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O que o Estado chama de operação, o povo chama de massacre

O preço da negligência é pago com sangue. Enquanto políticas públicas falham, a bala se torna a resposta do Estado
Imagem: Tomaz Silva/Agência Brasil

Por Catiane Pereira

Ao longo da última terça-feira (28), o estado do Rio de Janeiro revelou, mais uma vez, o resultado de anos de negligência. A chamada Operação Contenção, que mobilizou mais de 2,5 mil agentes e blindados, deixou pelo menos 121 pessoas mortas, o maior número já registrado em uma única ação policial na história do estado. O saldo sangrento coloca o Rio sob luto e escancara o fracasso de uma política de segurança que insiste em tratar favelas como campos de guerra.

Falta de investimentos públicos, ausências de dignidades (sim, no plural) e o abandono histórico do poder público em territórios vulnerabilizados transbordaram em forma de massacre. O que se vê é um Estado que usa constantemente a violência para palco político em cima de corpos pretos, somando-se à violência cotidiana de ignorar o sofrimento das pessoas faveladas e periféricas. Escolas fechadas, atendimentos de saúde reduzidos, pontos de ônibus e estações de metrô, barcas e BRTs lotados de gente cansada, que só quer voltar para casa, pagar as contas e colocar comida na mesa.

A violência que o Estado diz combater é, na verdade, o retrato de seu próprio abandono. Enquanto trabalhadores caminham quilômetros pelas ruas sem transporte e sem qualquer apoio, dentro das casas cresce o medo e o estigma: o reforço da criminalização de quem vive nas favelas. A banalização da vida se tornou rotina, e a morte, espetáculo. Nas redes sociais não faltaram posts chamando a ação de um “massacre no Alemão e na Penha”. 

Manchetes atualizadas ao longo destes dias anunciavam “mais X mortos na operação”, como se os números pudessem substituir histórias. Mais de 100 “bandidos” mortos, dizem. Mas, em tão pouco tempo, houve investigação? Apuração? Quem eram essas pessoas? Eram todos criminosos? E caso criminosos, o país liberou a pena de morte? Nenhuma vida é descartável. O Estado não pode ser juiz e carrasco.

Pior: o próprio Estado se ausenta até na morte. Não houve perícia adequada, nem esforço para retirar os corpos, identificar e esclarecer as causas. Coube aos próprios moradores, ainda sob o choque da violência, reunir forças para procurar os corpos e reconhecer os rostos dos seus. É cruel que, além da dor da perda, essas famílias sejam obrigadas a ocupar o lugar que deveria ser do poder público, o de garantir dignidade e justiça.

Quem assistiu aos telejornais viu a barbárie sendo exibida sem filtros: corpos ensanguentados na tela, sem tarjas, sem aviso, apenas pelo desejo de audiência. A morte transmitida ao vivo no horário do almoço. O corpo preto sendo vendido outra vez. A morte travestida de notícia. Um jornalismo que abdica da ética em nome do espetáculo, e que naturaliza a violência contra quem sempre foi alvo dela.

O massacre desta terça expõe um padrão que se repete. Sob o governo de Cláudio Castro (PL), quatro das cinco operações mais letais da história do Rio de Janeiro foram realizadas — no Jacarezinho (2021), Vila Cruzeiro (2022), Complexo da Maré (2024) e agora no Alemão e Penha (2025).

A política de confronto não reduz o poder das facções, mas aprofunda o medo e a insegurança. Em vez de planejamento e inteligência, o que se vê é a lógica da vingança, travestida de política pública. Mas é mais fácil fazer um alarde e matar centenas de pessoas para se promover no ano que vem. Afinal, a sociedade racista gosta de ver sangue preto escorrendo no chão.

A favela é explorada quando convém: nas propagandas, nas marcas de roupa, nas “novas” estéticas. Mas é esquecida quando a mãe chora a morte de um filho, quando uma criança brinca com cápsulas de fuzil, quando famílias seguem sem acesso à saúde, à luz e à comida. Sabe o que é curioso? Essas operações nunca respingam na Zona Sul, em Copacabana, no Leblon, ou na Gávea. Se você tem dinheiro e status, o sangue não chega à sua porta. Tiros? Não existem. Operação? Pode-se apreender 117 fuzis em um condomínio na Barra da Tijuca sem nenhum tiro ou morte. Afinal, aquele bairro é blindado pelos seus paletós, suas grifes e sua carteira. 

Organizações de direitos humanos denunciam que operações desse tipo violam a ADPF das Favelas (nº 635), que determina limites às ações policiais e exige a preservação de vidas. O Brasil e o Estado do Rio já foram condenados pela Corte Interamericana de Direitos Humanos por chacinas cometidas por forças de segurança e, ainda assim, o roteiro se repete. 

Enquanto isso, a população segue tentando sobreviver ao caos cotidiano, ao medo, à ausência de políticas públicas e ao descaso. Queremos um Estado que funcione, não um Estado truculento que tenta encobrir suas próprias falhas com mais violência e sofrimento. O Rio de Janeiro não precisa de balas, precisa de cuidado.

Cada operação que mata evidencia décadas de abandono e o silêncio cúmplice de um Estado que ignora a vida preta e periférica. É urgente que as políticas públicas se tornem a verdadeira arma de proteção. Que escolas, transporte e saúde não sejam privilégios. Que a dignidade deixe de ser um luxo e passe a ser regra.

O Rio precisa de justiça, de políticas públicas e, sobretudo, de respeito à vida.

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