Comunicação pela liberdade: o papel das mídias negras na luta antirracista

A estrofe da poesia “Da calma e do silêncio”, escrita pela mineira Conceição Evaristo, nos faz pensar que lidar com as palavras pode ser um exercício intenso e necessário – principalmente para pessoas negras. Isso porque, ao longo da história brasileira, o direito à palavra tem sido privilégio hereditário de grupos hegemônicos dominantes que escreveram a história

Por Alice Andrade*

Imagem: Alice Vergueiro – Folhapress

 

Quando eu morder

a palavra,

por favor,

não me apressem,

quero mascar,

rasgar entre os dentes,

a pele, os ossos, o tutano

do verbo,

para assim versejar

o âmago das coisas

A estrofe da poesia “Da calma e do silêncio”, escrita pela mineira Conceição Evaristo, nos faz pensar que lidar com as palavras pode ser um exercício intenso e necessário – principalmente para pessoas negras. Isso porque, ao longo da história brasileira, o direito à palavra tem sido privilégio hereditário de grupos hegemônicos dominantes que escreveram a história com base em padrões eurocêntricos (ou seja, brancos, ocidentais, masculinos, cisgênero, heterossexuais, binários e cristãos). Tais padrões formam definições estereotipadas sobre o povo negro, criando matrizes de dominação que suprimem vozes e roubam humanidades.

Para a pesquisadora Winnie Bueno, no livro Imagens de controle – um conceito do pensamento de Patricia Hill Collins, matrizes de dominação consistem “na forma com que as opressões se desenvolvem e também na maneira com que as mesmas se articulam mutuamente a partir de uma organização social que fortalece os sistemas de dominação que estruturam o poder hegemônico” (2020, p.34). Mesmo com o fim legal de sistemas de exploração como a escravização, as matrizes de dominação seguem elaborando formas concretas e simbólicas de extermínio negro.

É por isso que resistir à dominação é um modo de vida secular para afrobrasileiros. Quando Lélia González, em 1984, dizia que estamos na lata de lixo da história –  mas vamos falar sim –  ela nos revelou sobre a necessidade de autodefinição para refutar o olhar colonial sobre nossos corpos e mentes. Nesse contexto, a palavra, a fala e a comunicação são instrumentos de resistência.

Desde as revoltas coloniais, negros e negras utilizavam a comunicação como forma de articulação das lutas pela liberdade. Na Revolta dos Búzios, movimento negro revolucionário ocorrido em 1798, a comunicação foi uma importante estratégia. A organização entre os participantes era feita através de boletins escritos.

Além das revoltas, a imprensa negra também tinha a comunicação como espaço de produção de contradiscursos. O primeiro jornal da chamada imprensa negra, no Brasil, surgiu em 1833, o periódico “Homem de Côr/O Mulato”. Segundo a pesquisadora Ana Flávia Magalhães Pinto (2006), a imprensa negra é do conjunto de veículos de comunicação, em especial os jornais impressos, que surgiram para somar à luta contra a discriminação racial no Brasil. Esses veículos eram feitos por e para pessoas negras que buscavam construir uma narrativa à margem daquela apresentada pela imprensa comercial.

Em seu discurso mais conhecido, Chimamanda Ngozi Adichie (2019) nos alerta para os perigos da história única. A escritora revela que as imagens pré-moldadas sobre pessoas negras confinam o imaginário coletivo em um lugar de preconceito, racismo e ignorância. A necessidade do enfrentamento às visões coloniais sobre o mundo estimula, em todos os períodos históricos, a formação de centros de potência e ruptura.

“As atuais mídias negras são herdeiras da imprensa negra, das revoltas pela liberdade, dos quilombos e dos tantos modos de insurgência de povos escravizados”

Diante do racismo que molda a estrutura social brasileira, na contemporaneidade também há diversas experiências que ecoam gritos de justiça e liberdade. Entendo as mídias negras como iniciativas motivadas pela luta contra o racismo, o sexismo, a história única, a dominação, a hegemonia da mídia corporativa em relação à agenda, a exclusão, a invisibilidade e as injustiças sociais e cognitivas do mundo. Têm a comunicação como principal ferramenta de resistência e reivindicam o direito à construção das próprias narrativas. As atuais mídias negras são herdeiras da imprensa negra, das revoltas pela liberdade, dos quilombos e dos tantos modos de insurgência de povos escravizados.

Para o jornalista e mestre em Comunicação pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), Jonas Pinheiro, mídias negras são “meios de comunicação produzidos e gerenciados por pessoas negras com ênfase neste marcador sociocultural e que têm como intuito a luta contra o racismo em suas diversas instâncias sociais e políticas” (2019, p.165). Nessa perspectiva, assim como a imprensa negra, são meios pensados, elaborados e construídos por negros e negras para a escrita de si, do que vivenciam e para a articulação de suas lutas.

Além de lugar de luta, mídias negras também são polos de autoafirmação. “Pelo fato de eu não me sentir contemplada muitas vezes pela mídia hegemônica, pela narrativa que é contada por essas mídias, a mídia negra como um todo trabalha para que nossos corpos e nossas vidas sejam contempladas nessas narrativas”. Com essas palavras, Allyne Paz opina sobre a importância da mídia negra na sua trajetória. Ela é jornalista, pesquisadora de questões étnico-raciais e mestranda no Programa de Pós-graduação em Jornalismo da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Assim como Allyne, muitas pessoas racializadas enxergam nas mídias negras espaços de referência na luta antirracista, tornando-as centros de inspiração e motivação.

Embora a mídia hegemônica tenha ampliado a elaboração de debates voltados para questões étnico-raciais, em especial desde o assassinato de George Floyd em 2020, nos Estados Unidos, as matrizes de dominação e as imagens de controle seguem atribuindo significados pejorativos ao imaginário coletivo. As discussões pautam a representatividade, mas os fatores estruturais seguem ocupando o lugar do silenciamento. De acordo com o Atlas da Violência 2020, os negros representaram 75,7% das vítimas de homicídios. É raro ver os veículos de comunicação questionando o genocídio da população negra, a necropolítica e o perigo das imagens de controle na formulação de opressões, por exemplo. É nas mídias negras que comunicadores ocupam vácuos deixados pela mídia hegemônica e se colocam como protagonistas na construção das próprias narrativas.

Dessa forma, pensar a mídia negra é pensar a comunicação como ferramenta de resistência de povos cuja luta secular se capilariza em múltiplas manifestações. Esse trabalho tem raízes históricas, mas a trilha para o futuro ainda é longa. A criação de novos espaços de (re)existência faz parte de uma luta complexa e, muitas vezes, engolida por matrizes de dominação, pois se propõe a confrontar estruturas de poder.

Nesse enfrentamento, as mídias negras compõem uma temporalidade que reconstrói imaginários, produz discursos alternativos e oferece novas dimensões estéticas. São experiências que revelam “a escrita de um mundo a ser lido/visto/ouvido”, nas palavras da professora Rosane Borges (2020, p.41). Essa construção é um esforço colaborativo no qual a subjetividade de cada pessoa envolvida traduz as vozes de um todo. A comunicação produzida nesses espaços, além de comprometida com a luta antirracista, enxerga na união das experiências a potência para a construção de caminhos possíveis. É por isso que enxergo as mídias negras como parte de um movimento de aquilombamento. Abdias Nascimento (2019) ensina que a simbologia do quilombo significa partilha, união, agregação. Nas mídias negras, vozes se aquilombam no solo fértil da comunicação para romperem com os silenciamentos históricos da colonialidade que há tanto tempo tentam nos aprisionar.

O grito pela liberdade ecoa do Recôncavo da Bahia: A Revista Afirmativa e sua importante contribuição para o universo das mídias negras

 A Revista Afirmativa foi criada em 2014, na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), por estudantes de jornalismo que, insatisfeitos com o discurso construído pelos meios de comunicação hegemônicos, buscavam construir suas próprias narrativas. Por ser uma mídia negra, já nasceu com um propósito: desenvolver uma mídia livre, plural e comprometida com o combate ao racismo. No início, as produções eram direcionadas para a plataforma impressa, mas logo os integrantes da revista perceberam que estar no meio digital era fundamental para a propagação dessas ideias. Essa é uma das características das mídias negras: adaptar-se às especificidades dos períodos históricos para ampliar o grito por liberdade.

“Os movimentos negros brasileiros são muito diversos. Não existe uma forma única de se fazer movimento negro, existem milhares de expressões e uma dessas expressões é a mídia negra”, analisou a jornalista, mestra em Comunicação (UFRB) e fundadora da Revista Afirmativa, Alane Reis. Neste 19 de março, a Revista Afirmativa completa sete anos. Ao longo do tempo, se consolidou como um espaço de referência na construção de um jornalismo antirracista e articula suas narrativas sob o manto desse compromisso.

Conheci a Revista Afirmativa em um momento no qual eu buscava modelos de empoderamento e autoafirmação. Na busca pela ruptura dos nossos silêncios individuais, dar as mãos a quem passa por esse processo coletivamente é estimulante e revigorante. Como jornalista, pela primeira vez me vi representada pelos discursos referentes à minha raça, minha história e minha memória. Foi neste lugar onde pude encontrar construções analíticas que me provocaram o questionamento da hegemonia midiática. Através dela, conheci outras mídias negras nesse movimento de insurgência pelo direito de elaborar a própria fala.

Atualmente, enquanto pesquisadora de mídias negras, consigo perceber a Afirmativa como parte fundamental da luta negra brasileira. É um ambiente de transformação social que fortalece a história afrobrasileira, contribui para a desconstrução de estereótipos, fomenta a justiça social para pessoas negras e elabora, na prática, uma comunicação pensada metodologicamente pelas lentes do antirracismo.

 

*Jornalista. Doutoranda e mestra pelo Programa de pós-Graduação em Estudos da Mídia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PPgEM/UFRN). Pesquisadora do grupo de pesquisa Pragmática da Comunicação e da Mídia (PRAGMA-CNPq) e do grupo de estudos Epistemologias Subalternas e Comunicação – Descom (@descomufrn). Consultora no projeto Mulheres Racializadas (@racializada). Pesquisadora de mídia e questões étnico-raciais.

 

 

REFERÊNCIAS:

ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma história única. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

BORGES, Rosane. O papel das mídias negras na implosão de imaginários. In: Mapeamento da mídia negra no Brasil. Fopir: 2020.

BUENO, Winnie. Imagens de controle: um conceito do pensamento de Patricia Hill Collins. Porto Alegre: Zouk, 2020.

NASCIMENTO, Abdias. O quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista. 3ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 2019.

PINHEIRO, Jonas de Jesus. Alma preta e Afirmativa: experiências contemporâneas de mídias negras na luta contra o racismo.176f. Bahia, 2019. Dissertação – Mestrado em Comunicação. Centro de Artes, Humanidades e Letras, : Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, 2019.

PINTO, Ana Flávia Magalhães. De pele escura à tinta preta: a imprensa negra no século XIX (1833-1899). 197 f. Brasília: 2006. Dissertação – Mestrado em História, Instituto de Ciências Humanas, Universidade de Brasília, 2006.

 

 

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