Colonialismo alimentar atua na manutenção das desigualdades sociais através da fome e desnutrição

Os mecanismos do colonialismo alimentar podem ser percebidos na imposição de padrões alimentares e de consumo que favorecem os interesses econômicos e culturais dos países colonizadores sobre os colonizados

Por Andressa Franco e Karla Souza

Desde a invasão portuguesa em 1500, o território alcunhado como Brasil tem sido marcado por intensas desigualdades na estrutura social, muitas delas frutos do período colonial. Esse histórico de opressão ainda se reflete na segurança alimentar local. Segundo o relatório O Estado da Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo (SOFI), publicado pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura, em 2022, 70,3 milhões de pessoas enfrentaram insegurança alimentar no país.

Fabiola Nejar, membro da Rede Internacional em Defesa do Direito de Amamentar (International Baby Food Action Network – IBFAN), caracteriza o colonialismo alimentar como ferramenta de disparidades sociais e observa que seus mecanismos podem ser percebidos na imposição de padrões alimentares e de consumo que favorecem os interesses econômicos e culturais dos países colonizadores sobre os colonizados. Ela explica que o processo se dá pela introdução de alimentos ultraprocessados, muitas vezes mais prejudiciais à saúde e não sustentáveis, e pela desapropriação de práticas alimentares tradicionais.

Fome, carência nutricional, doenças e agravos à saúde causados pelas escolhas alimentares equivocadas pela visão distorcida da comida e sua relação com a cultura colonialista, são alguns dos impactos citados pela especialista.

Entenda o conceito

Os estudiosos Mignolo (2003) e Quijano (2000) introduziram o conceito de “colonialidade” para descrever a continuidade das estruturas de dominação colonial nas esferas econômica, política e cultural, mesmo após o fim formal do colonialismo. No contexto latino-americano, essa “colonialidade” se manifesta de várias formas, incluindo a maneira como a alimentação e as práticas culinárias foram influenciadas e moldadas por séculos de dominação.

A professora do Instituto de Alimentação e Nutrição da UFRJ Macaé e do Programa de Pós-graduação em Educação em Ciências e Saúde da UFRJ, Rute Costa, lembra que a colonização foi um processo brutal de exploração dos territórios e de pessoas negras e indígenas, visando o acúmulo de capital.

“Apesar de ter sido encerrada do ponto de vista jurídico, a colonização forjou e segue forjando nossos modos de subjetivação, porque muito além da dimensão econômica, foram estabelecidos princípios cognitivos de ordenação da vida, ainda não superados”, destrincha Rute, que também é doutora em Educação em Ciências e Saúde, líder do Grupo de Pesquisa CulinAfro e coautora do livro “Prato do Dia: Desigualdades. Raça, Gênero e Classe nos Sistemas Alimentares”.

Rute Costa professora do Instituto de Alimentação e Nutrição da UFRJ Macaé e do Programa de Pós-graduação em Educação em Ciências e Saúde da UFRJ

Entre essas dimensões da vida onde estão refletidos os impactos da colonialidade, estão os sistemas alimentares, que compreendem a produção de alimentos, sua obtenção, compra e a troca, os aspectos relacionados ao consumo, modos de preparar e de comer e ainda os processos de reconstituição ou descarte.

No artigo “Fome e colonialidade alimentar no Brasil”, Mariana Bastos descreve que nos anos de 1930 e 1940, Josué de Castro, médico e geógrafo brasileiro, desafiou a visão de que a fome era simplesmente um resultado da superpopulação. Ele argumentou que a fome no Brasil estava profundamente ligada às heranças do colonialismo, que impõem barreiras ao direito à alimentação e à soberania alimentar.

Reflexos na atualidade

A professora Rute explica que a colonialidade alimentar está relacionada à produção e naturalização das iniquidades alimentares, assim como à produção e concentração de poder nas mãos da branquitude do norte global. Seus principais mecanismos são o acúmulo de capital, controle dos meios de produção, exploração da natureza e das pessoas, padronização dos gostos e a classificação hierárquica dos sistemas alimentares.

Nesse modelo, exemplifica, prevalece a opção pela produção agrícola em grandes latifúndios de monocultura, cultivos à base de agrotóxicos, ao invés de culturas agroecológicas; a concentração de terras nas mãos da elite branca; a transformação da comida em mercadoria; o fortalecimento das indústrias de produtos alimentícios ultraprocessados; crises ambientais; e o adoecimento dos seres vivos.

Vale destacar que foi durante a colonização que muitos povos originários e comunidades locais tiveram seus sistemas alimentares tradicionais desmantelados e substituídos por práticas agrícolas e alimentares europeias, frequentemente para cultivar produtos que eram de interesse do mercado europeu. Sistema de exploração chamado plantation, caracterizado pela mão de obra escravizada, e que resultou na perda de muitos conhecimentos e práticas culturais ligadas à alimentação.

Essa apropriação continua no contexto atual, com empresas multinacionais dominando vastas extensões de terra em países do Sul Global para produção de commodities para exportação. Assim, o colonialismo alimentar é perpetuado por meio de acordos comerciais e políticas agrícolas globais que incentivam essa apropriação, e a influência de grandes corporações multinacionais.

Dados de 2016 da plataforma Land Matrix mostram que, de 2000 a 2015, 42,2 milhões de hectares foram negociados em todo o mundo por empresas estrangeiras, especialmente no Sul global. O Brasil é um dos cinco países com maior área envolvida nessas transações. Esse processo é internacionalmente conhecido como land grabbing (“apropriação de terras”). No Brasil, o Mato Grosso e o Matopiba são as regiões preferenciais de grandes aquisições, consideradas a última fronteira agrícola do país. 

Consequências do colonialismo alimentar

A permanência das práticas coloniais nas dietas contemporâneas têm profundos impactos na saúde das populações. Um estudo do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), realizado em 2021, aponta que crianças de 0 a 6 anos de famílias beneficiadas pelo programa Bolsa Família estão em risco de desenvolvimento devido ao alto consumo de alimentos ultraprocessados e à insegurança alimentar. A pesquisa também revelou que aproximadamente 80% das crianças consumiram alimentos ultraprocessados, como biscoitos recheados e bebidas açucaradas, no dia anterior à entrevista.

Sabor (46%), preço (24%) e praticidade (17%) foram as razões mais citadas para a compra desses mantimentos. Além disso, a acessibilidade influencia significativamente, já que 64% das famílias vivem perto de estabelecimentos que oferecem refeições prontas e 54% perto de lojas de conveniência, enquanto apenas 15% têm acesso a hortas comunitárias.

Um relatório da Public Eye, em parceria com a IBFAN, revelou que produtos da Nestlé vendidos no Sul global, como o Cerelac no Senegal, contêm adição de açúcar que não está presente em produtos equivalentes na Suíça. No Brasil, o cereal Mucilon, destinado a crianças, também omite informações cruciais sobre a quantidade de açúcar adicionado.

Fabíola explica que essa estratégia de adicionar açúcares, sal e gorduras aos alimentos infantis visa aumentar a palatabilidade e o consumo. Resultando em padrões alimentares inadequados que aumentam o risco de várias doenças crônicas, como diabetes, doenças cardíacas, danos renais e certos tipos de câncer.

“Estudos mostram inadequação nos rótulos alimentares das farinhas de cereais instantâneas destinadas ao público infantil, comparado com a composição real do alimento. O cereal Mucilon não traz a informação de açúcar adicionado na tabela nutricional, somente na lista de ingredientes, como o segundo ingrediente em maior quantidade presente no produto”, denuncia Fabíola.

Fabiola Nejar, membro da Rede Internacional em Defesa do Direito de Amamentar (International Baby Food Action Network – IBFAN)

A especialista chama atenção ainda para as estratégias de marketing com mensagens persuasivas, utilizando alegações nutricionais e associando a relação entre um alimento e um resultado de saúde, a atrair a população para a compra desses produtos.

“Esses produtos não se tornam saudáveis pela simples adição de micronutrientes. Considerando a falta de estímulo, educação e cultura sobre a leitura de rótulos da população brasileira, essas informações dificultam o entendimento da sua real composição. O que reforça a necessidade da fiscalização de políticas públicas e de ações de educação alimentar e nutricional”, alerta.

Não é a primeira vez que a Nestlé se encontra no centro de denúncias relacionadas à qualidade dos seus alimentos ou à sua cadeia de produção. Em 2015, uma subsidiária da empresa foi processada pelo estado indiano de Uttar Pradesh devido a descoberta de altos níveis de chumbo em lotes de macarrão instantâneo Maggi. Já em 2021, a gigante da indústria alimentícia foi processada junto a outras empresas do ramo por escravidão de crianças na cadeia produtiva do cacau e do chocolate, em plantatações na Costa do Marfim, país na África Ocidental. 

Soberania alimentar

Os efeitos desses produtos ultraprocessados são exacerbados pela falta de apoio ao aleitamento materno e pela ausência de políticas eficazes que promovam uma alimentação infantil adequada. Por exemplo, segundo a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), a licença maternidade é garantida por apenas 120 dias. Essa limitação aumenta a probabilidade de bebês em situações socioeconômicas vulneráveis serem alimentados com outros alimentos além do leite materno antes dos seis meses de idade, devido à necessidade das mães retornarem ao trabalho. 

Imagem: Olivia Godoy

A introdução precoce de alimentos ultraprocessados prejudica a saúde das crianças e perpetua a dependência de alimentos industrializados, cultura alimentar imposta ao Sul Global, e que compromete a soberania e a segurança alimentar locais.

“O caso dos produtos da Nestlé para bebês cujo CEP é o Sul global é um exemplo da escolha pela não proteção à infância negra”, frisa Rute.

Para combater essas práticas desiguais, é fundamental implementar políticas públicas rigorosas que desencorajam o consumo de produtos infantis ultraprocessados e promovam a amamentação e a alimentação complementar adequada. Isso inclui a fiscalização efetiva de rótulos alimentares e a educação nutricional para capacitar os consumidores a fazerem escolhas mais informadas e saudáveis.

Não é preciso “reinventar a roda”, defende Rute. A pesquisadora ressalta que já há muito conhecimento produzido pelos povos e comunidades tradicionais, movimento de mulheres, trabalhadores rurais sem terra e camponeses. Sendo necessário investir nas políticas de escuta e valorização dos acúmulos de saberes e fazeres sobre sistemas alimentares contra hegemônicos, como a agroecologia.

Em resposta ao colonialismo alimentar, o movimento de soberania alimentar defende o direito das pessoas de definir seus próprios sistemas alimentares. Isso inclui a promoção de práticas agrícolas sustentáveis, a valorização de culturas alimentares locais e a resistência contra a dominação de corporações transnacionais.

“Defender o direito às culturas alimentares e a pluralidade dos modos de produção camponesa, a diversidade pesqueira, de produção agropecuária, de comercialização e de gestão dos espaços rurais, é fundamental”, completa a professora.

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