81% do ano letivo é afetado por tiroteios no entorno das escolas públicas em Salvador (BA)

Segundo o relatório do Instituto Fogo Cruzado e da Iniciativa Negra por uma Nova Política de Drogas, dos 728 tiroteios mapeados próximo a unidades escolares, 43% ocorreram durante ações da polícia

Por Andressa Franco

A violência armada é parte do cotidiano das escolas públicas soteropolitanas. Essa é a conclusão do levantamento inédito realizado pelo Instituto Fogo Cruzado e pela Iniciativa Negra por uma Nova Política de Drogas. Segundo o relatório, dos 200 dias que devem compor o ano letivo, em média, em 161 deles foi registrado ao menos um tiroteio no entorno de uma unidade escolar de Salvador (BA). Isso quer dizer que em 81% do ano letivo, as crianças e adolescentes matriculadas em escolas estaduais ou municipais da cidade convivem com a violência armada no entorno de suas escolas.

O relatório revela que 1 em cada 4 tiroteios mapeados na capital baiana ocorre em horário letivo e em até 300 metros de distância de escolas públicas. Em pouco mais de 2 anos, 76% das escolas registraram tiroteios no seu entorno. Os dados considerados na pesquisa vão de 04 de julho de 2022 a 30 de agosto de 2024, e foram fornecidos pelas secretarias de educação à Defensoria Pública da Bahia. 

“Mesmo acompanhando a evolução dos índices de insegurança pública em toda a Bahia nos últimos anos, esse dado nos foi bastante chocante”, comenta Dudu Ribeiro, cofundador e diretor executivo da Iniciativa Negra, organização parceira do Instituto Fogo Cruzado na Bahia. Para ele, esse cenário não recebe a devida atenção. “Estamos falando que milhares de estudantes são impactados pela violência armada, isso afeta não apenas seu rendimento escolar, mas sua saúde mental. Crianças e adolescentes negros que são desde cedo apresentados a uma lógica de violência que atinge desde a sua saída de casa até a sua entrada e permanência na escola.”

Uma das expectativas do levantamento é que ele seja aprofundado com novas coletas de dados, para mapear por exemplo como essa comunidade escolar mais afetada pela lógica da violência armada está respondendo nas provas de rendimento.

43% dos tiroteios ocorreram durante ações da polícia 

Além disso, o objetivo é chamar atenção dos entes institucionais para uma mudança de rota da política de segurança pública na Bahia.

Isso porque a polícia se destaca como um dos motores dessa violência. Do total de tiroteios registrados no entorno de escolas (728), 43% ocorreram durante ações ou operações policiais (315). Ao analisar separadamente a quantidade de tiroteios com e sem envolvimento de policiais, a chance de um tiroteio envolvendo forças de segurança ocorrer no entorno escolar em dia letivo (29%) é maior do que a de tiroteios que não envolveram policiais (24%).

“Esperávamos que, ao contrário das ações de criminosos, as forças policiais contribuíssem para a nossa segurança e não colocassem a comunidade escolar mais em risco”, pondera Maria Isabel Couto, diretora de dados e transparência do Instituto Fogo Cruzado. Ela ressalta que não há qualquer indicador que mostre a desarticulação de grupos armados a partir dessa estratégia, ou o aumento da segurança. “O que temos são milhares de crianças com sucessivos dias de aulas interrompidas, ou de aulas em meio ao fogo cruzado. Como é possível, crianças terem garantido seu direito à educação e segurança num bairro em que todas as escolas registraram tiroteios em seu entorno, como em Fazenda Grande do Retiro, em que registramos 39 ocorrências?”, questiona.

Para Dudu, é preciso utilizar esses dados para pressionar por ações do poder público. O ativista defende o diálogo entre as secretarias de Educação e da Segurança Pública, para estabelecer protocolos que evitem operações policiais em áreas escolares. Além de ampliar o entendimento de que segurança púbica “não é só caso de polícia”.

Para mensurar a violência armada no entorno das unidades educacionais, o levantamento partiu do total de tiroteios registrados em Salvador pelo Instituto Fogo Cruzado. Os dados então foram cruzados com a localização das escolas municipais e estaduais da capital. No período analisado, foram mapeados 2.793 tiroteios e 26% ocorreram no entorno de uma escola. O total de tiroteios mapeados próximo a unidades escolares foi de 728, ou seja, em média, são registrados 30 tiroteios por mês em uma distância de até 300 metros dos colégios da cidade.

Entre as escolas municipais e estaduais analisadas, o levantamento considerou 593 unidades de ensino. Foram registrados tiroteios no entorno de 443 delas (75%), algumas chegaram a registrar 10 ou mais tiroteios no seu entorno no período analisado.

Dudu Ribeiro lembra que os dados mostram ainda a desigualdade que caracteriza a violência armada na capital. “Praticamente um terço dos tiroteios no entorno de escolas se concentram em 10 bairros de Salvador. Esses dados deixam claro que não podemos dizer que locais como Fazenda Grande do Retiro, Beiru ou Lobato são bairros violentos. A população desses locais, na verdade, é violentada.”

Defesa de um protocolo nacional

Em agosto desse ano, o Ministério da Educação (MEC) enviou um ofício ao Conselho Nacional de Educação (CNE), sugerindo a criação de uma comissão para debater os efeitos das operações policiais no sistema educacional brasileiro. Além de debater formas de reparação em casos de suspensão de aulas e fechamento de escolas. 

Também em agosto, o Ministério Público Federal (MPF) no Rio de Janeiro enviou um ofício à Secretaria de Educação Básica do MEC, solicitando informações sobre o estabelecimento de uma diretriz nacional a respeito do impacto das operações policiais no sistema educacional. No documento, o órgão defendeu a necessidade de estabelecer regras sobre a reposição de aulas e compensação pelos dias letivos perdidos. 

O tema também já foi discutido no âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF). Está marcado para a próxima quarta-feira (13) o início do julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, conhecida como ADPF das Favelas, que trata da letalidade policial especificamente no Rio de Janeiro.

Entre os procedimentos relacionados à essa ação, a Corte obrigou o uso de câmeras corporais nas fardas dos agentes e nas viaturas. Além do aviso antecipado das operações para autoridades das áreas de saúde e educação para proteger escolas de tiroteios e garantir atendimento médico à população.

“Já existe um movimento que a gente quer impulsionar para estabelecer um protocolo nacional que oriente e reduza a atuação de operações policiais em áreas escolares, que controle o uso da força, e permita que a escola seja de fato um ambiente de produção de vida, e não de insegurança”, finaliza Dudu.

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