Quando conheci o amor – Sobre a visibilidade lésbica

Quando conheci o amor entendi que ele é sinônimo de casa, é o aconchego e a paz de fim de dia. Percebi que ele é o de cheiro de café de manhãzinha, o orvalho caindo da folha anunciando um novo dia. Foi apenas quando conheci o amor que pude entender meu passado e projetar meu futuro; o amor me deu direito à memória, entendi sua força transformadora dita

Anna Luísa Santos de Oliveira* /  Fotografia: Jamile Cazumbá

Quando conheci o amor entendi que ele é sinônimo de casa, é o aconchego e a paz de fim de dia. Percebi que ele é o de cheiro de café de manhãzinha, o orvalho caindo da folha anunciando um novo dia. Foi apenas quando conheci o amor que pude entender meu passado e projetar meu futuro; o amor me deu direito à memória, entendi sua força transformadora dita por bell Hooks (2010) quando percebi uma vontade de museu. Museu mesmo, de acervo, montagem e exposição.

Nesse museu, não quero falar sobre ausências, preciso falar de presença. Foi então que comecei a colecionar momentos, esse grande ajuntamento que cabe em minha memória, mas não cabe em mim, que intitulo ser lésbica negra, e trazendo esse nome já não é mais só meu. Uma coleção formada por uma teia de mulheres que buscam o amor e o encontram no mesmo lugar que eu. Uma memória coletiva que tem como ponto de partida uma vontade incessante de olhar para si mesma, e é ali no nosso mais profundo interior que encontramos tantas outras. Essas outras são nossas iguais, que em conjunto decidem receber e espalhar o amor. Um amor que se reconhece na ancestralidade e desfaz traumas. Mulheres que amam mulheres e provocam a grande revolução que é cuidar de si mesmas, e cuidando de si cuida de nós. Estou falando de afeto, de encontro, de amizade.

Cada momento que compõe esse acervo traduz o que é ser lésbica negra vivendo de ternura e salvaguardando uma memória de amar. É o mesmo que sentar no colo e desaguar um oceano pelos olhos se sentindo segura. É o sentimento comovente das canções de amor e dengo de Cidinha da Silva e as amoras de Annie Ganzala. A descoberta do amor é uma riacho de palavras doces sobre ser gorda e sapatão de Jéssica Ipólito, é espelho – daqueles de se ver – na sereia rasta encontrando a sereia black com caldas entrelaçadas de Nathallya Faria. A experiência de amar são as cartas para Anna remetidas por Jamile Cazumbá, é o beijo de despedida na porta do cinema e o banho de balde de Juh Almeida. Sentir o amor é acordar e saber que está tudo Odara com o sorriso de Alane Reis e Naiara Leite, é deixar o sol entrar no momento de cansaço e falta de dinheiro, debruçada sobre as canções de Daiane Gomes. Estar frente a frente com o amor é ver o raio fincando no mesmo lugar quantas vezes forem preciso na poesia de Mahe Silva e depois disso, abrir um envelope de cartas para escutar de Carol Rocha e saber da existência de mulheres que confiam a seus ouvidos uma narrativa de amar. Receber amor é o mesmo que se encontrar e se perder horas a fio na autobiografia lésbica negra de Yasmin Nogueira e fruir arte visual preta e ancestral de Bruna Bastos.

Ando colecionando esses momentos que não são só meus, e a cada novo encontro percebo mais uma vez que viver de amor é viver em conjunto. Essa grande teia que se forma a partir dessas conexões preta e sapatão, que se conecta a outras e mais outras e assim sucessivamente, formando uma grande rede onde a gente se reconhece e respira aliviada transbordando amenidades.

A vontade de museu é a necessidade de uma memória lésbica e negra com cores, sorrisos, mãos dadas e corações flutuando. É poder criar uma narrativa de entrelaçamento tal qual domingos de sol, para relembrar de agosto a agosto como é gostoso se amar e se sentir amada. É pensar a visibilidade lésbica a partir da premissa que temos direito a memória e a partilha. Esse museu que sai de minhas entranhas é um processo de investigação da memória contínuo e infinito. É aquisição, estabilização, documentação, conservação e comunicação [e tudo de novo] desse acervo-pessoal-compartilhado que me faz conhecer e viver do amor sendo vi-si-vel-men-te preta e sapatão.

Foram citadas nesse texto:

Alane Reis é jornalista na Revista Afirmativa @reis.alane

Annie Ganzala é artista visual @amoras_annieganzala

Bruna Bastos é artista visual @bastostattoo44

Carol Rocha é cineasta @carolroch4

Cidinha da Silva é escritora @cidinhadasilaescritora

Daiane Gomes é cantora @daianegomespreta

Iasmin Nogueira é artista visual @yfnogueira

Jamile Cazumbá é performer @k.zum.ba

Jéssica Ipólito é escritora do blog Gorda e Sapatão @jezzipolito

Juh Almeida é cineasta @juh_fotografia

Mahe Silva é escritora @encrenca.eira

Naiara Leite é Jornalista no Instituto Odara @naiara_leitee

Nathallya Faria é artista visual @nathallyafaria.artes

Hooks, bell. Vivendo de Amor. Portal Geledés, 2010. Disponível em: https://www.geledes.org.br/vivendo-de-amor/. Acesso em: 28/08/2020 20h45minh.

 

* Anna Luísa Santos de Oliveira é Lésbica Negra, Museóloga, Doutoranda em Estudos Étnicos e Africanos (PósAfro/UFBA). Educadora Popular, pesquisadora da área de museologia social, gênero, raça e sexualidade. Investiga a representação de mulheres negras e suas memórias interseccionadas ao patrimônio cultural e museus.

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