“Maria Quitéria viveu a dinâmica do seu tempo”, afirma historiador Urano Andrade

Desde 2012, o historiador analisa milhares de cartas de alforria, encontrando entre elas as que detalhavam a concessão de liberdade a escravizados de Joana Angélica e de Maria Quitéria, heroínas da independência do Brasil na Bahia.

Por Andressa Franco

Desde 2012, o pesquisador Urano Andrade, de 52 anos, esquadrinha um acervo de quase 20 mil cartas de alforria que constam nos livros de notas armazenados pelo Arquivo Público do Estado da Bahia. 

Nessa iniciativa, que lhe permitiu ter contato com diversas histórias de africanos escravizados e os diferentes caminhos que traçaram na luta por liberdade, uma descoberta em particular lhe chamou atenção. Duas das cartas encontradas detalhavam a concessão de liberdade a escravizados de Joana Angélica e de Maria Quitéria, heroínas da independência do Brasil na Bahia. 

A carta assinada pela Madre Abadessa Soror Joana Angélica em 1816, alforriava Florinda de São José. “A liberto de hoje para sempre e poderá gozar de sua liberdade como se nascesse livre do ventre de sua Mãe”, diz um trecho do documento, que só foi registrado em cartório em 1824, indicando que a alforria foi condicionada à morte da religiosa, em 1822.

Carta de alforria de Florinda, concedida por Joana Angélica – Crédito – Arquivo Público do Estado da Bahia

No caso da alforria assinada por Maria Quitéria, o escravizado a ser liberto se chamava Maurício. Assinado em 1852, o documento também conta com a assinatura da única filha e herdeira de Maria Quitéria, Luiza Maria da Conceição.

“Concedo a meu escravo Mauricio nagô sua liberdade pela quantia de trezentos mil réis, o que enquanto o seu valor seja de quatrocentos mil réis, eu lhe perdoo cem mil réis por caridade (…)”, diz trecho da carta. 

Carta de alforria de Florinda, concedida por Joana Angélica – Crédito – Arquivo Público do Estado da Bahia

Urano Andrade deu início à investigação depois de ser procurado pela professora Kristin Mann, da Universidade Emory, nos Estados Unidos. Ela estudava os chamados Agudás, descendentes de africanos escravizados que retornaram ao continente após a abolição da escravidão nas Américas, especialmente no Brasil. Foi então que Urano sugeriu buscar as cartas de alforria registradas na Bahia e criar um banco de dados. As primeiras cartas a serem analisadas datam de 1800, no momento Urano está no ano de 1855, avançando para 1860. Sua estimativa é que até o fim de toda a pesquisa, até 100 mil cartas sejam analisadas. 

De heroínas da independência a “senhora de escravos”

Presentes na memória do povo baiano enquanto heroínas da pátria, Joana Angélica foi assassinada em 1822 tentando proteger o Convento da Lapa, em Salvador, da invasão de tropas portuguesas. Enquanto Maria Quitéria se alistou disfarçada de homem no Exército também em 1822, integrando o Batalhão dos Voluntários do Príncipe. 

A importância histórica das personagens acabou por gerar um debate em torno da repercussão que a pesquisa ganhou, especialmente nos comentários da publicação realizada pelo jornal Correio, que em sua matéria sobre o assunto chega a se referir à Maria Quitéria como “senhora de escravos”.

“Gente, qual a novidade? Só acho bizarro a forma irresponsável e tendenciosa de colocar elas em um lugar de ‘senhoras de escravos’. As contradições existem? Existem! Mas isso não fazia destas duas heroínas da nossa Independência desmerecedoras de serem reconhecidas como são. Pesquisa importante, mas texto tendencioso a uma leitura que descredibiliza a história destas mulheres. Não curti”, escreveu a jornalista e diretora-geral da COMMBNE, Midiã Noelle.

A jornalista chegou a publicar um vídeo em suas redes sociais, repercutindo o debate. “Um jornalismo que não contextualiza as contradições históricas e não convida uma fonte para falar sobre isso, em uma matéria de caráter de reflexão histórica, acaba por reforçar a disseminação do ódio e da desinformação”, argumentou a jornalista. 

Em entrevista à Afirmativa, Urano reforçou o que já havia defendido em seu blog Pesquisando a História, onde explica que Maria Quitéria “viveu as dinâmicas do seu tempo”.

“A gente vive em um país onde a escravidão existiu, é fato. Maria Quitéria viveu a dinâmica do seu tempo. Ela foi uma heroína. Maurício, o seu escravizado, foi, como milhares de libertos e libertas, heróis e heroínas de suas próprias histórias”, afirma, ponderando ainda que muitos desses ex-escravizados também lutaram pela Independência, mas que suas histórias muitas vezes são deixadas de lado.

“Existem essas contradições, já tabulamos quase 400 casos de escravizados que compravam outro escravizado, como troca para adquirir a sua alforria. O que a gente tem que entender é essa dinâmica [da época], e não trazer para o presente, para não cair no anacronismo histórico”, completa.

Entre os exemplos citados pelo historiador que revelam essa dinâmica, está a história de Anacleta Maria do Rosário. Já em liberdade, ela reencontrou uma de suas filhas, que havia ficado no continente africano, sendo vendida. Determinada a resgatá-la, Anacleta pagou 190 mil réis pela filha, mandou que fosse batizada com o nome de Felicidade e, mesmo sem saber ler ou escrever, procurou um cartório para que redigissem a carta de alforria que assegurava a liberdade da jovem. “A gente tem que ressaltar que essas mulheres são heroínas de suas próprias histórias”, acrescenta.

A fake news sobre Zumbi

O debate acerca de Joana Angélica e Maria Quitéria foi conduzido até mesmo para a propagação de desinformação sobre Zumbi dos Palmares, com comentários que acusavam “até mesmo” o líder do Quilombo dos Palmares de manter escravizados. Alegação sem nenhuma evidência histórica concreta e frequentemente levantada como tentativa de descredibilizar sua figura histórica.

“Todo mundo que tá falando de Zumbi aí tá passando um atestado gigante de ‘SOU IMBECIL’, evitem contatos com esse povo burro e/ou mau caráter… Não existe evidência histórica de escravizados em Palmares, mas sim diversos relatos que pessoas que fugiram da escravidão e encontraram lá acolhimento a ponto de se arriscarem para defender o quilombo e trazer outras pessoas pra viver lá. O livro de Leandro Narloch (que é um mentiroso) é o famoso engana besta e pegou muito otário”, comentou na publicação Matheus Buente, humorista e professor de história.

Para Urano, desinformação só pode ser tratada com informação, através por exemplo da própria documentação histórica. “O que havia sim era uma comunidade colaborativa que buscava a liberdade em relação à opressão do período colonial.”

A despeito de todas as contradições históricas evocadas pelas descobertas da pesquisa, Urano acredita que o mais importante é trazer à tona a realidade histórica, com o foco na reparação.

“Em nenhum momento o banco de dados teve como objetivo ‘cancelar’ ninguém. O papel do historiador é entender essas contradições. A reparação [também] vem através dessa documentação. A história é estudar o passado para entender o presente e tentar melhorar o futuro”, finaliza.

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