Muniz Sodré não luta sozinho contra a fúria do Covid 19

Por Céres Santos*

Eu pretendia escrever sobre o falso caráter democrático que a mídia hegemônica e médicos/as querem imputar ao Covid 19. Também queria falar sobre a preferência do vírus pelos/as idosos/as e a exclusão ‘natural’ desse grupo na hora da disputa por um respirador. Morram os/as negros/as. Vivam os/as brancos/as. Morram os/as idosos/as, vivam os/as jovens. Não consegui, pois afora a convivência com essa pandemia, com a insegurança transmitida pelo desgoverno federal, alguém muito importante para o meu ativismo luta contra o Coronavírus: Muniz Sodré, que entre outras coisas, é Obá de Xangô no Ilê Opô Afonjá; professor na UFRJ; jornalista e sociológico com quase (ou mais?) 40 livros publicados no Brasil e vários deles, no exterior. E, há menos de um ano, ocupa a vaga deixada por Mãe Stella de Oxóssi na Academia de Letras da Bahia.

Vou me explicar melhor. Sodré é uma referência para a Comunicação. Não tem como se falar em comunicação e questões raciais sem citar alguns dos seus livros como Claros e Escuros (1999); A Verdade Seduzida (1988); A Comunicação do Grotesco (1983); e O Monopólio da Fala (1982). Mas a minha ligação com Sodré também é pessoal. Ele teve um papel singular na produção da minha tese, defendida na ECA/USP, no inicio do último mês de março. Minha tese teve a intenção de conhecer a produção comunicacional, nas redes digitais, de quatro organizações de mulheres negras brasileiras: Instituto Odara (BA), Instituto Flores de Dan (BA), Associação das Rendeiras de Petrolina (PE) e a Ong Criola (RJ). Eu queria identificar a presença de alguns dos pressupostos dos feminismos negros nessas produções, conhecer o conteúdo desses discursos contra-hegemônicos.

Mas você já deve estar perguntando e aonde Muniz Sodré entra nessa história? Calma, já, já eu chego lá. Então, na coleta dos dados, no mapeamento dessas entidades e na leitura das publicações, principalmente no Facebook, a pesquisa começou a desenhar um contexto marcado por postagens onde a presença das emoções se mostrava de forma explicita e insistente. Aí essa afetividade, emoção presente nessa comunicação, que denomino de afro diaspórica de mulheres negras brasileiras, começou a me inquietar. Eu não podia fazer um trabalho nesse grau de complexidade, uma tese de doutorado, sem observar as especificidades, uma das marcas do movimento de mulheres negras. Eu não poderia me apoiar em teorias, metodologias do campo da comunicação que, de forma hegemônica, não me enxergam. Tão pouco observam as especificidades dessa comunicação que transporta características seculares, como é o caso da afetividade, da solidariedade. Peculiaridades que o processo de desumanização do povo africano não matou.

E aí passei a procurar alguém que também fizesse uma critica a produção do conhecimento associada, apenas a racionalidade. Nessa busca frenética me reencontrei com Muniz Sodré. Não lembro mais como cheguei ao seu livro Estratégias Sensíveis. Acho que foi relendo uma lista que tenho das suas obras e o título me despertou curiosidade. Mas por que acredito na ancestralidade, na força dos Orixás, sei que não estava só naquela garimpagem. No mesmo dia iniciei a leitura do livro que, felizmente, já estava digitalizado. A leitura foi a mais difícil que fiz para a produção da tese. Quem conhece Sodré sabe o quanto o seu pensamento é refinado, complexo e ele transita com desenvoltura pela filosofia. Pessoalmente, ler Sodré é um enorme exercício de concentração e paciência. Em Estratégias Sensíveis não foi diferente. Melhor, foi pior. O livro, escrito em 2006, tem 295 páginas. Precisei lê-lo duas vezes. Não contei como terceira a elaboração do fichamento, pois as leituras já foram pontuais, nos trechos que destaquei no livro.

Essa minha quase compulsividade se justificava. Em Estratégias Sensíveis Sodré faz uma crítica e sugestão ao campo da Comunicação. A crítica, em síntese, é constatar que, na atualidade, a área da Comunicação, com o avanço vertiginoso das Tecnologias da Informação e da Comunicação (TIC’s) recorre com mais incidência aos audiovisuais e a interação com essa linguagem se dá, principalmente, por meio das sensações, das emoções. E, por conta disso, os estudos precisam observar essas mudanças e, assim, aproximar a racionalidade da afetividade. Ao entender a proposta de Sodré, transformei-a em uma categoria de análise para estudar a produção comunicacional, nas redes sociais, das quatro instituições de mulheres negras já citadas.

Mas o problema não estava resolvido. E aí veio a etapa mais pessoal, entre eu e Sodré. Por ser uma construção muito complexa eu não tinha certeza de ter compreendido corretamente as Estratégias Sensíveis. E, por isso, meu receio era usá-la de forma indevida. Olha o tamanho do problema. Aí na manhã de um domingo de agosto de 2019, me armei de coragem e liguei para o professor. Falei do meu problema e ele, gentilmente, não só me ouviu como se ofereceu para ler o que já havia produzido. Eta! Minha insegurança era tanta, mas tanta que eu levei quase um mês para lhe enviar o texto. Mas eu precisava superar o impasse.

A proposta Estratégias Sensíveis era a base do que eu queria defender e, se eu estava equivocada teria que refazer o trabalho e, se fosse o caso, até mudar o percurso da tese. Aí, numa segunda-feira de setembro de 2019, me animei e enviei o texto. No início da tarde do mesmo dia ele me respondeu, dizendo que não havia encontrado incoerências no meu texto, fez algumas sugestões de leituras e concluiu afirmando que “na verdade, acho que você é a primeira autora de tese que vejo abordar o problema por esse ângulo”. Quer saber se chorei? Óbvio! E muito! Mas de felicidade. Afinal, sou filha de Oxum e Iemanjá. Sou das águas!

Para além da sua influência na minha formação como jornalista, Sodré me mostrou sua cordialidade, gentileza, humildade e grandeza. Minha gratidão a ele será eterna. Acredito, tenho fé, que Sodré vencerá a fúria do Covid 19. Ele não está só.

 

*Ativista dos movimentos negro e de mulheres negras, jornalista, doutora em Comunicação, docente na UNEB e vice-coordenadora do grupo de pesquisa Hierarquizações Étnico-raciais em Comunicação e Direitos Humanos (RHECADOS).

 

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