OAB do Rio de Janeiro vai levar a absolvição dos policiais no caso João Pedro ao STF

Familiares de vítimas da violência do Estado e movimentos sociais protestaram em frente ao TJRJ contra a absolvição.

Por Andressa Franco

A Ordem dos Advogados do Brasil do Rio de Janeiro (OABRJ) informou em nota divulgada nesta quinta-feira (11) que pretende levar a decisão de absolvição sumária dos três policiais civis envolvidos na morte do menino João Pedro Mattos Pinto, de apenas 14 anos, para o Supremo Tribunal Federal (STF). A decisão da juíza Juliana Bessa Ferraz Krykhtine, da 4ª Vara Criminal de São Gonçalo, emitida na última terça-feira (9), entendeu que os agentes agiram em legítima defesa.

João Pedro morreu após ser baleado nas costas por um tiro de fuzil durante uma operação das Polícias Civil e Federal, no dia 18 de maio de 2020, no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, Região Metropolitana do Rio. Ele estava brincando com amigos na casa do tio quando foi atingido. Testemunhas contam que os agentes entraram atirando na residência e acabaram acertando o jovem, que foi socorrido, mas não resistiu. A família passou 17 horas sem notícias do corpo de João, que foi levado de helicóptero por policiais.

A OABRJ afirmou ter recebido a notícia da absolvição dos policiais com preocupação, e que pedirá reavaliação da sentença pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. “É muito preocupante que um crime como esse termine impune como ocorre na maioria dos casos de letalidade policial no Brasil.”

A nota da entidade lembrou ainda que no estado do Rio de Janeiro, mais de 1/3 das mortes violentas decorrem de intervenção policial e mais de 72% das mortes por armas de fogo são de pessoas negras. A OABRJ irá informar a decisão ao ministro do STF Edson Fachin, relator da ADPF 635 (ADPF das Favelas), que defende que o Estado do Rio de Janeiro deve reduzir em no mínimo 70% os índices de letalidade policial.

Versões divergentes 

Os policiais civis Mauro José Gonçalves, Maxwell Gomes Pereira e Fernando de Brito Meister eram réus por homicídio duplamente qualificado, por motivo torpe e fútil. O trio, que respondia em liberdade, também foi denunciado por fraude processual. Na investigação, eles relataram que estavam perseguindo traficantes quando entraram na casa onde João Pedro brincava, e que houve confronto no local, seguido do lançamento de um artefato explosivo contra eles, dando sequência a uma nova troca de tiros. 

Tiros na parede da casa onde morava João Pedro — Imagem: Arquivo pessoal

No entanto, de acordo com a denúncia do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ), depois da morte do adolescente, que estava desarmado, os agentes teriam plantado explosivos e uma pistola 9 mm, além de produzir marcas de armas de fogo no portão da garagem, na tentativa de criar um cenário de suposto confronto com criminosos. 

“A agressão sofrida pelos réus era atual, face aos disparos efetuados em sua direção, bem como o lançamento dos explosivos, além do que os mesmos se utilizaram dos meios necessários que possuíam para repeli-la. A prova produzida nos autos não deixa dúvidas que a conduta dos réus se deu em legítima defesa e como tal deve ser reconhecida”, decidiu a juíza.

Neilton da Costa Pinto, pai da vítima, já esperava a decisão. Segundo ele contou ao portal G1, o tratamento da juíza com a família durante as audiências já indicava falta de respeito.

Segundo Defensoria, a juíza contrariou orientações da Corte Interamericana de Direitos Humanos 

A Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, responsável pela defesa da família de João Pedro, informou que vai recorrer da decisão. Em nota, o Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos da Defensoria argumentou que, ao adotar a tese de legítima defesa, a sentença não observou “a robusta prova técnica e testemunhal produzida no processo”, subtraindo a competência constitucional do Júri Popular para o julgamento da causa, que deve acontecer nos casos de crimes dolosos contra a vida.

O órgão também alega que a juíza não considerou a perícia autônoma e contrariou orientações da Corte Interamericana de Direitos Humanos e do STF. “Ao afastar a prova técnica produzida por peritos externos ao próprio órgão de segurança ao qual pertencem os acusados, a sentença contraria a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos e do Supremo Tribunal Federal, que determinam investigações independentes e perícias autônomas em casos de morte provocada por agentes de Estado.”

Vale lembrar que foram contabilizados 72 disparos dentro e fora da casa do adolescente, e que, conforme as investigações, o tiro de fuzil que atingiu uma pilastra de concreto e um fragmento acabou atingindo as costas de João Pedro, que estava deitado no chão da casa junto com dois amigos, partiu da arma de um policial. Além disso, nenhuma testemunha confirmou o ataque a tiros de criminosos alegado pelos policiais, assim como o laudo de reprodução simulada do crime contratado pelo MPRJ.  

Na época, o pai de João denunciou que a Polícia Civil forjou uma versão sobre o caso. Em entrevista à TV Globo, ele explicou que a casa não foi invadida por criminosos. “A polícia quer forjar uma situação. Não tinha bandido. Entraram na casa e atiraram duas granadas. Além dos tiros. Só tinha adolescentes de família”, criticou Neilton. 

Neilton da Costa Pinto, pai de João Pedro – Imagem: Tomaz Silva/Agência Brasil

Genocídio da juventude negra

A história contada pelo pai de João, não por acaso, é parecida com a contada pelo pai do menino Joel Conceição Castro. A criança, de apenas 10 anos, também estava em casa, no Nordeste de Amaralina, bairro periférico de Salvador (BA), se preparando para dormir, quando foi atingido e morto com um tiro no rosto. E os policiais acusados do assassinato também relataram que estavam em perseguição de indivíduos armados. O crime aconteceu durante uma ação da 40ª Companhia Independente da Polícia Militar (CPMI). 

“A gente acredita que essa é uma linha de argumentação falida, porque se você chega atirando para todos os lados num lugar onde moram várias pessoas, você assume o risco efetivo de atingir alguém”, avaliou a assistência de acusação do caso Joel na época do julgamento, também este ano. Explicação que também se aplica ao caso de João.

Mas não é só com a história de Joel que a de João Pedro se parece. Desde julho de 2016, 660 pessoas entre 0 e 17 anos foram baleadas no Grande Rio, das quais 295 morreram. O mapa “Futuro Exterminado”, do Instituto Fogo Cruzado, revela que um em cada três dos jovens atingidos foi vítima das chamadas “bala perdida”*. Eram crianças ou adolescentes que estavam a caminho da escola ou da padaria, brincando no quintal ou correndo com amigos. O levantamento também revela que quase metade (47,6%) foram atingidos durante operações policiais.

O ministro dos Direitos Humanos e Cidadania, Silvio Almeida se pronunciou sobre a decisão, durante evento nesta quinta-feira (11) na sede do ministério em Brasília. “É uma coisa escabrosa. Agora, falo como jurista. É um desprezo tão grande à vida humana, de crianças e adolescentes, de um jovem negro, de periferia, que coisas que são muito raras no direito acontecem, mostrando esse desrespeito. Houve uma absolvição sumária. Isso é raríssimo, não é algo comum”, disse o ministro.

A Anistia Internacional também se manifestou em repúdio à decisão, em nota emitida na quarta-feira (10). A organização disse ver com perplexidade a sentença, e afirmou que não existe legítima defesa quando uma criança desarmada é morta dentro de casa por uma ação da polícia. “[A absolvição] envia a mensagem de que as favelas são territórios de exceção onde qualquer morte provocada pela ação da polícia permanecerá impune.”

Protestos no TJRJ

Também nesta quinta-feira (11), familiares de vítimas da violência do Estado e movimentos sociais foram às ruas para protestar, em frente ao TJRJ, contra a absolvição.

“Essa sentença não tem responsabilidade nenhuma com a família ou com a sociedade. A verdade é que os policiais entraram em uma casa efetuando disparos de arma de fogo, onde só havia jovens brincando. Como um agente público entra em uma casa efetuando mais de 70 disparos sem intenção de matar? Tentam nos fazer de burros, mas não somos”, declarou o pai do adolescente à Agência Brasil. A família esperava que o caso fosse levado a júri popular. 

“A gente vê uma questão de racismo e preconceito por parte do estado e dos agentes públicos. Será que a Justiça daria essa decisão se nossa casa fosse em outro bairro? É proibido ter uma casa boa, com piscina dentro de uma comunidade? Eles acharam que era casa de bandido”, questionou Neilton em outra entrevista, ao portal G1.

*É política editorial da Revista Afirmativa a não utilização do termo “bala perdida”. O termo é utilizado no texto de acordo com a maneira que aparece no estudo citado.

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