.
Claro que não há romance, mas as circunstâncias em que as mulheres negras enfrentam, geralmente muito cedo, com abandono paterno e preterimento afetivo e uma atrofia amorosa-sexual, fazem com que elas entendam a importância do cuidado nas relações.
O cuidado passa a ser então um valor intrínseco cujo qual é facilmente encontrado nas mulheres negras, já que são elas quem levantam antes do sol nascer; pegam livros para ingressar na academia e leem duas vezes (a literatura hegemônica, bem como a descolonial que os bancos universitários não oferecem) ou ainda são elas que se submetem ao trançamento que dura horas pelas mãos de outras mulheres de pele escura.
Nesse momento, é importante restaurarmos o ideal de amor proposto pela pensadora africana Sobonfu que compreende o amor como uma dimensão que se expressa pelo cuidado de si, do(a) parceiro(a) e da coletividade.
No mesmo sentido o filósofo Renato Noguera destaca em seu livro “Porque amamos” alguns elementos importantes para desfrutar do amor. Para ele, a arte de amar envolve saber negociar, hospedar o outro, acolher, gerenciar o espaço e os conflitos. Para o intelectual, amar é contar histórias. Ora, não é novidade que as mulheres negras detém essas habilidades desde sempre.
Ocorre que tais habilidades não podem vir divorciadas da reciprocidade, de modo que mulheres negras não devem ser vistas como “gestoras do cuidado”, mas sim conhecedoras das demandas primárias de afeto, o que desafia inclusive a lógica convencional do mundo branco-ocidental, o qual aceita joguinhos, descaso, controle e manipulação, elementos que passam a ser totalmente rechaçados por esse paradigma afetivo decolonial.
Com efeito, a reciprocidade é central, elemento que serve como termômetro de uma relação saudável, longe do misticismo dos contos de fadas da Branquitude que coloca a mulher sempre como uma figura que deve ser passiva, cortejada e submissa, mas afinal de que mulheres estamos falando como diria Sueli Carneiro? As mulheres negras sempre estiveram em posição contrária a essa passividade.
Mas, se as mulheres negras não são as responsáveis por organizar a ordem das relações afetivas como é possível emancipar esses corpos que muitas vezes já se encontram em desesperança e enrijecidos?
Anin Urasse, teórica mulherista afrikana, vai dizer sobre a quebra da matriz ocidental. Para a pesquisadora nem mesmo a decolonização é suficiente para rachar o racismo. Para ela, é preciso focar em uma ordem onde as pessoas negras passam a ser criadoras das suas próprias histórias, ou seja, tenham autonomia. Nesse caso, para analisarmos o amor, é preciso partir de uma matriz africana cujo senso de coletividade extrapola o individualismo.
Reconhecer-se enquanto sujeita, merecedora de afeto, é uma forma simbólica de romper com a neocolonização. Por isso Bell hooks em “Vivendo de amor” esclarece que é importante o reconhecimento do amor interior ou que ela vai chamar de “auto-amor”. Nos permitir sentir e ter contato com outras pessoas que não seja a partir da confusão, do controle ou pela dor. Para a autora é preciso combater esse processo interior de autodestruição que o racismo produz em nós pessoas pretas, se desvencilhando do patriarcado, do racismo e do capitalismo. Em último grau, o amor deve ser uma experiência nutritiva e promover o crescimento espiritual e o bem-estar.
Em razão do seu poder transformador, o amor é capaz de alterar as estruturas sociais.
Afinal, se amar é contar história, quais são as histórias que queremos contar?