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“O que fica é que continuo na luta. Eles não passarão”, diz Drª Maria Inês sobre ataques racistas e sexistas do prefeito de Cuiabá (MT)

A professora foi silenciada e teve que se retirar do evento após utilizar linguagem neutra durante sua fala
Imagem: Reprodução

Por Matheus Souza

Durante a abertura da 15ª Conferência Municipal de Saúde de Cuiabá (MT), no dia 30 de julho, a professora e doutora em Saúde Pública, Maria Inês da Silva Barbosa, foi atacada, silenciada, censurada e expulsa em uma ato de violência racista, sexista e LGBTfóbico por parte do prefeito Abilio Brunini (PL). 

O fato aconteceu após ela utilizar o pronome neutro durante seu momento de fala no evento. A linguagem neutra é uma forma inclusiva de se dirigir e tratar pessoas LGBTQIAP+.

Na ocasião, Abilio se irritou e interrompeu a fala da professora, alegando que a mesma estaria promovendo uma “doutrinação ideológica” ao ter usado a expressão “todos, todas e todes”. “Aqui no nosso município, na nossa gestão, a gente não trabalha com pronome neutro, nem com doutrinação ideológica”, disse o gestor. 

Abilio ainda afirmou que, durante seu mandato, não aceitará  manifestação de pronome neutro. “Se a senhora não se sentir à vontade em fazer uma apresentação que discuta a saúde de Cuiabá sem doutrinação ideológica e sem manifestação de pronome neutro, eu vou suspender a apresentação”, afirmou. Veja o momento no vídeo abaixo:

Frente ao caso, que ganhou repercussão imediata, conversamos com a professora Maria Inês, referência nacional no debate sobre racismo e saúde da população negra.

Revista Afirmativa – Como se deu o convite para participação na conferência? 

Maria Inês:. Eu recebi o convite para fazer a conferência magna do tema que estava nucleando o evento, que, entre outros eixos, era consolidar o SUS com a força do povo, participação social e políticas públicas. O prefeito estava presente porque era a abertura oficial. Quando iniciei a minha fala, primeiramente agradeci por estar em Cuiabá. Vim para cá em 1995, ao prestar concurso para ser professora na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), e fui muito bem acolhida. Tenho muito carinho tanto pela universidade quanto por esta terra. Foi também aqui o território que me aproximou das questões indígenas. Me fez crescer como pessoa, profissional e militante. Sou muito grata.

RAA senhora pode relatar como o incidente aconteceu?

MI:. Logo depois que saudei nossa ancestralidade e de todos presentes. Eu percebo que fazer isso mexe, incomoda certas pessoas. Saudei as pessoas que organizaram e possibilitaram esse evento. Saudei o encontro e reencontro de companheiros e companheiras. Saudei também os invisibilizados, as “vozes emudecidas”, como gosto de chamar as pessoas que limpam, cozinham, servem, sofrem, riem, choram, estão nos becos, vielas, nos corpos negros, nas periferias, nos centros, nas aldeias, na vida urbana e rural, nas palafitas e nos palacetes. Mulheres aviltadas, violadas, subjugadas. Indistintas identidades de gênero. Aqueles e aquelas que nem imaginam que deles falamos. Presentes!.

Chamei também atenção para nossa responsabilidade. Disse que não podemos mudar o passado, mas sim aprender com ele. O presente é nosso compromisso. Nós temos um compromisso social grande, porque estamos discutindo política de saúde para todas, todos e todes. Não se esqueçam disso e do seu papel na história. Na sequência eu digo: “somos negros, negras, negres, ciganas, ciganos, ciganes, brancas, brancos, branques, LGBTQIA+ e quanto mais letras necessárias porque são vozes que querem ser ouvidas”. 

Nesse momento, ele [o prefeito] sobe e diz “professora, se a senhora for continuar nessa né, com esse tipo de abordagem, nós aqui na prefeitura de Cuiabá não permitimos o uso do gênero neutro”. Eu então respondi que a política não era de Cuiabá, a política de saúde é uma política de estado e a constituição preconiza o acesso universal, para todos, todas e todes, e que ele não precisava fazer a advertência. Nós estamos num espaço democrático e de diálogo, e este espaço admite o contraditório. Nós estávamos em campos opostos, eu no campo por uma luta de uma política de saúde, de um projeto político emancipatório  Então eu avisei que iria me retirar.

RA – Qual foi a repercussão dentro da conferência após o ocorrido? A senhora conseguiu observar a reação do público?

MI:. Criou-se um tumulto. Recebi muito apoio dos presentes, se dizendo envergonhados, sentidos e com raiva. À eles eu digo: transforme isso em ação. Use isso quando você estiver discutindo a saúde de todas, todos e todes.

Quero ressaltar inclusive o papel da imprensa na cobertura desses eventos. As pessoas que estão no Mercado do Peixe, no Pedra 90 – bairro periférico de Cuiabá – não estavam sabendo. Isso não é colocado como uma agenda pela mídia. Quando temos conferências como essa, só aqueles que já fazem parte do movimento ficam sabendo. Isso não é aleatório, faz parte do nosso processo histórico de hierarquização da sociedade.

RA – Professora, como a senhora se sentiu frente a atitude desrespeitosa e preconceituosa do prefeito?

MI:. Eu sabia o que iria encontrar, eu não vim ingênua. Sabia que estava em um campo adverso. Quando eu participei da Conferência Estadual em 2003, embora em um governo de direita, foi admitido o diálogo, a participação do contraditório. Mato Grosso é onde o bolsonarismo deita e rola, mas isso aqui não é deles! Eu não sinto como uma ofensa à mim. O projeto dele se contrapõe ao projeto ao qual eu me filio. Minha trajetória de militância me permite observar que ele está, por eu ser mulher, negra, vai contra a concepção deles de sociedade. Estava ali representada em mim. Não sou eu como pessoa, é o que eu represento. É a ousadia de alguém como eu estar ali falando.

É um perfil fascista, mas eu sabia com quem estava lidando. E ele ousou contestar em um espaço em que ele não tem esse poder. Então para mim o que fica é que continuo na luta. Eles não passarão. E o que me aquece o coração é saber que não estou só. Busco, com o melhor que posso, ser uma voz que está se insurgindo contra esse processo.

RA – Qual seria o texto que a senhora iria apresentar durante a conferência antes de ser interrompida? Ainda iremos ter a oportunidade de escutá-lo?

MI:. Eu ia falar da própria sociedade mato grossense, povos indígenas e ciganos. Hoje à noite teremos uma aula no Instituto de Saúde Coletiva, onde lecionei, e vou apresentar lá o texto que iria apresentar na conferência. São apontamentos que me permitem refletir e fazer com que as pessoas também reflitam. A minha intenção sempre é instigar as pessoas à pensar. Um dos exemplos que uso: Nós, mulheres negras, somos as maiores vítimas fatais da mortalidade materna; mulheres indígenas muito mais. Temos o menor número de consultas pré-natais. Como isso acontece se temos o agente comunitário de saúde e a unidade comunitária de saúde disponíveis? Para responder isso temos que ver o sistema como um todo.

Eu pergunto sempre: O horário [de atendimento das unidades de saúde] das 8hrs às 17h deixa alguém de fora? E ainda digo mais, estou sendo generosa pois sei que não funcionam das 8h às 17h. Aquele trabalhador e trabalhadora que trabalha na base, que não tem carreira, que é a maioria da enfermagem, negra, que também é parte desse processo de terceirização do SUS. Isso sim impacta, e é isso que precisamos estar discutindo.

Quando falamos de saúde da população negra o que estamos dizendo é que o racismo é parte da determinação social do processo saúde-doença. Nós não somos tão distintos uns dos outros para ter uma política específica, não é disso que se trata. Mas o sistema possui as suas formas de tentar ajustar aquilo que vem para romper.

RA – E a senhora pensa em tomar algum tipo de medida judicial contra o prefeito?

MI:. Quem tem que tomar uma medida contra a forma que ele lidou é o Conselho Municipal de Saúde, pois ele não preside a conferência. Se essa forma de pensar se consolida e passa sem punições, o SUS sai enfraquecido.

Mas nós não perderemos. Viemos de longe. De sistemas fechados, da escravidão, e aqui estamos, queiram ou não queiram. É disso que se trata.

A nossa luta liberta!

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