Por Monique Rodrigues do Prado* / Imagem: Colagem Khan Nova
Aproveitar a imaginação como instrumento de transformação. Essa tem sido minha válvula de escape para concretamente começar a desenhar soluções que nos distancie de um sistema de opressão, sobretudo quando a agenda é o antirracismo. Em fevereiro de 2020 a 23ª mostra de cinema de Tiradentes promoveu discussões acerca da imaginação como forma de expressão, sobretudo em um cenário de desesperança social. A pesquisadora Helena Vieira nos brindou com a sua fala:“Se tem uma palavra que pode caracterizar o nosso tempo, essa palavra é esgotamento. O sentimento desesperançoso ocupa a maior parte de tudo que vivemos hoje. Muitos dizem que devemos sentir esperança, mas eu não acredito nisso. Esperança é um sentimento triste, esperança é uma coisa completamente colonizada, os europeus é que têm esperança”. A pesquisadora indicou justamente a imaginação como um caminho importante para inventar um novo mundo e permitir formas de resistência, de luta, de expressão e de desejo pela vida. A partir dessa ideia da imaginação como possibilidade, Helena levantou a pergunta: “Como é que nós podemos imaginar? Como pensar aquilo que não foi pensado? Que exercício se pode fazer ou como apresentar ao mundo um mundo outro que não seja esse que estamos vivenciando? Estamos num mundo que desabou, ou, como dizem os ianomâmis, o céu está caindo”. O afrofuturismo tem esse poder, observar a partir da imaginação outras cosmologias, estéticas e racionalidades como uma pluralidade nas vozes narrativas. Sem dúvida, enquanto recurso instrumental uma das chaves da imaginação é o cinema. Agora: É possível construir um futuro sem se ver nele? Qual é a mensagem do mainstream quando não há inclusão de pessoas negras nas narrativas futuristas? Não há negros no futuro? Como resposta a essas questões existenciais, o afrofuturismo tem se mostrado como um movimento que conecta hábitos ancestrais em termos de tradições, identidade, linguagem, religião, musicalidade, entre outras práticas, reaproximando a diáspora africana. Da escassez à transformação social, o afrofuturismo é observado a partir da ressignificação da identidade negra. Nesse sentido, a escritora Ytasha Womack o define como “uma intersecção de imaginação, tecnologia, futuro e libertação.” Assim, se de um lado o racismo literalmente asfixia e não nos deixa respirar, de outro lado o afrofuturismo é devoto à transcendência do modelo colonial de vida, criando espaços onde pessoas negras consigam ver-se incluídas experienciando a plenitude da liberdade. A série original americana Star Trek de ficção científica é pioneira no tema, já que tinha no seu elenco a atriz Nichelle Nichols, mulher negra que levava representatividade futurista na televisão aberta em meio à conjuntura de segregação que assolava os Estados Unidos dos anos 60.
Em entrevista, a atriz conta o episódio em que foi abordada por Dr. Martin Luther King que era um grande fã da série. A atriz diz que na ocasião compartilhou com o ativista que estava desistindo do emblemático papel, já que tinha interesse em traçar novos rumos para sua carreira. Dr. King abismado lhe disse: “Você não pode desistir porque você é a imagem de onde queremos ir. Você está há 300 anos a nossa frente. Pela primeira vez estamos nos vendo como nós gostaríamos de nos ver todos os dias: inteligentes, iguais e bonitos. Você não tem um papel de um negro, você tem o papel da igualdade”. Longe dos carros voadores, da inteligência artificial e de ideias de colonizar outros planetas, o afrofuturismo visa mostrar caminhos possíveis para que pessoas negras em um cenário de opressão continuem a sonhar, razão pela qual a atriz ficou convencida de que deveria permanecer na série.
Isto é, o movimento utiliza a tecnologia, a estética, o afrossurrealismo, a ficção cientifica como mecanismo para recontar a história a partir de produções negras, produzindo novas narrativas especulativas e entusiastas sobre pessoas negras em face do estrago histórico euro-ocidental que causou apagamento, opressão e apropriação aos diversos campos e saberes da diáspora africana, razão pela qual o afrofuturismo tem mobilizado não só o audiovisual, como também artistas, músicos, escritores e estudiosos que caminham na direção de enaltecer os elementos da cultura negra. Na realidade americana, nomes como os de Sun Ra, Jimi Hendrix, Missy Elliott, Tim Fielder são comumente referenciados como precursores desse movimento. Além disso, o filme Pantera Negra, ficção cientifica com todo o seu elenco negro, traz várias referências sobre esse assunto.
No Brasil, os pensadores Morena Mariah e Fabio Kabral são nomes que estão encabeçando essa conversa. Para o escritor Fabio Kabral, estudioso do tema, as narrativas afrofuturistas são fundamentais para o movimento e devem conter quatro elementos estruturais, quais sejam: 1) Protagonismo de personagens negros; 2) Narrativa negra de fantasia e/ou ficção científica; 3) Centralidade da agência africana e 4) Protagonismo de autores negros. Nessa conjuntura, nas palavras do autor: “Afrofuturismo é esse movimento de recriar o passado, transformar o presente e projetar um novo futuro através da nossa própria ótica”. E conclui sobre o conceito: Afrofuturismo seria a mescla entre mitologias e tradições africanas com narrativas de fantasia e ficção científica, com o necessário protagonismo de personagens e autores negras e negros. Já Morena Mariah – criadora do projeto Afrofuturo, do qual visa aproximar o conceito de afrofuturismo por meio de oficinas – entende que o movimento é demarcado por uma espécie de renascimento das pessoas negras. Das milenares tecnologias oferecidas do antigo Egito no contexto das civilizações, o afrofuturismo cria um movimento emancipatório e nos guia em direção a ressignificação do discurso produzido pelo pensamento eurocentrado, já que diferentemente do que a história ocidental conta, nem sempre negro foi sinônimo de escassez e desumanização. Assim, por mais que estejamos exaustos, não esqueçamos que além de resistência, somos potências e, apesar da branquitude trabalhar incansavelmente para apagar as nossas histórias e silenciar as nossas vozes, que sejamos capazes de reforçar o nosso compromisso com a nossa ancestralidade que nos entregou o bastão para que continuássemos tendo a ousadia de sonhar. Nunca deixemos de imaginar. *Advogada. Integrante da Comissão de Direitos Humanos da OAB – Subseção Osasco. Participa do Comite de Igualdade Racial do Grupo Mulheres do Brasil e da Educafro.