Liderança de quilombo no Maranhão é a quarta assassinada no Brasil esse ano e reforça crise na proteção de ativistas quilombolas

A Bahia lidera os registros de mortes violentas de quilombolas no Brasil (11). Coordenador Nacional da Conaq afirma que medidas aplicadas pelo serviço de proteção da Bahia não se adequam aos quilombolas.

A Bahia lidera os registros de mortes violentas de quilombolas no Brasil (11). Coordenador Nacional da Conaq afirma que medidas aplicadas pelo serviço de proteção da Bahia não se adequam aos quilombolas.

Por Andressa Franco

Imagem: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

O presidente da Associação de Moradores do Quilombo de Jaibara dos Rodrigues, José Alberto Moreno Mendes, de 47 anos, foi assassinado com cinco tiros dentro da sua comunidade na noite do último dia 27 de outubro. O crime aconteceu no município de Itapecuru-Mirim (MA). A Secretaria de Segurança Pública do estado informou que uma perícia foi realizada no local do crime.

O Quilombo de Jaibara dos Rodrigues foi reconhecido pela Fundação Cultural Palmares em 2005, no entanto, ainda não conseguiu o título de propriedade de território. Assim, a região é alvo de disputas, e quilombolas relatam que as ameaças de morte são constantes.

José Alberto Moreno Mendes, liderança quilombola do Maranhão assassinada dentro da comunidade – Imagem: Divulgação Federação Quilombola De Itapecuru-Mirim

O caso é o quarto assassinato de lideranças quilombolas no Brasil em 2023, segundo a Conaq (Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Quilombolas). Nos últimos 10 anos, a organização contabiliza ao menos 35 quilombolas assassinados.

Bahia lidera registros de mortes violentas de quilombolas no Brasil

Segundo dados do Censo Demográfico de 2022, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 68,19% dos quilombolas do país residem no Nordeste. A Bahia concentra 29,90% desta população e o Maranhão vem na sequência, com 20,26%.

Em contrapartida, a Bahia apresenta o terceiro menor percentual de quilombolas residindo em áreas oficialmente delimitadas. Assim, a luta pelo direito ao seu território é uma das principais agendas dessas comunidades, o que coloca as vidas de muitas lideranças em risco. A Bahia lidera os registros de mortes violentas de quilombolas no Brasil (11), seguida pelo próprio Maranhão (10) e pelo Pará (4). 

Um desses casos aconteceu no dia 17 agosto, quando Mãe Bernadete Pacífico, de 72 anos, líder do Quilombo Pitanga dos Palmares, no município Simões Filho, foi executada a tiros dentro de casa. O caso chamou atenção para uma crise muito mais profunda.

Mãe Bernadete Pacífico, líder do Quilombo Pitanga dos Palmares, estava no Programa Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos na Bahia e foi executada em agosto- Imagem: Reprodução Bem Blogado

“Mãe Bernadete emprestou uma biografia ao que temos tratado simplesmente como números. Esses números têm rosto, atuação no território”, afirma Wagner Moreira, coordenador do IDEAS – Assessoria Popular.

A organização é responsável por gerir o Programa de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos na Bahia (PPDDH-BA). Mãe Bernadete era uma das lideranças acompanhadas pelo Programa. Pelo menos três das câmeras que deveriam vigiar a casa da yalorixá estavam com problemas, e não foram trocadas por falta de verbas.

Wagner explica que além de defasado no orçamento, o programa está defasado nas estratégias das políticas públicas de proteção. Para reparar o problema, o programa está passando por reformulação em caráter nacional através do Grupo de Trabalho Técnico Sales Pimenta, composto por representantes do governo federal e da sociedade civil.

“Temos muitas novas dinâmicas na lógica de segurança no país, e essa estratégia precisa ser repensada. Aqui na Bahia, o programa foi crescendo muito e não se atualizou do ponto de vista orçamentário”, pontua.

Wagner Moreira, coordenador do IDEAS – Assessoria Popular – Imagem: Arquivo Pessoal
Crise de confiança no Programa de Proteção dos Defensores dos DH na Bahia 

Depois da execução de Mãe Bernadete, o governador da Bahia, Jerônimo Rodrigues (PT), declarou que os pedidos de proteção a quilombolas aumentaram no estado.

Para José Maximino da Silva, conhecido como Max, coordenador nacional da Conaq, se o PPDDH não for reestruturado, contar com recursos financeiros e ser discutido com a população alvo, não haverá condições técnicas, nem capacidade de proteger os ativistas. A morte de Mãe Bernadete, afirma, visibilizou esse quadro.

“Nem sempre quilombolas viram o programa como uma opção real de proteção. Eles não estão amparados no serviço de proteção da Bahia, porque as medidas aplicadas não se adequam aos quilombolas.”

Wagner reconhece os obstáculos no que diz respeito à relação de confiança e diálogo. “Acreditamos que a demanda para programas de proteção na Bahia é muito maior do que a contabilizada hoje. Ela só não é demonstrada em números porque não existe confiança no programa. Estamos buscando nos reaproximar.”

Diante das fragilidades do Estado em garantir a segurança desses ativistas, fundos emergenciais têm surgido. Entre eles, o S.O.S. Quilombola, operado pelo Fundo Brasil em parceria com a Conaq. As organizações também registraram o mesmo efeito de aumento nos pedidos de proteção.

Desde março, pelo menos 50% dos apoios do S.O.S. Quilombola têm sido concentrados no território baiano, de acordo com a assessora de projetos do Fundo Brasil, Mayana Nunes. Apesar de colaborar há anos com a Conaq, a criação de um apoio emergencial é mais recente, fruto de uma preocupação com os impactos da gestão Bolsonaro. 

“Historicamente as lideranças quilombolas são um dos grupos que mais sofrem ameaças e são assassinadas. A Conaq apontou preocupação em construir mecanismos de sustentabilidade financeira emergencial diante desse contexto”, conta Mayana.

Mayana Nunes assessora de projetos do Fundo Brasil – Imagem: Airan Albino/Acervo Fundo Brasil

O que explica essa demanda, aponta Max, é o agravamento dos conflitos fundiários, que têm ameaçado a existência das próprias comunidades, devido a morosidade do processo de demarcação, delimitação e titulação dos territórios quilombolas. 

Principais limitações do PPDDH

A Política Nacional de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos (PNPDDH) foi criada em 2007. Já o PPDDH, em 2016. Segundo Wagner, o programa tem raízes no processo de redemocratização, e em um contexto marcado pela luta pela reforma agrária. “Se entendia que o Estado, muitas vezes violador, não conseguiria garantir condições para o livre exercício de manifestação e reivindicação por direitos.”

Assim, o programa foi pensado para ser multilateral: com participação do poder público federal, estadual e execução da sociedade civil. Apesar dos avanços, alguns pontos seguem estagnados. Segundo levantamento realizado pela Terra de Direitos e divulgado em maio, caso o país mantenha o atual ritmo de regularização fundiária dos territórios quilombolas, serão necessários 2.188 anos para titular integralmente os até então 1.802 processos abertos no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). 

Até agosto, a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, anunciou a titulação de cinco territórios quilombolas. A meta do governo federal é regularizar ao menos 300 territórios até o fim da atual gestão, em dezembro de 2026.

“O que o programa faz é diminuir os riscos enquanto se busca uma solução para o conflito. Nos casos quilombolas, que o conflito é por terra, o programa não tem condições de garantir segurança, ele diminui riscos”, afirma Wagner. Hoje, defensores quilombolas compõem o segundo maior grupo do programa na Bahia, atrás apenas dos indígenas. 

Perguntado sobre como funciona essa diminuição de riscos, o coordenador do IDEAS explicou que o programa trabalha com análise de risco de cada defensor, devido a diversidade de contextos e de tipos de ameaça. A partir dessa análise, são construídas estratégias para diminuir os riscos identificados. “Não tem uma receita de bolo que a gente vai aplicando a todo e qualquer defensor.” 

Além disso, cada estado atua com um plano de trabalho específico. O IDEAS não construiu o plano que opera hoje, apenas executa. Trata-se de um plano construído para acompanhar 80 protegidos, mas quando a organização assumiu, 136 defensores estavam sendo acompanhados. Havendo defasagem em termos de equipe e de orçamento.

No entanto, é difícil quantificar a defasagem, já que o programa não trabalha com a base inicial de um valor por protegido, considerando as muitas especificidades de cada estado.

Entre as limitações do PPDDH, no que diz respeito à proteção de quilombolas, Max destaca que o programa não considera a segurança coletiva territorial, e falta formação das equipes para aplicar perspectiva de gênero e racial às medidas.

O coordenador da Conaq aponta ainda dificuldades no acesso ao programa, como ausência dos meios de comunicação necessários, diálogos com os órgãos competentes, e informações sobre o funcionamento. “Outra questão são os tipos de proteção ofertados pelo programa, a exemplos de câmeras, que nem sempre funcionam e não estão integradas num sistema de monitoramento, e rondas policiais simbólicas, que não correspondem à gravidade dos riscos enfrentados por defensores e defensoras quilombolas.”

José Maximino da Silva, conhecido como Max, é coordenador nacional da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos –CONAQ – Imagem: Arquivo Pessoal

Relatos semelhantes aos ouvidos por Mayana por lideranças inscritas no S.O.S. Quilombola, especialmente no que diz respeito à ausência de recursos. “Muitas vezes o Estado brasileiro é o próprio violador de direitos dessas lideranças. Então as lideranças não se sentem seguras mesmo nesses programas.”

Assim, o objetivo dos fundos emergenciais não é substituir o Estado, mas tensionar o Estado, chamando atenção para a necessidade de fortalecer essa política pública.

Futuro do Programa

Wagner faz uma projeção de aumento considerável na entrada de novos protegidos no programa, tanto na Bahia quanto em escala nacional, devido à recuperação do diálogo com os movimentos. Mas é preciso que o equipamento esteja preparado para isso. 

De acordo com Max, o movimento quilombola já tem apresentado medidas para aperfeiçoar essas ações e está disposto a contribuir no fomento desses mecanismos.

Hoje, a Conaq em parceria com a Cooperação para o Desenvolvimento dos Países Emergentes, executa o Projeto Resistência Quilombola, para fortalecer a segurança de comunidades quilombolas. O Projeto atua em sete estados, mas ainda não chegou à Bahia. Em paralelo, a organização também sugeriu medidas a órgãos responsáveis pela temática. 

Entre as ações sugeridas ao governo federal e estaduais, está o estabelecimento de metas concretas anuais de titulação dos territórios e publicação de todos os decretos de desapropriação em benefício das comunidades quilombolas que estão prontos aguardando assinatura presidencial.

Especificamente na Bahia, são demandadas à criação de força tarefa para assegurar a titulação do Quilombo Pitanga de Palmares em até um ano. À Secretaria de Segurança Pública e Poder Judiciário do estado, é solicitada a adoção de todas as medidas administrativas e judiciais possíveis para elucidar e punir os responsáveis pelo assassinato de Mãe Bernadete e de Binho do Quilombo. Demais ações dizem respeito à:

– Criação de Comissão ou Grupo de Trabalho para acompanhar os casos de assassinatos das lideranças quilombolas;

– Revisão dos casos de quilombolas defensores de DH inscritos em Programa de Proteção para avaliar as medidas de proteção adotadas; 

– Revogação de medidas como a Instrução Normativa INCRA nº 111/2021, devolvendo a competência de dispor sobre o licenciamento ambiental de obras, atividades ou empreendimentos que impactem terras quilombolas, à Fundação Cultural Palmares.

“Vivemos no Norte e Nordeste uma crise de segurança pública, temos questões históricas do país com a regularização fundiária. Temos que pensar não só nos sujeitos, mas nos conflitos que o país precisa enfrentar. Se não o programa só vai enxugar gelo”, finaliza Wagner. 

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