Por Karla Souza e Patrícia Rosa
Joenilde Rodrigues Paulino Guajajara foi mais uma vítima de feminicídio indígena no Brasil. Ela tinha 33 anos e foi morta com um golpe de faca na última quarta-feira (21), na residência onde morava, em Amarante do Maranhão (MA). A Polícia Civil confirmou que Wendel Machado, que era marido da vítima, segue como principal suspeito. Ele foi preso na última sexta-feira (23), no povoado Piripiri, entre as cidades de Amarante e Grajaú.
Técnica de enfermagem, Joenilde pertencia ao Território Indígena Arariboia. Nesta quinta-feira (22), a ministra dos Povos Indígenas e também maranhense, Sônia Guajajara, manifestou sua solidariedade e revolta diante do feminicídio de Joanilda, que pertencia ao mesmo território que ela. “Quando falamos que mulheres não estão seguras sequer em sua própria casa, é sobre isso. Joanilda foi morta em sua residência, lugar que deveria ser um espaço seguro para ela e para todas as mulheres”, declarou em suas redes sociais.
De acordo com informações da polícia, Wendel foi denunciado pela primeira vez em 2014, por agredir fisicamente Joenilde e a filha dela, que era enteada dele. Em 2021, o agressor foi preso como principal suspeito do assassinato de Carla Tayra Sousa de Oliveira, que foi morta aos 19 anos em Imperatriz (MA).
Crescimento de 500% em 20 anos no Brasil
O assassinato de Joenilde Guajajara infelizmente não é um caso isolado. Os casos de feminicídios indígenas no Brasil cresceram de forma alarmante nos últimos 20 anos, com o aumento de 500% entre 2003 e 2022. De acordo com o ‘Relatório Técnico sobre Homicídios contra Mulheres e Adolescentes Indígenas’, elaborado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) em parceria com o Ministério dos Povos Indígenas, 394 feminicídios foram registrados no período. A maior parte das vítimas é jovem, solteira e com menor escolaridade.
A região Centro-Oeste apresentou o maior número de feminicídios, com 157 casos, sendo Mato Grosso do Sul o estado mais violento, totalizando 149 casos. Além do machismo estrutural, a negligência estatal em prevenir e combater a violência contribuiu para o agravamento dessa situação. O relatório revela que as mulheres indígenas enfrentam múltiplas formas de violência, incluindo física, psicológica, ameaças e humilhações.
Amaue Jacinto, indígena guarani Nhandewa, diretora executiva da Associação de Mulheres Indígenas Organizadas em Rede (Amior), destaca que, embora a violência de gênero seja discutida na sociedade, as agressões sofridas pelas mulheres indígenas permanecem à margem das políticas públicas. “Não existe nenhum mecanismo de combate e prevenção do machismo dentro de territórios, quando as mulheres tentam fazer para se defender estão comprometidas.”
A ativista chama atenção para as dificuldades e o temor das vítimas de violência em formalizar as denúncias. Segundo ela, as chances de acessar o sistema de justiça estatal são quase nulas, e mesmo quando alguém consegue ser a exceção e denunciar, é certo que sofrerá repressão.
Violência sexual contra indígenas tem relação direta com invasão dos terrirtórios
O ‘Relatório Violência contra os Povos Indígenas no Brasil – Dados de 2023’, divulgado pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi) no último mês de julho, aponta que 208 indígenas foram assassinados em 2023, um aumento de 15,5% comparado ao ano anterior, quando 180 casos foram registrados. O levantamento mostra que parte dos crimes evidenciam a relação entre as violências sexuais e as invasões aos territórios indígenas.
A antropóloga e assessora do Cimi, Lúcia Helena Rangel, explica que o conflito pela terra é uma das principais razões para os assassinatos. “As desavenças vão aumentando e a violência dos fazendeiros, dos supostos proprietários de terra, tem sido um fator constante. Essas situações têm um histórico cruel e com muitas mortes violentas”, aponta a antropóloga.
O estudo aponta que no ano passado foram registrados 23 casos de violência sexual contra crianças, adolescentes e mulheres indígenas adultas. Os registros foram feitos em 9 estados, com maior incidência no Mato Grosso do Sul (8), seguido por Roraima (5). Do total do número de violências, onze foram contra crianças e adolescentes, todas com idades entre 5 e 14 anos. Além disso, de acordo com este Relatório, em 2023 foram registrados sete feminicídios e três tentativas de feminicídio contra mulheres indígenas.
A pesquisa destaca a realidade vivida na Terra Indígena Yanomami, localizada em Roraima e Amazonas. As meninas e mulheres indígenas continuam a sofrer violências sexuais praticadas por garimpeiros estabelecidos ilegalmente dentro da Terra Indígena. Situações de aliciamento e de troca de sexo por comida ocorrem de forma reiterada e cotidiana naquela região, aponta o estudo.
Amaue Jacinto destaca que as violências são consequências diretas das invasões e exploração dos territórios indígenas. Ela ressalta como a violência colonial atravessa gerações. “Eles se valem do patriarcado e do capitalismo, que juntos atravessam as estruturas sociais originárias, desequilibrando-as. As consequências disso são que a violência contra as mulheres indígenas aumenta, pois os homens indígenas dessas comunidades assimilam e reproduzem o processo de dominação e exploração sobre as mulheres.”
Subnotificações e invisibilização
A subnotificação dos casos de feminicídio indígena também é um problema recorrente. A invisibilização dessas violências reflete o racismo e a negligência por parte dos órgãos de justiça e da sociedade. “A subnotificação é sinônimo de invisibilização da realidade, de descuido e descaso com a existência e cidadania dos povos indígenas, especialmente das mulheres”, comenta a ativista e antropóloga indígena da etnia Pankararu, Elisa Urbano Ramos. Ela é coordenadora do Departamento de Mulheres Indígenas na Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (APOINME).
Outro fator apontado pela antropóloga é a dificuldade de diálogo entre mulheres indígenas que falam a língua materna com os servidores que não entendem o que elas denunciam. Outro ponto é a perda do direito das vítimas sobre o próprio território tradicional, pois uma das repressões que sofrem é a expulsão da comunidade. Isso faz com que as mulheres evitem denunciar e tentem esconder ao máximo as violências que sofrem, pois não têm garantia de proteção para suas vidas.
Apesar dos desafios, a APOINME e outras organizações têm se mobilizado para apoiar as mulheres indígenas na luta contra o feminicídio. Elisa Ramos explica que há mobilizações para solicitar que o Estado brasileiro preste auxílio na luta em defesa das meninas e mulheres indígenas.
Políticas públicas
Em 2023, o governo federal anunciou a criação do Programa de Necessidades da Casa da Mulher Indígena, que prevê a instalação de seis Casas da Mulher Indígena, uma em cada bioma brasileiro (Caatinga, Pampa, Pantanal, Amazônia, Cerrado e Mata Atlântica). Esses espaços farão parte da rede de enfrentamento e prevenção à violência, com serviços de acolhimento voltados às necessidades específicas das mulheres indígenas.
“Extremamente necessário”, é como Amaue vê o projeto de lei, entretanto ela considera como superficial, pois não abrange a raiz do problema. Para ela, o quadro ideal para o amplo apoio às mulheres indígenas vítimas de violência é que, para além da casa de acolhimento, esses crimes sejam investigados e os agressores punidos, com base na Lei Maria da Penha.
“Para ter o direito de retornar para o seu território de origem, se não for feito dessa forma as casas de mulheres indígenas não vão suportar a demanda. Uma mulher indígena precisar fazer uso dessa política pública, significa que ela perdeu o seu direito constitucional sobre seu território original e consequentemente seus filhos também”, comenta Amaue Jacinto.
A Defensoria Pública do Estado do Paraná, lançou em abril deste ano o Observatório da Violência contra as Mulheres Indígenas no Estado do Paraná. De acordo com a nota publicada pelo órgão, o observatório é resultado da falta de dados sobre as violências sofridas por mulheres indígenas. A ação tem como objetivo, registrar formalmente os casos ocorridos no estado do Paraná e subsidiar a elaboração de políticas públicas específicas para a prevenção e enfrentamento das violências de gênero contra essas mulheres. As situações de violências podem ser registradas através do link.