Por Matheus Souza
Na Bahia, um estudo da Defensoria Pública (DPE-BA) revelou que 92% das mulheres encarceradas no estado são negras. Além da privação da liberdade como pena pelos delitos cometidos, essas mulheres também são proibidas de ter acesso a direitos básicos garantidos pela constituição. De acordo com dados do Sistema Nacional de Informações Penais (SISDEPEN), existem apenas 24 ginecologistas para atender as 29.137 mulheres (4% da população carcerária) nas penitenciárias do país. Isso equivale à uma profissional para, em média, 1.214 mulheres presas.
No Brasil, são 137 unidades prisionais exclusivamente femininas. Delas, 113 (89%), não possuem nenhum(a) profissional em ginecologia para atendimento das detentas. Das 89 penitenciárias mistas – com indivíduos de ambos os gêneros – 86 não possuem ginecologistas.
Os dados se tornam ainda mais alarmantes ao saber que, dos 27 estados do país, 19 não contam com ginecologistas de prontidão.
No segundo semestre de 2020, 26 ginecologistas foram responsáveis por atender mais de 41 mil mulheres. No mesmo período de 2021, foram 40 ginecologistas para mais de 42 mil mulheres. Em 2022 a situação se agravou ainda mais, quando o número de ginecologistas despencou para apenas 16 profissionais no primeiro semestre e 17 no segundo para o atendimento de mais de 45 mil mulheres.
Frente aos dados alarmantes do SISDEPEN sobre a carência no atendimento ginecológico no Brasil, a Revista Afirmativa conversou com a Drª. Jaqueline do Espírito Santos Neves, médica ginecologista negra e soteropolitana. Ela falou acerca dos desafios da saúde genital feminina no país e do racismo ginecológico não só no sistema carcerário nacional, mas também no sistema de saúde pública.

Revista Afirmativa: Visto os dados apresentados, o que a privação do atendimento ginecológico pode causar na saúde dessas mulheres?
Jaqueline Neves: Tudo. Hoje a medicina tem uma atuação muito melhor na prevenção que na cura. Se essa mulher está dentro do sistema carcerário mas antes possuía uma vida sexual ativa, seja ela homoafetiva, heteroafetiva, bissexual, e ela passa a não tratar mais, a gente não sabe se ela entrou com alguma infecção ou enfermidade. Se ela está no início de um processo que pode se transformar em algo cancerígeno. Se ela fica todo esse tempo sem acompanhamento, quando ela sair já perdemos todo esse tempo de prevenção. O sistema prisional é extremamente discriminatório. As mulheres têm um tempo de banho de sol muito menor que os homens. A mulher não consegue viver sua sexualidade em plenitude no sistema carcerário, já que visitas íntimas não são autorizadas para presas. São privadas de muitas coisas além da liberdade.
R.A.: Além da falta de atendimento ginecológico, existe também uma falta de suporte na higiene menstrual dessas mulheres. Elas possuem dificuldade de acesso a absorventes, sabonetes específicos e outros itens de higiene pessoal. Quais males a falta dessa higiene pode acarretar?
J.N.: A genitália da mulher possui uma parte interna e externa. Na externa a gente consegue identificar problemas com mais facilidade, como alguma verruga, mancha ou ferida. Já na parte interna existe uma microbiota que precisa ser mantida em equilíbrio. Óbvio que o excesso de higiene também pode causar o desequilíbrio dessa flora, que é composta de fungos e bactérias convivendo em harmonia, mas a falta de higiene também.
O ideal é lavar a genitália, principalmente na parte externa, de uma a duas vezes por dia. A genitália interna, ou vagina, não se lava, pois ela possui o que chamamos de um sistema auto-limpante, ela se organiza de forma autônoma. Muitas vezes as mulheres colocam produtos com cheiros diferentes, que competem com o PH levemente ácido da vagina ou vulva e desequilibram todo o sistema, e aí é preciso reequilibrar com pomadas antibióticas e antifúngicas.
Se não houver uma higiene adequada a flora do ânus pode também colonizar a vagina, e isso não é bom pois cada flora tem sua especificidade. Quando uma mulher não consegue se higienizar de forma adequada, todos os quadros de doença genital tendem a piorar.
Quando essa mulher adentra o sistema carcerário, será que há uma ginecologista para examinar, realizar exames de imagem e de cultura para checar se há algum desequilíbrio ou Infecção Sexualmente Transmissível (IST)? Porque se não há, fica claro que essa doença irá se agravar.
É importante que a mulher dentro de qualquer realidade tenha sua saúde ginecológica assegurada. Se não é possível dentro dos presídios, que se monte mutirões para levar essas detentas às unidades de saúde para que recebam atendimento.
R.A.: Ao que você atribuiria a falta de ginecologistas no sistema prisional?
J.N.: Não há ginecologistas no sistema carcerário, e no SUS também não. A rotina de trabalho é muito complicada, e a remuneração também. Eu mesma fui uma das ginecologistas em uma Unidade Básica de Saúde (UBS) de Salvador e saí por conta dessas condições. Isso acaba contribuindo para a não-adesão do profissional.
Hoje eu trabalho na cidade que mais tem recursos públicos no Brasil, que é São Paulo, mas posso dizer que também passamos por carências aqui. É um problema geral.
R.A.: A senhora diria que essa grande demanda no sistema de saúde pública, e baixo atrativo nos salários, estão entre os motivos para a baixa adesão de ginecologistas também no sistema carcerário?
J.N.: Tudo é uma questão de interesse público. A questão das ginecologistas e demais profissionais de saúde no âmbito do SUS passa pela pejotização do profissional. Na época em que eu procurava fazer mais concursos, nunca vi vagas no sistema carcerário para ginecologistas. E ainda há o fato de que, no sistema carcerário, as pessoas pensam que indivíduos que cometeram delitos não devem ter direito ao acesso à saúde, que devem perder sua humanidade, sendo que nossa Constituição diz o contrário. É preciso também que a população cobre. Todo interesse público passa pela cobrança e interesse popular. A maioria das pessoas do sistema carcerário são pretos, pobres, pessoas de baixo poder social. Essas pessoas são desumanizadas. Quando dizem o jargão “bandido bom é bandido morto”, com certeza não é o bandido de nível superior e com alto poder aquisitivo.
Hoje trabalho também na rede privada, mas a maior parte da minha carreira foi no SUS. Já atendi vários pacientes do sistema carcerário que chegavam algemados, de forma desumana, onde nós tínhamos de pedir que pelo menos as algemas fossem retiradas. Já atendi menores nas UBS que eram tratados como bichos. Cabe a nós profissionais de saúde entender que essas pessoas são seres humanos e ao Estado garantir um sistema prisional mais digno.
R.A.: O termo Pobreza Menstrual se refere não só à falta de acesso aos itens de higiene, mas também de informação e até de saneamento básico. As mulheres também precisam de acesso a água tratada, sistema de esgoto, e tudo isso impacta na saúde genital dessa mulher, não é?
J.N.: Já trabalhei dois dias em postos de saúde aqui em São Paulo. Atendi 40 pacientes, e notei que faltava conhecimento a respeito da rotina de cuidados íntimos dessas mulheres. Para uma higiene eficiente, a mulher vai precisar de água e sabão, absorventes higiênicos descartáveis, e que esses absorventes possam ser descartados de forma a não contaminar o ambiente. Também é necessário que seja informado o que é um ciclo menstrual considerado regular e normal. Há muito tempo ficou registrado no senso comum que cólica menstrual é normal, e não é.
Dor é um sintoma de inflamação, e é uma urgência médica só por existir, independente da sua gradação. A cólica abdominal de baixo ventre antes e depois do período menstrual não é normal e requer investigação. O fluxo normal de uma menstruação é entre 80 a 100ml, mas em relação ao absorvente, entre 20 e 25 absorventes, garantindo a higiene, pois durante o período a genitália vai precisar de mais lavagens por conta do acúmulo de sangue e do mau cheiro que pode causar.
R.A.: A maioria das mulheres encarceradas são negras, periféricas, que cometeram delitos brandos. Sabemos também da história do Brasil com o racismo ginecológico, tanto na questão reprodutiva de mulheres negras, quanto até em casos de esterilização forçada. A senhora poderia falar um pouco sobre o racismo ginecológico pela qual não só as mulheres em cárcere passam, mas presente também no sistema de saúde pública?
J.N.: Meu primeiro atendimento ginecológico foi na rede privada, e foi extremamente desumano. Infelizmente, o que se passa desde o tempo do Brasil colônia é o pensamento de que o preto só serve para o médico aprender o ofício da saúde, e não para ser parte da população que ele irá cuidar como profissional.
Durante meu atendimento não tive meu corpo vilipendiado, mas foi um tratamento muito frio. Um atendimento que não informa e não dá autonomia aos cuidados necessários. Eu estudo e me atualizo para estar sempre bem informada e fornecer as melhores informações para que as pacientes possam ter autonomia sobre suas vidas.
O negro é sempre colocado como um ser inferior na sociedade. A mulher negra mais ainda, pela questão da misoginia e do machismo. Qual é a dignidade que uma mulher negra terá, principalmente no sistema carcerário? Cabe aos profissionais de saúde e à população estar se informando sobre a autonomia e melhoria de seu atendimento. Quem trabalha com saúde precisa atender de forma acolhedora.
Muitas pacientes falam pra mim “Doutora, eu gosto de ser atendida pela senhora porquê você me escuta, me deixa falar”. Isso é o mínimo. Se eu não escutar essa paciente, como vou saber o que ela tem? É o básico.
No SUS, existe o problema da demanda muito grande, o que faz com que o atendimento não seja o ideal. Nos convênios, as consultas são limitadas à 7 minutos. Você só tem direito à saúde de qualidade a partir do momento que você paga muito, infelizmente.