O que você faz diante de episódios do racismo? Eu escrevo como prática de liberdade

Em minhas recentes experiências em movimentos sociais e trajetória acadêmica tenho sido estimulada pela efervescência das discussões relacionadas á descolonização do saber e conhecimento, disputas de narrativas, escrita como prática de liberdade, imobilizações determinadas pelo racismo.

Por Gilmara Silva de Oliveira* / Imagem: rawpixel/Pixabay 

Em minhas recentes experiências em movimentos sociais e trajetória acadêmica tenho sido estimulada pela efervescência das discussões relacionadas á descolonização do saber e conhecimento, disputas de narrativas, escrita como prática de liberdade, imobilizações determinadas pelo racismo. É sobre isso que venho falar.

Comecei a despertar e compreender analiticamente episódios do racismo recentemente, há pouco mais de uma década quando passei a vivenciar o Movimento Negro Brasileiro a partir do Quilombo Educacional Curso Popular de Pré-vestibular Quilombo do Orobu. Neste espaço venho construindo minha formação política que tem me permitido potencializar  a não naturalização e banalização de práticas e concepções que camuflam de humor a inferiorização e subalternização de pessoas negras; a perceber as sutilezas do racismo na distorção do “não foi bem assim, você entendeu errado”; na percepção da preservação de métodos colonialistas nos trabalhos em comunidades periféricas quando não contribuem para transformar as condições de vida das mesmas, ao contrário, se utilizam da sua vulnerabilidade emocional, social e econômica para se destacar, dentre outros exemplos.

Priorizar referências que contribuam para o aprofundamento dessa formação, em uma perspectiva antirracista, tem sido cada vez mais demandado no Brasil, considerando o acirramento das desigualdades sociorraciais[1]. Para tanto, nessa nossa conversa chamei Bell Hooks (1995), Sueli Carneiro (2006) e Grada Kilomba (2019) para amenizar angústias não solitárias, sobre episódios do racismo (trazendo aqui os termos utilizados pela última autora) nos diversos espaços de sociabilidade, e buscar estratégias de como potenciá-los pela libertação individual e coletiva da mente e de sofrimentos psicossociais.

É intrigante a sutileza e sofisticação deste sistema opressor ao longo da formação da sociedade brasileira e como as pessoas, nas suas relações interpessoais e institucionais, se utilizam desta ferramenta para desautorizar, interditar e imobilizar pessoas negras, principalmente as mulheres na sua diversidade de gêneros (CIS, Trans, Travesti, lésbicas e outras possibilidades que não se restringe à genitália).

Quando me refiro à sutileza e sofisticação do racismo é por perceber como algumas pessoas não reconhecem seus lugares sociais de privilégios favorecido pela branquitude[2] e, portanto, produzem e reproduzem racismo quando, por exemplo, se utilizam do padrão erudito da linguagem, armadas com o escudo de “cientistas, especialistas” para licenciar arrogância intelectual hegemônica. Em paralelo, demonstram indisponibilidade para discutir narrativas decoloniais[3] e/ou se esforçam para contra argumentar tais narrativas, tendo como horizonte a desautorização das mesmas, minimizando-as á sujeitos/as de experiências, portanto, distante de alcançar caráter teórico.

Trata-se de um escarro de referências hegemônicas que favorece o adoecimento mental e provoca seletivamente a tentativa de expulsão camuflada de evasão dos espaços de sociabilidade como as instituições educacionais, desde o ensino básico ao superior. Paralelo a essas consequências, há o estímulo ao entendimento de fragilidade ou insuficiência intelectual, ao menosprezar intervenções orais e escritas de corpos e mentes dissidentes. As autoras supracitadas nos ajudarão a compreender melhor estas questões.

Quando conversei com Grada Kilomba (2019) ela me lembrou que a língua, por mais poética que possa ser – embora não seja este o caso aqui exemplificado -, tem também uma dimensão política de criar, fixar e perpetuar relações de poder e de violência, pois cada palavra que usamos define o lugar de uma identidade. A psicanalista argumenta que através das terminologias, a língua informa-nos constantemente de quem é normal e de quem é que pode representar a verdadeira condição humana.

Mais adiante a artista dá uma injeção de ânimo com a sua concepção, que também é a minha, de que escrever, considerando este contexto, se configura como ato político. Ela se refere ao ato de tornar-se a narradora e escritora da sua própria realidade. A autora e autoridade da sua própria história. Nesta perspectiva, ela se torna a oposição absoluta do que o próprio projeto colonial predeterminou. E aqui já começamos a falar de estratégias que não nos permitam validar as tentativas de paralisação intelectual e outros movimentos possíveis de transformAção através da escrita, determinadas pelo racismo.

Grada se refere à passagem de objeto a sujeito defendida por Bell Hooks, que apresenta a escrita como ato político e de descolonização, no qual quem escreve se opõe a posições coloniais tornando-se escritor(a) validado(a) e legitimado(a), ou seja, reinventa a si mesma.

Este pensamento aponta para o entendimento de que os episódios de racismo, comuns nas vidas de pessoas negras principalmente no espaço universitário, devem servir para  ressignificar e  validar narrativas que viabilizem não apenas a análise crítica dos fatos, como também ser capaz de potencializar as experiências marginalizadas, na perspectiva de multiplicar a descolonização do saber. E é um movimento que não pode ser endógeno, só entre pares, precisa transcender o ego e ter utilidade coletiva.

O ponto acima é uma recomendação importante que Grada Kilomba descortinou a partir de Bell Hooks e reforça a importância da construção de disputa de narrativas dentro e fora dos espaços educacionais que causam constrangimentos e feridas impostas pelo racismo. Em outra produção de conhecimento, a teórica feminista já nos alertava sobre as articulações de um projeto de morte simbólica, via epistemicídio. Nas palavras de Hooks: “Os trabalhos de mulheres de cor e de grupos marginalizados de mulheres brancas (lésbicas e radicais sexuais, por exemplo), especialmente quando escritos num estilo que os torna acessíveis a um público leitor amplo, são frequentemente deslegitimados nos círculos acadêmicos, mesmo que esses trabalhos possibilitem e promovam a prática feminista”.

A propósito do epistemicídio e sua relação com a desautorização, negação, anulação e desqualificação intelectual de pessoas negras, Sueli Carneiro (2006) também bateu um papo massa com Bell Hooks para tecer o que chamo de Palavras-Navalha em sua Tese de Doutorado em Educação intitulada “A construção do outro como não-ser como fundamento do ser”, e encontrou nela a solidariedade política que também tenho encontrado, a partir da literatura negra. Nesta construção filosófica e sem neutralidade (ainda bem por isso!), a escritora antirracista analisa as perversidades deste instrumento de morte simbólica ao mostrar como se manifesta. Leia as palavras dela: “Na sua versão mais contemporânea nas universidades brasileiras, o epistemicídio […] se manifesta também no dualismo do discurso militante versus discurso acadêmico, através do qual o pensamento do ativismo negro é desqualificado como fonte de autoridade do saber sobre o negro, enquanto é legitimado o discurso do branco sobre o negro”.

E não para por aí a arrogância intelectual hegemônica. A autora diz que o epistemicídio representa um processo persistente de produção da indigência cultural pela negação ao acesso à educação, por produzir inferiorização intelectual, pela negação da possibilidade de realizar as capacidades intelectuais, visto que, nas suas vinculações com as racialidades realiza sobre seres humanos instituídos como diferentes e inferiores uma tecnologia que integra o dispositivo de racialidade/biopoder. O que isso significa? Ainda considerando a reflexão da autora, quer dizer que tem a funcionalidade de disciplinar, normalizar, matar ou anular pessoas e grupos, ou seja, é um elo que controla também as mentes e corações.

Aí quando o negócio arrepia assim, você começa a entender aquilo que a rapper Drik Barbosa (@drikbarbosa) diz: “manter a sanidade mental é desafio de gente grande”. Então, minha gente, segue o (Art)vismo do Coletivo Zeferinas (@coletivozeferinas) e se ORI-ente com as estratégias traçadas por Sueli Carneiro e suas trocas com Bell Hooks. Estas últimas, por exemplo, combinaram que o trabalho intelectual desempenha a função de romper com os vaticínios que excluem os negros da atividade intelectual. Trata-se de uma parte necessária da luta pela libertação, fundamental para os esforços de todas as pessoas oprimidas e/ou exploradas.

Hooks, lembrando Cornell West ainda diz que para as mulheres negras é importante que esse trabalho intelectual resista ao isolamento, a partir de estratégias de combate que articula a produção individual de conhecimento com as lutas comunitárias. Percebe como tais pensamentos viabilizam tecer o que chamo de Palavras-Navalhas também conhecidas como narrativas insurgentes? É preciso falar para um público diverso, para a massa de pessoas de diferentes classes, raças ou formação educacional. Assim, nos tornamos parte da comunidade de resistências.

É necessário construir linhas de fuga do dispositivo e dos mecanismos que desqualificam “sujeitos de experiências e de saber” (Sueli Carneiro lembrando Foucault, 2002). Para isso, desenvolver estratégias de obter uma avaliação crítica de nosso mérito e valor que não nos obrigue – exclusivamente – a buscar avaliação e endosso críticos das próprias estruturas, instituições e indivíduos que não acreditam em nossa capacidade de aprender – e peço licença para acrescentar ensinar.

É importante destacar que o trabalho intelectual não é validado unicamente nas instituições educacionais como a universidade. Ao contrário, a validação do que produzimos afloram da margem para o centro, nos diversos espaços alternativos de trocas de saberes e vivências que priorizam narrativa decolonial, nos seus variados gêneros e expressões. Seguem mais recomendações simbólicas, políticas, afetivas: @revistaafirmativa; @lendomulheresnegras; @noticiapreta; @blogueirasnegras; @antra.oficial; @aurora_casalgbt; @bibliotecadeitalo; @rbcsalvador; @movimentoculturaldeaguasclara;  @jacanoinsta; @portalgeledes; @oyamatamba; @escolinhamariafelipa; @ubuntu.eba; @revistaraca; @revista_quilombo; @afrobaphooficial. Só para citar alguns exemplos.

Penso que esta breve conversa inconclusa colabora para a urgência de equilibrar as equações que determinam a imobilização para escrever como prática de liberdade. E tal escrita não necessariamente precisa se enquadrar nos moldes acadêmicos, até porque já vimos o quanto este espaço exerceu e ainda exerce a função de colonizar pensamentos e práticas para inferiorizar, controlar, anular grupos seletivos. Então que seja pela música, poesia, via expressão corporal, dentre outras possibilidades capazes de validar e naturalizar presenças de corpos e mentes dissidentes favoráveis às coalizões não convencionais.

Talvez você que nos ler faça uma avaliação de que há muito otimismo por aqui, considerando que a estrutura racista impõe o fatalismo das impossibilidades e estimula descontinuidades da luta antirracista, antiLGBTfóbica e tantas outras Frentes favoráveis ao projeto de sociedade equânime, justo e igualitário em termos de condições. Mas fico pensando, o que seria da vida (daí te convido a também fazer essa auto avaliação), se não fosse o entusiasmo e esperança de que a competência e abertura teórico-política-prática sobre os fundamentos da questão étnico-racial no contexto da formação da sociedade brasileira se aflorará para além dos nossos muros? É também para e por isso que escrevo.

 

*Natural de Ubaitaba-BA. Residente em Salvador, sou mãe negra de uma  poesia, regada de amor em uma família Afrocentrada. Conselheira do Curso Popular de Pré-vestibular Quilombo do Orobu, Assistente Social Antirracista, AntiLGBTQfóbica, Mediadora de leitura. Pesquisadora Negra CISgênera de temas relacionados à interseccionalidade racial, de gêneros e sexualidade, movimentos sociais protagonizados por Travestis Negras, narrativas decoloniais, racismo, transfobia, direitos, através do Mestrado em Serviço Social pelo Programa de Pós-Graduação em Serviço Social/UFBA, cuja pesquisa é financiada pela FAPESB. 

 

Referências

CARNEIRO, Aparecida Sueli. A construção do Outro como Não-Ser como fundamento do Ser. Feusp, 2005. Disponível em <https://negrasoulblog.files.wordpress.com/2016/04/a-construc3a7c3a3o-do-outro-como-nc3a3o-ser-como-fundamento-do-ser-sueli-carneiro-tese1.pdf>. Acesso em 10-07-2020.

KILOMBA, Grada. Memórias dá Plantação. Episódios de racismo cotidiano. Cobogó, 2019. Disponível em <file:///C:/Users/gil_o/Downloads/MEMORIAS_DA_PLANTACAO_-_EPISODIOS_DE_RAC.pdf>. Acesso em 10-07-2020.

HOOKS, Bell. Intelectuais Negras. Estudos Feministas, 1995.Disponível em <https://www.geledes.org.br/wp-content/uploads/2014/10/16465-50747-1-PB.pdf>. Acesso em 13-07-2020.

 

[1] Veja com o Dr.º Filósofo Silvio Almeida no Programa Roda Viva (2020). Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=L15AkiNm0Iw>. Acesso em 13-07-2020

[2] Saiba mais com Maria Aparecida Silva Bento (2002); Frantz Fanon (1983).

[3] Saiba mais com Anibal Quijano aqui <http://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/sur-sur/20100624103322/12_Quijano.pdf>.

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