Por Matheus Souza
O Instituto Data Favela disponibilizou no dia 17 de novembro a pesquisa Raio-X da Vida Real, onde se dedicou a traçar um perfil das pessoas moradoras de favela que estão envolvidas com o tráfico de drogas. A instituição é a primeira do Brasil especializada em realizar pesquisas nas favelas e periferias do país.
Promovido pela Central Única das Favelas (CUFA), pela Favela Holding e pelo Instituto DataGoal, o levantamento ouviu 3.954 pessoas que exercem atividades ligadas ao tráfico de drogas entre os dias 15 de agosto e 20 de setembro, nas cinco regiões do país. A pesquisa analisa os motivos que levaram essas pessoas a participar da atividade criminal, suas ambições financeiras, sonhos de consumo, hobbies e até quais seus gostos musicais.
A divulgação e repercussão da pesquisa provocou debates nas redes sociais acerca do impacto dela na perpetuação de estereótipos sobre a população negra dessas localidades. As imagens chocantes dos corpos de 117 suspeitos mortos durante a operação policial efetuada no Rio de Janeiro – e toda a discussão que se sucedeu – ainda estão bem frescas na memória da população. Na época, internautas lembraram que a criminalidade instalada nas favelas é apenas uma parte do verdadeiro crime organizado, que se esconde nas zonas nobres e condomínios de luxo.
A pesquisa se propõe a mostrar um panorama do tráfico de drogas, apresentando um organograma de qual seria sua formatação: do “olheiro” – jovens recrutados para ficarem de olho na chegada da polícia às localidades – até o “Chefe da Boca”, que segundo a pesquisa, seria o maior cargo dentro dessas organizações. Porém, essa leitura restringe o tráfico aos limites das favelas e deixa de fora os bairros requintados e ambientes luxuosos, como a Avenida Faria Lima, famigerado centro financeiro de São Paulo, onde o tráfico de drogas e seus perpetradores não seguem a cartilha visual comumente mostrada pela mídia empresarial.
Pessoas de diferentes grupos étnicos, e classes sociais, enveredam pela vida do crime e participam do tráfico de drogas pelos mais diferentes motivos. Ao se intitular como “Raio-X da Vida Real”, mesmo que indiretamente, o estudo liga a atividade criminosa do tráfico estritamente à essa zona urbana, e às pessoas que lá vivem, já que a pesquisa foi realizada somente em localidades marginalizadas.
Traçar um “perfil do tráfico” no Brasil e associá-lo diretamente à imagem já calejada da favela após a operação policial mais letal do país é, na melhor das hipóteses, irresponsável. A pesquisa infelizmente surge, neste momento, para reforçar esteriótipos, associando o tráfico ao jovem negro, pobre, periférico e precoce, que já carrega consigo o estigma de sempre ser visto como possível deliquente.
O levantamento presume uma abordagem generalista, onde o objetivo seria “compreender a dinâmica social por trás da estruturação de redes e circuitos criminosos a partir do ponto de vista das próprias pessoas em situação de crime em atividade”. Uma pesquisa não pode pressupor traçar um perfil do tráfico no Brasil e deixar de fora indivíduos que não moram nas favelas.
O jornalista e escritor Bruno Abbud, em seu recém lançado livro-reportagem “Nobres Traficantes”, percorre boates, pistas de pouso, escritórios de advocacia e mansões para mostrar o funcionamento do chamado tráfico de elite no país, cujas atividades incluem desde o delivery de maconha orgânica para bairros nobres ao transporte aéreo de cocaína.
Um dos exemplos trazidos em seu livro é o caso de Carlos Alberto Sgobbi, associado do Primeiro Comando da Capital (PCC). Filho de um empresário do ramo dos transportes de Ribeirão Preto (SP), Sgobbi entrou para o tráfico de cocaína no fim dos anos 1990, após a falência financeira do pai. Logo depois, comprou aviões para trazer a droga para o Brasil e, em 2007, com a prisão de outro transportador, ganhou uma posição estratégica entre os fornecedores do PCC.
Misha Glenny, jornalista britânico, especializado no estudo do crime organizado global e segurança cibernética, é autor do livro O Dono do Morro: Um homem e a batalha pelo Rio. Nele, Misha conta a história de Nem da Rocinha, famoso traficante do Rio de Janeiro. Em entrevista ao El País, o autor declarou que “o perfil social dos envolvidos no tráfico do atacado (de drogas) no Brasil não tem nada a ver com a figura do bandido morador de favela que existe no imaginário da população”.
“Existem dois tipos básicos de traficantes no Brasil. O primeiro são os traficantes como o Nem, que atuam na ponta do varejo e distribuem a droga nas áreas urbanas ao longo da costa brasileira. […] Esse segundo perfil também existe no Brasil, só que os Chapos do Brasil não têm a mesma origem social que o (El Chapo Guzmán) mexicano, que nasceu em um bairro pobre. Quem faz esse serviço no Brasil costumam ser pessoas de classe média e alta que têm negócios legítimos operando, geralmente nas áreas de transporte e agricultura”, conta.
No ano passado, a operação Doce Amargo – Acorde Final, da Polícia Civil, desarticulou um grupo criminoso que atuava no tráfico de drogas e tinha ramificações nos estados do Amazonas, Rio de Janeiro e Rio Grande do Norte. Jovens de classe média alta estavam entre os principais traficantes de drogas sintéticas e comercializavam o entorpecente em baladas de Cuiabá (MT).
O delegado Gutemberg de Lucena Almeida, um dos responsáveis pelas investigações, explicou que traficantes de drogas sintéticas geralmente possuem maior poder aquisitivo, assim como os usuários desses entorpecentes. “Geralmente quem vende essas drogas são pessoas de uma classe mais abastada, de classe média alta. Os consumidores também, até mesmo porque a droga tem um valor agregado maior.”
Esses são só alguns exemplos de que o tráfico é muito mais descentralizado do que o noticiário tradicional faz parecer. A favela aparece nessa teia do crime muito mais como um ambiente de venda e circulação dos entorpecentes, já que as drogas e o armamento utilizado pelo crime que gerencia o negócio não são produzidas nela.
O objetivo da pesquisa é legítimo, interessante e pioneiro, porém o erro é pressupor um diagnóstico muito maior do que o apresentado. A favela não é o berço do tráfico, e as pessoas faveladas e periféricas que participam do mundo do crime não são as protagonistas, muito menos as principais beneficiadas, pela atividade criminosa relacionada à venda e compra de drogas ilícitas. Para traçar um verdadeiro “raio-x” da vida real dentro da dinâmica do tráfico de drogas no país, faltou ao levantamento pesquisar amostras e fazer entrevistas nos condomínios de alto padrão, boates privativas, construtoras, transportadoras e aviões da Força Aérea Brasileira (FAB)


