Conteúdos religiosos de matriz africana levantam debate sobre exposição de rituais sagrados nas redes sociais

Pesquisadores do tema e jovens que consomem conteúdos referentes a religiões de matriz africana destacam importância das redes enquanto aliadas no combate ao racismo religioso, mas  chamam atenção para o respeito ao segredo ritualístico 

Pesquisadores do tema e jovens que consomem conteúdos referentes a religiões de matriz africana destacam importância das redes enquanto aliadas no combate ao racismo religioso, mas  chamam atenção para o respeito ao segredo ritualístico 

Por Andressa Franco e Elizabeth Souza

Imagem: Roberta Guimarães

Décadas atrás, legislações brasileiras proibiam práticas religiosas de matriz africana no país. Seus seguidores adotavam disfarces e realizavam celebrações silenciosas como forma de resistência e proteção às casas de axé. Atualmente, muita coisa mudou. Apesar dos crescentes casos de racismo religioso, a popularização de religiões como candomblé e umbanda é inquestionável, e as redes sociais são um dos espaços onde essa difusão tem se expandido. No entanto, os tipos de conteúdos publicados e compartilhados virtualmente têm levantado debates sobre o limite entre o que deve ser exposto ou não. 

Não é incomum a presença de referências a religiões como candomblé, jurema ou umbanda em espaços de grande visibilidade e mídia. Atitudes como essas eram impensáveis tempos atrás devido a artimanhas racistas que pregavam o apagamento da ancestralidade negra. No século XIX, o Código Penal de 1890, por exemplo, criminalizava “magia”, “espiritismo” e “curandeirismo”, práticas associadas de forma pejorativa e racista a religiões afro.  Em 1891, com a promulgação da primeira Constituição republicana era decretada a separação entre a Igreja e o Estado, medida que não interferiu no avanço do cristianismo.

No século XX, durante o período do Estado Novo (1937-1945), golpe comandado pelo ex-presidente da República Getúlio Vargas, a Lei de Contravenções Penais de 1941 buscava proibir batuques de tambores em celebrações religiosas, visto que, de acordo com a lei, perturbavam o sossego alheio. Perseguições que também se expandiram ao período da Ditadura Militar (1964-1985) no Brasil, marcada por um forte apelo de “ordem social” interligado aos costumes cristãos.

Com a Constituição Federal de 1988, as comunidades de matriz africana viram novos horizontes de esperança surgir com a implementação do Artigo 5º que defende o direito à liberdade de crença. Outros mecanismos também foram importantes, como a Lei Caó (Lei 7.716 de 1989), a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho sobre comunidades tradicionais, Delegacias de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância. Hoje, de acordo com o Censo IBGE de 2010, religiões de matriz africana, como o candomblé e a umbanda, estão entre as cinco mais seguidas no Brasil.

Novas conexões

Em pleno advento das redes sociais, é nesses espaços virtuais onde também se formam trincheiras de resistência e estratégias de reorganização.  De acordo com um levantamento da Comscore, o Brasil é o terceiro país que mais consome redes sociais no mundo e o primeiro da América Latina. Nessas plataformas muitos conteúdos sobre religiões de matriz africana, como cantigas, rezas, ritos religiosos, têm ganhado o mundo contribuindo no combate ao preconceito, mas também dividindo opiniões.

“A informação contribui com o combate ao racismo religioso, porque através dela as pessoas ficam sabendo como funciona a estrutura do candomblé, da jurema, da umbanda, e a partir disso vai entender o quanto não tem nada de demônio nesses espaços”, opina Janielly Azevedo, Iyalorixá do Terreiro de Candomblé Egbè Omo L’Omi, localizado no município de Jaboatão dos Guararapes, Região Metropolitana do Recife (RMR).

Janielly Azevedo, Iyalorixá do Terreiro de Candomblé Egbè Omo L’Omi – Imagem: Arquivo Pessoal

Seguindo as mesmas reflexões, Fernando Corteze, mestrando do Programa de Pós-graduação em Memória Social pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (PPGMS-UNIRIO), identifica as redes enquanto “aliadas”, mas alerta que é preciso cuidado. “Estamos passando por um processo de transformação digital, onde a tecnologia torna-se indispensável para grande parte das atividades diárias. Dessa forma, religiões como o candomblé não estão imunes de tornar-se parte desse processo, o que deve ser visto e analisado com muita cautela.”

Fernando Corteze, mestrando do Programa de Pós-graduação em Memória Social pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (PPGMS-UNIRIO) – Imagem: Arquivo Pessoal

Limites nas redes

Religiões de matriz africana são marcadas pela oralidade e segredo de determinados rituais, e esse último aspecto têm influenciado debates acerca dos limites referentes a conteúdos que devem ou não ser publicizados em redes sociais. O nascimento de uma yawô, ritual iniciático do Candomblé, é um dos ritos que não pode ser exposto, como explica Rebeca Sobrinho, de 23 anos, ekedy de Osun.

“Esse é um ritual muito debatido nas redes sociais e, na minha opinião, o que menos deveria ser. Eu entendo que as pessoas ficam curiosas, mas é um momento seu com o Orixá. Não concordo em explicar o que acontece nesse momento, principalmente para quem não tem nenhum interesse em ir a um terreiro”, opina a estudante de Letras – Inglês na Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS).

Rebeca Sobrinho, de 23 anos, ekedy de Osun – Imagem: Arquivo Pessoal

Um caso recente que gerou polêmica a respeito da exposição do Candomblé nas redes envolve o cantor e influenciador digital Spartakus Santiago ao publicar imagens da Festa de Legbá Izó, que acontece há 17 anos no terreiro de candomblé Ilê Asé Obá Omi Del’Oyá, em Salvador (BA). O cantor foi convidado para a festa, onde apresentou uma de suas músicas, e recebeu uma enxurrada de críticas em seu perfil no Instagram, onde publicou o vídeo.

“Queria saber quem achou uma boa ideia gravar num terreiro com uma pessoa incorporada junto”; “A pergunta que não quer calar? Essa moça tá incorporada? Espero que não. Do fundo do meu coração”; “Um enorme desrespeito com a religião e com as pessoas que aparecem no vídeo”; foram alguns dos comentários. Posteriormente, a casa esclareceu em nota que o artista foi convidado para se apresentar e recebeu autorização para filmar. 

A Iyalorixá Janielly Azevedo comenta não ver problemas com a publicação de celebrações e outros conteúdos, no entanto destaca a preocupação sobre como as informações podem ser utilizadas. “Não vejo como algo problemático, mas a minha preocupação referente à exposição de algo que é sagrado para o mundo é dar poder aos brancos, porque eles utilizam o que é nosso. Então é preciso ter cuidado sobre quem vai e como será utilizado isso.”

Para Beatriz Sousa, ativista social de 22 anos, e abiã – termo usado para se referir à pessoa que entrou recentemente no candomblé – nem tudo deve estar nas redes sociais. Apesar de gostar de consumir vídeos de dança, música e provérbios africanos ensinados por pais e mães de santo, já foi surpreendida com conteúdos que rompem com segredos religiosos.

“As pessoas postam de tudo: saída de yawo, momentos íntimos de processos iniciáticos, Orixá tomando Rwm, gente incorporada. Eu diria que é um afronte a todo o segredo do sagrado que se tem no candomblé. Mas vai da doutrina de cada casa.” 

Beatriz Souza, ativista social de 22 anos, e abiã – Imagem: Divulgação

Para ela, esse conteúdo tem se espalhado por pura curiosidade, ainda ditada pelo que é socialmente considerado “normal” ou “exótico”. “Às vezes a pessoa está entrando ali não para se cuidar, mas para sanar uma curiosidade, porque acha que vai ser como no TikTok. Mas tem uma parte muito difícil que não mostram: a obediência, a hierarquia, o cansaço.”

Impressão que divide com Rebeca. Para a estudante de Letras, “o que está sendo compartilhado é muito voltado para o humor e beleza da religião. A parte bonita, que fala sobre resolver problemas, aceitação, ancestralidade. Algo muito instigante para os jovens”. 

Nesse sentido, a produtora executiva e diretora de produção Lorena Gomes, de 24 anos, observa que, com a predominância das redes sociais, todos sentem necessidade de produzir conteúdo e falar sobre o seu dia a dia. “O candomblé é uma religião de silêncio. Tem coisas que você não posta, porque na internet tudo é muito superficial. Tem coisas que gente que frequenta há cinco anos não vai saber fazer. O que eu sei é: Orixá não é filmado. Mas hoje tem Padilha de lente de contato e lace no TikTok. O candomblé que eu aprendi não é assim”, desaprova a jovem candomblecista.

Lorena Gomes, produtora executiva e diretora de produção – Imagem: Arquivo Pessoal

A experimentação do corpo

Esses tipos de exposição  não surgem  com as redes sociais. Na década de 1950, o fotógrafo francês Pierre Verger entraria para a história da fotografia por ter registrado rituais iniciáticos em terreiro de candomblé na Bahia para a revista francesa Paris  Match. Até então fotos como aquela nunca haviam sido publicizadas no país, o que gerou grande polêmica.

Um ano depois, o fotógrafo brasileiro José Medeiros praticou a mesma ação, desta vez para a revista brasileira “O Cruzeiro”. As fotos faziam parte de uma reportagem intitulada pejorativamente de “As noivas dos deuses sanguinários”, escrita pelo jornalista Arlindo Silva. O conteúdo também levantou polêmica devido às imagens sigilosas que, dentre outros ritos, envolviam sacrifício animal, em um terreiro localizado em Salvador (BA). 

Doutora em Sociologia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Carolina Rocha, candomblecista e pesquisadora de conflitos religiosos contemporâneos, afirma que há rituais na religião que só podem ser presenciados por quem experimentou determinadas vivências com o corpo. “Tem coisas que dependem da experiência, não é porque é um grande segredo, é porque a pessoa ainda não experimentou com o corpo. Para a gente conhecimento é corpo, se não acessei com o corpo, não vou ter como saber certas coisas”, enfatiza a pesquisadora, ressaltando a diferença em relação a sociedade cristã que costuma vincular o corpo ao pecado.

Carolina Rocha candomblecista Doutora em Sociologia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e pesquisa conflitos religiosos – Imagem: Arquivo Pessoal

Sabedoria que para Rebeca veio na prática. “Antes de entrar na religião, eu já assistia vídeos que falavam sobre rituais que só a vivência de terreiro pode nos preparar, e isso me deixou muito ansiosa. Eu criava uma afobação, que vinha pela experiência do outro. Hoje eu aprendi com meus mais velhos: nossa religião, sem o estudo e sem os pés nos terreiro, não é nada.” 

Posicionamento também partilhado por Fernando Corteze. “Vídeos, fotos, apostilas, entre outros materiais contendo os fundamentos da religião podem cair em mãos erradas, como de abians e yawos sem preparo, sendo reproduzido de forma equivocada e sem conhecimento para execução”, o que pode contribuir com a construção de uma comunicação enviesada, como atesta Carolina. 

“Uma imagem é muito mais impactante que um texto, então uma pessoa que não conhece aqueles rituais e vê a imagem de uma pessoa com sangue da cabeça aos pés associa de imediato a uma barbárie. Mas para nós o sangue é energia, não é um problema”, analisa, reforçando como esse preconceito dialoga com o racismo brasileiro.

Deformidade que reflete os resquícios coloniais de um Brasil que se estruturou a partir da negação de tudo que diz respeito ao povo negro. Realidade que se materializa nos números. De acordo com levantamento feito pelo JusRacial, nos últimos 14 anos houve um aumento de 17.000% no número de processos judiciais sobre racismo, a intolerância religiosa representa 1/3 desses casos. Nesse cenário, as religiões de matriz africana são as mais atacadas.

Em contraponto, as redes sociais, por outro lado, também têm se mostrado como ferramenta estratégica no combate a esse cenário através de conteúdos informativos.  “Do mesmo jeito que é um espaço complicado porque é onde também se dissemina ódio, por outro lado também é uma ferramenta que a gente utiliza para desmistificar e tirar a capa da satanização direcionada a nossas religiões”, finaliza a Yalorixá Janielly.

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