Mídias negras e indígenas: comunicação em defesa da vida

“Nem fome, nem tiro, nem Covid: povo negro quer viver” – esse foi um dos lemas das manifestações no Rio de Janeiro, após o assassinato de João Pedro, de 14 anos. Os protestos ampliaram o coro contra o racismo, assim como ocorreu nos Estados Unidos após a morte de George Floyd. Em comum: dois negros friamente assassinados por policiais, em países estruturalmente racistas.

Em meio à pandemia, informação é arma de luta para resistir ao genocídio de indígenas, quilombolas e das populações negras e de periferias

Por Alex Hercog*/ Imagem: Th Lima

“Nem fome, nem tiro, nem Covid: povo negro quer viver” – esse foi um dos lemas das manifestações no Rio de Janeiro, após o assassinato de João Pedro, de 14 anos. Os protestos ampliaram o coro contra o racismo, assim como ocorreu nos Estados Unidos após a morte de George Floyd. Em comum: dois negros friamente assassinados por policiais, em países estruturalmente racistas.

Enquanto isso, diariamente novos vídeos de lideranças indígenas circulam nas redes sociais, denunciando as ações ou omissões das “autoridades brancas”. Além de lidar com um sistema de saúde precário para o atendimento da população indígena, as comunidades ainda sofrem com as invasões de garimpeiros.

Uma situação que chamou a atenção foi a dos Yanomamis, que afirmaram haver mais de 20 mil garimpeiros em suas terras, expondo a população à morte via coronavírus ou à bala. No final de junho, os indígenas denunciaram o assassinato de dois homens yanomamis na Amazônia.

A falta de uma política eficaz para garantir a subsistência dos indígenas nesse período também os obriga a irem até às cidades para retirar o Auxílio Emergencial e comprar alimentos. Como é de se esperar, muitos acabam se infectando e levando o coronavírus para suas aldeias.

A resposta do presidente Bolsonaro: vetos ao Projeto de Lei 1142/20, negando a obrigação do governo federal em garantir acesso à água, materiais de higiene e leitos hospitalares aos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais. Afinal, para o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, a tragédia provocada pela pandemia é uma boa oportunidade para “passar a boiada” na Amazônia. Quanto pior, melhor.

A pandemia da Covid-19 representa, portanto, um triplo desafio para as populações negras e indígenas: a fome, o tiro e o coronavírus têm causado mortes diárias. Nesse contexto, a reação desses povos utilizando seus próprios veículos de mídia se destaca na luta pela vida.

 

Apartheid Digital 

Na série produzida pelo Intervozes em parceria com a Revista Afirmativa, já foram apresentados vários pontos que revelam o abismo das desigualdades no país. No artigo Emissoras de TV seguem silenciando as vozes negras sobre racismo no Brasil, foi analisada a cobertura das manifestações antirracistas pelas principais emissoras da televisão brasileira e concluiu o que já estamos acostumados: destaque para episódios de quebra-quebra e pouco aprofundamento sobre o que os protestos desejavam expressar e reivindicar.

Já no texto Jornalismo local poderia amenizar impactos da pandemia nos quilombos, as autoras chamaram a atenção para o “deserto de notícias” que atinge as comunidades quilombolas. Elas apresentaram dados que mostram o quanto essa população tem acesso negado à internet e ao sistema de radiodifusão. E, quando superam essa exclusão, se deparam com informações que pouco dialogam com a realidade dos quilombos.

Por fim, no artigo Pandemia, Desigualdades Raciais e acesso à Internet: e eu com isso?, foi questionado o “novo normal” especulado para um Brasil pós-pandemia. Conceitos que ganharam força durante a quarentena, como “home office”, “máxima digitalização” e “aulas online” ignoram a exclusão de boa parte da população ao acesso, com qualidade de conexão, ao mundo digital.

O que esses três textos apontam é que há uma estrutura de comunicação no país que faz com que a informação não chegue ou não dialogue com as populações negras e indígenas. E sendo a informação uma das armas para derrotar o coronavírus, a exclusão digital e um sistema racista de rádio e TV deixam ainda mais vulneráveis as comunidades que lutam pela vida.

 

Informação e Resistência 

Mas como vêm fazendo desde o século XVI no Brasil, negros e indígenas seguem se organizando e resistindo com seus próprios meios. E uma das frentes de luta é justamente a informação.

Tendo o próprio governo federal e alguns gestores estaduais como obstáculo para acessar dados sobre a situação da Covid-19 no país, algumas entidades passaram a assumir o monitoramento dos casos.

A Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) e o Instituto Socioambiental vêm acompanhando e divulgando a situação nos quilombos: 3.465 pessoas infectadas e 134 óbitos (em 13 de julho).

Já a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, em parceria com outras entidades, registrou mais de 15 mil indígenas infectados e 517 mortes (15 de julho). No Rio de Janeiro, a organização não-governamental Comunidades Catalisadoras está coletando e divulgando os casos ocorridos nas favelas do município: 5.269 casos confirmados e 735 óbitos (15 de julho).

Além do monitoramento, diversos grupos também estão produzindo conteúdos e buscando dialogar com as populações locais. Os meios utilizados têm sido diversos: faixas, cartazes, podcast, vídeos, reportagens, lives, cards, áudios, artigos, rádios comunitárias, “carro do ovo”, dentre outras. O conteúdo varia desde à mobilização para a prevenção individual e coletiva ao vírus, quanto às orientações para conseguir se cadastrar no programa de Auxílio Emergencial.

O grande diferencial dessas mensagens é que elas são produzidas pelos próprios moradores das periferias urbanas, quilombos e comunidades indígenas. E, como bem disse Nataly Simões, em seu artigo Sem mídia periférica, efeitos do coronavírus na realidade dos negros e pobres não seriam denunciados, tal produção é feita por jornalistas que vivem a realidade que retratam – diferente do que normalmente ocorre, quando profissionais da grande mídia desconhecem o que de fato está ocorrendo nas comunidades e não conseguem alcançar pontos sensíveis a essa população.

Muitas dessas iniciativas também vêm acumulando o papel de ajudar economicamente as pessoas mais vulneráveis. Coletivos e comunicadores/as comunitários/as vêm arrecadando doações e distribuindo materiais de higiene e alimentos nas comunidades.

É o exemplo do Movimento Favelas na Luta, que reúne diversos coletivos do Rio de Janeiro no enfrentamento à violência policial e aos efeitos da pandemia. A comunicação tem sido uma ferramenta importante na mão do movimento, que ainda vem produzindo conteúdos para auxiliar os estudantes que irão realizar o ENEM.

Esse tipo de atuação em rede também tem crescido durante a pandemia. Ainda em março, dezenas de comunicadores/as se articularam em torno da frente #CoronaNasPeriferias, contribuindo para uma troca de ideias e ações que foram sendo desenvolvidas em cada território. No site oficial, é possível encontrar uma lista poderosa de coletivos de comunicação.

Outro exemplo de atuação em rede é o Existo – reunindo comunicadores/as do Norte e Nordeste e que vem produzindo uma série de podcast. Um dos integrantes, Walter Oliveira (Coletivo Jovem Tapajônico), falou da importância da produção de conteúdo a partir do olhar de quem normalmente é invisibilizado pela mídia hegemônica.

Natural de Santarém (PA), Walter ressalta as dificuldades que comunidades indígenas da região Amazônica enfrentam para ter acesso a informação ou mesmo à comunicação básica. “Tem lugares que só tem rádio, mas não pega sinal de telefone. Então é difícil trabalhar com essas pessoas, mas estamos criando mecanismos para que as informações cheguem. Tem comunidades que têm telecentro e uma internetezinha lá – mas quando chove, não dá pra acessar. Tem comunidades onde não pega celular, então a pessoa tem que ir a outra localidade, levando horas e horas de bajara para chegar num lugar que pega comunicação”.

Apesar das dificuldades, Walter destaca algumas ações desenvolvidas pelo seu coletivo, com o objetivo de levar informação às comunidades. “Criamos muitas paródias, já que o povo aqui gosta de música”. Outra ferramenta utilizada é uma bicicleta com um caixa de som acoplada.

Todas essas iniciativas, seja na Amazônia, seja nos quilombos ou periferias das grandes cidades, vêm tendo um papel fundamental no combate ao vírus e à fome. Mas como não poderia deixar de ser, também formam uma frente de luta para resistir às balas do Estado.

E lá estão as mídias negras e indígenas: colaborando na organização e cobertura jornalística das manifestações antirracistas; promovendo o debate; e denunciando a violência provocada pelo racismo.

Além de dar visibilidade aos que – sem elas – provavelmente virariam números sem nome: João Pedro Pinto, Micael Silva, Lusia dos Santos Lobato, Felipe Santos Miranda, Brayam Ferreira dos Santos, Docineide Paumari, Matheus Kaique, Igor Bernardo dos Santos, Carivaldina Costa (tia Uia), Lucas Morais, David Nascimento, Vovó Bernaldina, Guilherme Silva Guedes, Igor Rocha, Baga de Bagaceira, Denise Rocha, Alvanei Xirinana, Fabrício Uprewa, Domingos Mahoro Eõ, Amâncio Ikõ Mundukuru, Fausto Silva Mandulão e Paulinho Payakan. Essas são algumas das milhares de vítimas do genocídio em curso no Brasil.

 

*Alex Pegna Hercog é baiano, graduado em Comunicação Social (Relações Públicas), membro do coletivo Intervozes e do Coletivo Baiano pelo Direito à Comunicação

Compartilhar

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *