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Caso Alícia Valentina: quando as intersecções que corroem o Brasil atravessam um pequeno corpo negro

Camadas de violência e omissão se encontraram em Alícia Valentina, tornando seu corpo alvo de múltiplos atravessamentos que se repetem cotidianamente contra meninas negras no Brasil
Imagem: Reprodução Tv Globo

Por Karla Souza

O que alguém faz aos 11 anos? Talvez brinque de correr na rua, colecione folhas decoradas de caderno, ou adore colorir bobbie goods, invente histórias com amigos ou sonhe com o futuro: ser médica, artista, professora, cientista. Para Alícia Valentina Lima dos Santos Silva, menina negra do sertão pernambucano, esse futuro foi brutalmente interrompido. 

No último dia 3, ela foi espancada dentro de um banheiro da Escola Municipal Tia Zita, em Belém do São Francisco (PE). Uma câmera de segurança registrou os instantes antes e depois da agressão, Alícia caminha até o banheiro, onde já havia um grupo de adolescentes, e pouco depois sai com a mão no ouvido, em busca de ajuda. A agressão teria sido motivada pela recusa da menina a se relacionar com um dos colegas. De acordo com a Polícia Civil, todos os envolvidos são da mesma faixa etária da vítima.

Foi também o efeito de um ciclo de negligências que se sobrepuseram ao pequeno corpo de Alícia: após a agressão, ela foi levada ao hospital municipal, liberada, voltou a ter sangramentos, foi novamente atendida em um posto de saúde e liberada outra vez. No dia seguinte, 4 de setembro, seu estado de saúde piorou, com vômito de sangue. Foi então encaminhada ao hospital de Belém do São Francisco, transferida para Salgueiro (PE) e, em seguida, para o Hospital da Restauração, no Recife (PE), onde teve a morte encefálica confirmada em 5 de setembro. O atestado de óbito apontou traumatismo cranioencefálico causado por objeto contundente.

Ela foi espancada dentro da escola, espaço que deveria lhe garantir segurança e aprendizado. O direito de negar foi negado a ela. A negativa foi respondida com agressão coletiva, silêncio institucional e sucessivas negligências no caminho até o hospital. A vida da menina terminou como tantas outras vidas negras no Brasil: atravessada por camadas de violência estrutural.

O caso revela como a violência de gênero atinge de forma mais intensa meninas negras em municípios do semiárido brasileiro, como a cidade de Belém de São Francisco. Um relatório inédito da Iyaleta – Associação de Pesquisa, Desenvolvimento e Ações Negras mostra que em áreas de extrema pobreza dessa região, meninas de 10 a 14 anos correspondem a metade das vítimas de violência sexual, contra 44% fora desse recorte. O dado ganha ainda mais gravidade quando observado pela cor: 80,27% das notificações de violência sexual entre meninas de 10 a 19 anos nesses municípios envolvem negras, enquanto em outras áreas o índice cai para 50,14%.

Como explica a pesquisadora Bárbara Paes, o racismo, o sexismo e o classismo moldam as infâncias negras a partir de estereótipos que as tornam mais vulneráveis, realidade que se intensifica dentro das escolas. O estudo “Violência Contra Mulheres Negras e Feminicídio no Nordeste”, realizado pelo Observatório da Violência Contra as Mulheres Negras no Nordeste, ligado à Rede de Mulheres Negras do Nordeste, reforça essa dimensão ao apontar que, embora representem 37,19% da população da região, mulheres negras são as principais vítimas de feminicídio. 

O Atlas da Violência 2024, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, confirma essa disparidade ao indicar que mulheres negras no Brasil têm 1,7 vezes mais chances de serem assassinadas do que mulheres não negras.

A negligência médica sofrida por Alícia também se conecta a esse sistema de desigualdade racial. O Boletim Saúde da População Negra, elaborado pelo Instituto de Estudos para Políticas de Saúde em parceria com o Instituto Çarê, demonstra que, entre 2010 e 2021, pessoas negras foram mais expostas a erros médicos e omissões profissionais. No Norte e no Nordeste, a média do período indica que pessoas negras tiveram seis vezes mais chances de serem internadas por omissão médica em comparação às pessoas brancas.

Não é possível dissociar o assassinato de Alícia da cultura de violência de gênero que se instala cedo. Desde a infância, meninas são ensinadas a lidar com abordagens invasivas e assédios naturalizados como “brincadeira”. Desde cedo, aprendem que negar pode custar caro. Quando o “não” de Alícia foi punido com violência, o que se viu foi a repetição de uma lógica patriarcal que autoriza meninos a exercer poder sobre o corpo feminino, e que pune quando essa autoridade é desafiada.

Chama a atenção também a dimensão coletiva do brutal espancamento. Não foi apenas um agressor, mas um grupo que se organizou em torno da violência. Isso evidencia como o machismo não se sustenta apenas em ações individuais, mas em pactos de masculinidade que legitimam a agressão e silenciam testemunhas.

O caso ainda está em investigação, e um dos adolescentes já foi apreendido. Mas responsabilizar apenas os jovens envolvidos é reduzir o problema a um ato isolado. Não é um caso isolado: é o resultado de um sistema que normaliza a violência contra meninas negras. É preciso responsabilizar também as instituições, questionar a ausência de políticas públicas de prevenção, revisar a segurança nos espaços escolares e discutir a formação de professores e funcionários para lidar com situações de gênero, raça e violências. Nesse contexto, a educação sexual nas escolas é fundamental, como ferramenta pedagógica que ensina respeito aos limites, igualdade de gênero e o direito de toda criança e adolescente de dizer não sem ser violentada por isso.

A morte da menina escancara que a escola brasileira ainda não é um espaço seguro para todas. Enquanto a educação não assumir a centralidade do enfrentamento ao racismo e ao machismo, casos como este continuarão a acontecer. Não basta falar em inclusão nos currículos, é necessário criar redes de proteção reais dentro das escolas, onde cada criança, independentemente de raça e gênero, possa sonhar o futuro sem medo de ser punida por existir.

Ao lembrar de Alícia, é impossível não pensar nas tantas meninas negras que continuam expostas às mesmas violências. O que poderia ter sido a vida dela se tivesse tido a chance de crescer? Qual profissão escolheria? Quais caminhos trilharia? A interrupção desses sonhos nos lembra que, os filhos deste solo não são gentis para as nossas. Lutemos! Marchemos!

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