Por Andressa Franco
Após quase cinco anos de espera e cinco adiamentos, chegou ao fim na noite da última quarta-feira (31) o julgamento do crime de feminicídio contra Elitânia de Souza da Hora, jovem quilombola de 25 anos assassinada a tiros pelo ex-namorado enquanto caminhava para casa após ter aulas na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), em Cachoeira (BA). Ela foi surpreendida pelas costas e morta a tiros por Alexandre Passo Góes Silva, que não aceitava o fim do relacionamento, na noite de 27 de novembro de 2019. O julgamento aconteceu no Fórum Augusto Teixeira de Freitas, em Cachoeira (BA).
A sentença, anunciada pelo juiz Abraão Barreto por meio de decisão do júri popular após mais de 10 horas de julgamento, condenou Alexandre a 18 anos de prisão por homicídio duplamente qualificado em feminicídio e emboscada sem chance de defesa da vítima, agravado pelo descumprimento de medida protetiva mais a condenação por porte ilegal de arma de fogo. No entanto, como Alexandre está preso desde 2019, esses cinco anos serão abatidos da pena. Além disso, ele poderá recorrer da sentença.
Para Laina Crisóstomo, advogada que atuou na assistência de acusação do Ministério Público (MP) representando a Tamo Juntas – Assessoria Multidisciplinar Gratuita para Mulheres em Situação de Violência, apesar da importância dos jurados terem mantido todas as qualificadoras, a pena foi muito branda. “O juiz aplicou a pena mínima de cada qualificadora, inclusive do crime de feminicídio, que é de 12 a 30 anos. Essa pena de 18 anos é insuficiente para todas as qualificadoras que se apontaram e para um processo histórico de violência contra ela.”
A prima de Elitânia, Letícia de Souza, também considerou a pena insuficiente. “O que ele fez não tem perdão, Elitânia não vai voltar mais pra gente.” O discurso dos advogados de defesa também foi motivo de incômodo para os familiares. “Ele estava agredindo as mulheres com palavras, queria desestabilizar a família, que a maioria são mulheres.”
Testemunhas relataram relacionamento violento e abusivo
As cinco testemunhas ouvidas durante as oitivas confirmaram os relatos de um relacionamento abusivo presentes nas denúncias apresentadas pela própria Elitânia, ao solicitar as medidas protetivas. Ligações insistentes à vítima e aos seus familiares, tocaias de carro no trabalho, em casa e na universidade são apenas algumas das ações que levaram Elitânia a praticamente deixar de sair de casa e andar com medo na rua. Todo o tempo a estudante foi lembrada como uma pessoa muito ativa politicamente e querida na cidade.
“Todo mundo gostava muito dela, não era individualista, tudo que fazia era pensando no coletivo”, lembrou uma das testemunhas.
Toda a perseguição começou depois do término do relacionamento, ainda em 2018, motivado pelas constantes ameaças e agressões físicas e psicológicas infligidas por Alexandre. Ela deixou a casa onde moravam juntos em São Félix, município vizinho a Cachoeira, e foi morar com uma colega de universidade, já com uma medida protetiva, que impedia Alexandre de manter contato ou chegar a menos de 100m de distância dela.
Uma das testemunhas conta que o relacionamento era marcado por discussões violentas, muitas agressões verbais e possessividade. Uma dessas situações foi descrita como uma primeira tentativa de matar Elitânia, na casa da sua avó. Na ocasião, Alexandre teria imobilizado a ex-namorada e tentado enforcá-la, além de ter quebrado seu celular, agredido sua avó e ameaçado atear fogo na casa com Elitânia dentro. “Ele andava armado e estava determinado a tirar a vida de Elitânia”, completa.
Alexandre também foi ouvido, mas se recusou a responder às perguntas da promotoria, respondendo apenas os questionamentos dos seus advogados. Na oportunidade, confessou o crime, afirmou que comprou a arma apenas 40 minutos antes do crime em uma tentativa de convencer que agiu por impulso, e pediu perdão à família de Elitânia. Alexandre não teve testemunhas de defesa no julgamento.
“A forma que aconteceu a condenação de Alexandre, com a aprovação de todos os agravantes pelos jurados, representa que vencemos a narrativa sobre feminicídio”, afirma Joyce Souza, coordenadora do Projeto Quilomba: Pela Vida das Mulheres Negras, do Odara – Instituto da Mulher Negra, que também articula a ação de incidência Semana Elitânia Souza: Pela Vida das Mulheres Negras.
“Assistimos a defesa do assassino expressar todas as formas de machismo, racismo, patriarcado, autoritarismo. Presenciamos mais uma vez a culpabilização de Elitânia de Souza e a revitimização de todas as mulheres vítimas de violência doméstica e familiar. Mas o nome de Elitânia de Souza se tornou coletividade e não estamos aqui hoje apenas por ela, mas por todas as outras mulheres”, completa a ativista, que ressalta a importância da cobrança por justiça e defesa da memória da vítima, o que resultou em uma forte mobilização da sociedade cachoeirana, que compareceu ao fórum para um ato público e lotou a sessão do início ao fim.
Defesa tentou convencer júri a absolver Alexandre com discurso religioso
Durante a arguição da defesa, os advogados que representavam Alexandre Góes tentaram convencer o júri de que apesar de ser inquestionável que Alexandre foi o autor dos disparos, algumas das qualificadoras presentes na acusação do MP eram exagero. Os defensores pediram que os jurados ignorassem o histórico de violências de Alexandre, e se concentrasse em julgar “apenas” o assassinato. “Quem dos senhores ou senhoras nunca teve uma briga conjugal?”, chegou a dizer um dos advogados.
Boa parte da uma hora e meia disponível foi utilizada para sustentar uma narrativa de que Alexandre estaria profundamente arrependido e já havia pagado pelo que fez em apenas cinco anos preso. Seus advogados enalteceram o fato de ele ter confessado o crime, e ainda afirmaram que seria possível sustentar a tese de negativa de autoria, desacreditando a testemunha ocular.
“Como alguém tira a vida de alguém de forma cruel e covarde e a gente vai dizer que cinco anos está bom porque ele se arrependeu? Um arrependimento falso essencialmente baseado em ter uma pena reduzida”, contestou o promotor de justiça durante a réplica.
A culpabilização da vítima também dominou o discurso dos juristas. Na tentativa de convencer o corpo de jurados a recusar a qualificadora de descumprimento das medidas protetivas, alegaram que Elitânia aceitava caronas de Alexandre por livre e espontânea vontade.
Sobre a qualificadora “mediante emboscada e sem chance de defesa”, tentaram argumentar que a perícia indica um tiro frontal, o que não se enquadra como um caso de impossibilidade de defesa da vítima. Segundo a interpretação dos advogados a respeito do laudo cadavérico, Alexandre não estaria totalmente nas costas de Elitânia, e isso deveria ser suficiente para afastar a qualificadora de impossibilidade de defesa. No entanto, o que consta na perícia é um disparo feito no osso frontal direito da cabeça, com entrada do projétil pela região lateral, o que confirma o relato da testemunha.
Ainda sobre essa qualificadora, os advogados defenderam que se Elitânia podia prever que o crime iria acontecer e estava consciente de que corria risco, não deveria ter permanecido na cidade, mais uma vez responsabilizando a vítima. Não só, tentaram culpabilizar as mulheres de forma geral, afirmando que as mães reproduzem o machismo estrutural na criação da meninos, resultando em homens agressores.
“‘As genitoras são as responsáveis pela criação de homens violentos’? É culpa de processo histórico que estimula os homens a naturalizar violência e controle contra os corpos das mulheres!”, rebateu na réplica a assistência de acusação.
O teor religioso do discurso também foi flagrante. Além de se dedicarem a retirar as qualificadoras da condenação, pediram que os jurados não descartassem a possibilidade de absolver Alexandre, baseados na clemência e considerando o suposto arrependimento do réu como um sentimento cristão, “previsto na Bíblia”.
Acusação lembra que pedidos de clemência são proibidos em casos de feminicído
Por uma hora e meia, a acusação apresentou aos jurados as provas para que todas as qualificadoras fossem mantidas. Além de ressaltar como, apesar de todo o desafio que envolve romper com o ciclo de violência que submete mulheres em relacionamentos abusivos, Elitânia denunciou seu agressor e recorreu à Justiça, que reconheceu o risco que a jovem corria com duas medidas protetivas, constantemente descumpridas.
Vale destacar que o descumprimento de medidas protetivas é tratado de forma rigorosa pela Lei Maria da Penha, ao menos na teoria, prevendo desde 2018, a detenção de três meses a dois anos em caso de violação de medida protetiva de urgência.
A acusação retornou ainda em uma réplica, para chamar atenção para a perversidade da estratégia de defesa que insistiu em sua arguição que Elitânia se colocava em situação de risco por permanecer na cidade, alegando ainda que a jovem aceitava caronas do ex-namorado.
“Ele tenta culpar uma mulher que foi assassinada com um tiro na cabeça! Isso [alegar as caronas] é ignorar a pressão psicológica e a ameaça”, rebateu a assistência de acusação.
“Ela em momento nenhum cedeu. Foi ameaçada e perseguida. Todos os relatos das testemunhas trazem que ela não ia encontrar com ele. Ele ficava na porta da casa, da faculdade. A culpa não é da vítima!”, enfatizou a outra assistente.
Quanto aos apelos por clemência, foram contestados pelo promotor de justiça, que lembrou que em 2023 o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que não é possível pedir clemência em julgamentos de feminicídio. A decisão foi fundamentada no entendimento de que a prática de pedir clemência nesses casos pode contribuir para a perpetuação da violência contra as mulheres e minimizar a gravidade do crime.
2023 teve recorde de feminicídios no Brasil
O feminicídio de Elitânia não é um caso isolado. O Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2024 revela um cenário alarmante de violência contra a mulher no Brasil. Em 2023, foram registradas 1.467 vítimas de feminicídio, o maior número desde a tipificação da lei em 2015, indicando um aumento de 0,8% em relação a 2022.
As agressões decorrentes de violência doméstica cresceram 9,8%, somando 258,9 mil casos. As ameaças aumentaram 16,5%, totalizando 778,9 mil registros. O crime de stalking teve a maior alta percentual, com um aumento de 34,5%, alcançando 77.083 registros em 2023.
O Anuário revela ainda que 63,6% das mulheres assassinadas por razões de gênero no Brasil em 2023 eram negras.