Sobre Vivências Negras na Velhice: uma leitura de O Velho Rei e o Dia de Jerusa

Nas últimas décadas têm sido expressivo o crescimento da população idosa no Brasil, com o consequente aumento da expectativa de vida. Entretanto, segundo o último Relatório Anual das Desigualdades Sociais, produzido pelo Núcleo de Estudos de População, da Universidade de Campinas (Unicamp), publicado em 2011, a expectativa de vida entre pessoas

Por Lecco França*

Imagem: Reprodução O Velho Rei

Nas últimas décadas têm sido expressivo o crescimento da população idosa no Brasil, com o consequente aumento da expectativa de vida. Entretanto, segundo o último Relatório Anual das Desigualdades Sociais, produzido pelo Núcleo de Estudos de População, da Universidade de Campinas (Unicamp), publicado em 2011, a expectativa de vida entre pessoas negras no país ainda é menor que a de pessoas brancas (67 anos para pessoas negras e 73 anos para pessoas brancas, em média). Alguns fatores podem justificar esses dados, como a contrastante situação socioeconômica que diferencia esses grupos, aliados ao abandono familiar e à solidão.

Não distante de questões atuais que cerceiam nossa sociedade, os cinemas negros brasileiros também têm se debruçado sobre a temática da velhice em pessoas negras, já que nas sociedades africanas e afrodescendentes, os mais velhos são reconhecidos e respeitados como detentores do conhecimento e das memórias, individuais e coletivas. Nesse sentido, duas produções em curta-metragem dirigidas por diretoras baianas trazem interessantes olhares sobre essa fase da vida e possibilita pertinentes reflexões: O velho rei, uma produção da Ganga Zumba Produções e Obá Cacauê Produções, com roteiro, produção e direção de Ceci Alves, lançado em 2013, e O dia de Jerusa, uma produção da Odun Filmes, com roteiro e direção de Viviane Ferreira, lançado em 2014.

Jornalista de formação, Ceci Alves também é uma reconhecida documentarista e curta-metragista, premiada no Brasil e no exterior, com forte atuação na militância político-social, ao investir no protagonismo de sujeitos invisibilizados, de uma forma afetiva e engajada. Além de O velho rei, dirigiu os curtas-metragens Doido Lelé (2009) e Da alegria, do mar e de outras coisas (2012). Já Viviane Ferreira, também de Salvador, mas atualmente residindo em São Paulo, além de advogada, é formada em Cinema pela Escola de Cinema e Instituto Stanislavisky. Dirigiu seu primeiro curta-metragem, intitulado Dê sua ideia, debata, em 2008. Sua produção audiovisual também está fortemente vinculada ao ativismo negro. Foi presidenta da Associação de Profissionais do Audiovisual Negro (APAN), presidenta do Comitê Brasileiro de Seleção do Oscar 2021, e assumiu recentemente a presidência da SPCine, empresa estatal do município de São Paulo, que objetiva promover o desenvolvimento da indústria audiovisual local.

O velho rei é, acima de tudo, um filme sobre afeto, entre pai e filha. A partir de um pedido inusitado de Cleonice (interpretada por Jussara Mathias), que vive fora do país, Climério (interpretado por Antonio Pitanga), passa a gravar sua rotina diária e tudo o que vê à sua volta, com uma câmera filmadora enviada por ela. O pai cuida da casa, passeia pelas ruas do Rio de Janeiro e encontra os amigos da filha, tudo registrado nas imagens em vídeo. Uma das bonitas cenas que ilustram essa relação de afetividade é a cena final em que Climério dança, alegre, na sala do seu apartamento, ouvindo a canção “BR-3”, interpretada por Tony Tornado, enquanto a filha, emocionada, observa tudo pela tela do computador. A trama investe nessa apaixonada relação, marcada pela distância e pela saudade, situação recorrente na vida de muitas pessoas, mas com certeza intensificada pelo atual contexto de pandemia de Covid-19, que afastou fisicamente muitos familiares. Nessa espécie de carta em vídeo, que funciona como meio de comunicação entre os dois, aparece a figura do contador de histórias, os chamados griôs nas culturas africanas, já que Climério assume a narração da história, que é também sua. Para o cineasta e escritor nigeriano Ngugi Wa Thiong’o, os filmes são os griôs da modernidade, já que assumem a função dos mais velhos em narrar as histórias e memórias de um povo, memórias essas armazenadas em uma máquina, a “caixa mágica”.

Em O dia de Jerusa, o afeto entre diferentes gerações também transborda a narrativa, dessa vez, entre uma mãe e avó e uma jovem desconhecida. Na trama, Silvia (interpretada por Débora Marçal) trabalha em uma empresa de pesquisa de público. Ela foi encarregada de ir à casa de Jerusa (interpretada por Léa Garcia), uma senhora que vive sozinha no bairro do Bixiga, em São Paulo, para preencher um formulário sobre uma marca de sabão em pó. Entretanto, durante a entrevista, ela foi surpreendida com respostas nada convencionais de Jerusa, que se remetia a lembranças de sua vida a cada pergunta feita: sobre a mãe, que lavava roupas no rio, sobre seu casamento e marido falecido, sobre os filhos e netos. Inicialmente impaciente, Silvia foi se envolvendo com Jerusa, que fez com que a jovem percebesse a vida de uma maneira diferente. A cena que destaco para ilustrar essa relação de carinho e de cuidado entre as duas, que foi se construindo ao longo do filme, é quando Silvia ensina a Jerusa uma cantiga de aniversário que aprendeu na Bahia. Isso porque, no dia da visita, Jerusa estava comemorando 77 anos de vida e, inclusive, ela havia preparado um almoço para receber filhos e netos, mas ninguém apareceu. Em 2020, o curta ganhou uma versão em longa-metragem, intitulado Um dia com Jerusa, que aprofunda esse encontro e explora outras questões, como ancestralidade, mercado de trabalho, questões de gênero e relações homoafetivas.

Além do tema da velhice que entrelaça as duas obras e de um olhar sensível das diretoras, para um assunto tão delicado, os dois curtas-metragens têm outras características semelhantes: em relação às locações, as histórias ocorrem, majoritariamente, no apartamento de Climério, por um lado, e na casa de Jerusa, por outro. Nesse sentido, vale mencionar o cuidadoso trabalho de direção de arte, assinado por Laura Carvalho, no cenário da casa de Jerusa, que trouxe uma deliciosa experiência visual e de intimidade para o espectador. Já em O velho rei, a locação interna se caracterizou pela simplicidade, mas as externas, com belas imagens da cidade do Rio de Janeiro, ilustram uma eficiente direção de fotografia, assinada por Pedro Semanovschi.

A trilha sonora também ganha destaque nos dois filmes, enfatizando momentos expressivos das tramas. Em O velho rei, a canção “BR-3”, já mencionada na cena da dança de Climério, e em O dia de Jerusa, a canção “Justo”, de Marquinho Dikuã, que marca a celebração do encontro entre Silvia e Jerusa.

 

Os dois filmes estão disponíveis completos no YouTube.

O Velho Rei – 2013

https://www.youtube.com/watch?v=Y5evaJufjZc

O dia de Jerusa 2014

 

 

*Professor universitário, pesquisador, escritor, cineclubista, curador e crítico de cinema. Membro da Associação de Profissionais do Audiovisual Negro (APAN). E-mail: leccofranca@gmail.com.

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