Pandemia, reclusão social, e o adeus revoltado e silencioso do Nordeste de Amaralina a Marcos Vinicius

Dezenas de moradores afirmam que o jovem de 21 anos foi morto por policiais quando saía para jogar o lixo fora. Na versão dos PMs, o jovem estaria armado

Por Beatriz Sousa*

Primeiro, assombrados, ouvimos falar sobre algo invisível e intocável que havia causado um verdadeiro caos na China, e aí, bem depois de festejar a maior festa de rua do mundo, o carnaval, o covid-19 começa a se tornar algo real para o Brasil. Ficar em casa, uma missão aparentemente simples! Mas existem outras questões, que transformam a “missão simples” em mais complicada. Como de costume, a periferia não vivência nenhum problema político e social da mesma forma que a burguesia.

O Nordeste de Amaralina é um complexo de bairros de Salvador (Ba) que fica localizado entre a Pituba, o Rio Vermelho e a Amaralina – bairros da classe média soteropolitana.

No começo do mês de abril a Pituba contava com vinte casos confirmados de covid-19. Atualmente esse número passa dos 40, seguido do Rio Vermelho com mais de 10 casos e no meio disso, nós, a comunidade Nordeste de Amaralina.

Nada pode ser pensado, dito ou decretado sem que antes se faça um recorte social, de classe e de raça, por isso, tento imaginar se da OMS até a prefeitura de Salvador, alguém pensou a fundo em como manter as pessoas em segurança nos bairros periféricos, onde as empregadas domésticas, seguranças e faxineiros ainda acordam cedo para ir trabalhar. Onde a vida não pode parar, assim, do nada, por uma “gripezinha” como ironizou o presidente, de forma negligente e irresponsável. Aqui onde o home office não funciona, quem não trabalha não recebe e quem não recebe não come, não paga as contas nem vive. O Governo promete auxílio, mas enquanto o caso está em análise a geladeira vai ficando vazia. Outra questão é a crença de que uma rápida reunião com os amigos não fará mal, ir rapidinho no bar não mata ninguém, e dessa maneira, uma boa parte dos jovens e adultos que se consideram “saudáveis” se enxergam como inalcançáveis e intocáveis, tornando-se receptores e transmissores do vírus, mesmo após a morte por Covid-19 de Antônio César Ferreira (48 anos), conhecido no bairro como Cesinha, a quarentena não é levada a sério por boa parte dos moradores, as pessoas não entendem a responsabilidade que carregam em suas mãos e o perigo que isso significa.

Por outro lado, é muito mais fácil ficar em casa quando se tem total acesso a lazer, quando seu vizinho é cantor e faz show na varanda, quando sua casa tem piscina, um quintal enorme, seu quarto tem TV, você tem um computador só seu, ninguém leva em consideração que alguns lares são insalubres e adoecedores psicologicamente falando, que nem todas as famílias se reúnem para ver filme e almoçar juntas.

Em bairros periféricos onde a construção de uma família é repentina e sem planejamento, o desconforto em ficar em casa pode ser além da sensação de tédio, de não ter o que fazer. A violência policial também não para. Na última sexta feira (24), enquanto escrevia esse texto, um helicóptero da polícia sobrevoava o bairro, algumas horas depois ficamos sabendo da notícia do homicídio do jovem Marcos Vinicius Cidreira (21 anos). Seu corpo foi carregado numa viatura até o Hospital Geral do Estado de forma desumana, como o vídeo amador feito por um morador mostra, ali naquela viatura iam embora os sonhos de um jovem, seus estudos, seus esforços, ali ia um pai, um filho. Sua morte entra para as estatísticas e nem sequer poderemos cobrar justiça nas ruas, ele nem tampouco terá um enterro decente, mesmo enfrentando uma pandemia ainda somos o alvo principal da mão armada e racista do Estado.

Marcos Vinicius foi assassinado porque sua vida não significava nada para a polícia, para nós no entanto, é a perda de um amigo, um companheiro, um menino calmo, engraçado e que tinha sonhos. Para mim é o Estado nos lembrando de quem somos e do nosso lugar na sociedade constituída para que continuemos na margem, um lembrete de que não teremos paz, que estamos ameaçados pelo covid-19, pelas chuvas que alagam ou desabam as casas, e pela violência policial – a qual nenhuma máscara pode nos proteger.

Fonte: instagram @nordesteusou

O que observei, aqui da minha casa, é que a comunidade tem se reinventado para se manter firme, nesse sentido, como sempre, estamos por nossa própria conta. As articulações políticas e sociais do bairro vão atrás de financiamento, seja para conseguir equipamentos de higienização para ruas, carros e comércios, seja para distribuição de cestas básicas ou para qualquer outra necessidade que possa surgir. Isso é feito também de casa em casa, com a solidariedade de porta em porta, de vizinha em vizinha, com a confecção de máscaras caseiras, sua venda por preços baixos ou até mesmo doação, talvez seja essa a forma que o Nordeste de Amaralina encontrou para se manter em meio a mais uma crise, cujas soluções não são pensadas para todos, são pensadas para alguns.

Não estamos e nunca estivemos no mesmo barco, como as celebridades gostam de pontuar, porque quando o Sistema Único de Saúde (SUS) começar a ruir e as coisas começarem a faltar, a prioridade será a classe média, o empresário, os mais afortunados. E nós, como sempre, ficaremos entregues a nossa própria sorte. Não é novidade, a fiscalização não chega aqui, por isso é essencial que a comunidade entenda a importância de medidas higiênicas e de isolamento social desde cedo, para que não se torne mais alarmante. Como sempre e para sempre, o Nordeste de Amaralina resiste!

__________

 

 

* Uma jovem negra de 18 anos, nascida e criada no Nordeste de Amaralina, atualmente cursando bacharelado interdisciplinar de artes na UFBA, ativista social desde 2016.

Compartilhar

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *