Por Monique Rodrigues do Prado* / Imagem: Reprodução
Uma das perguntas que tem sido feita a partir da eclosão dos protestos é: como é que chegamos até aqui? Seria o racismo delírio, miopia, ignorância ou projeto? Para responder essas perguntas, primeiro é preciso resgatar as narrativas que foram historicamente forjadas.
Silvio Almeida, um dos maiores intelectuais contemporâneos, colocou uma lupa nessa temática na sua obra intitulada “O que é racismo estrutural?” da coleção Feminismos Plurais coordenado por Djamila Ribeiro. Durante muito tempo o racismo ficou adstrito apenas à esfera do comportamento individual, mas o jurista e filósofo nos apresentou outras dimensões esmiuçando o viés institucional e estrutural.
O racismo faz parte da história moderna guardando relação com a formação do Estado. Segundo o jurista, o conceito de raça foi desenvolvido pelo modelo do Estado burguês para eleger o sujeito universal e organizar as relações políticas, econômicas e jurídicas a partir da categorização em classes dos indivíduos com o fim de preservar o grupo hegemônico.
O racismo ganha diferentes expressões ao longo da história, desde o caráter biológico, científico e sociocultural, razão pela qual trata-se de um fenômeno social complexo. De todo modo, no Brasil, esse processo sempre esteve relacionado com a aparência física, capacidade de consumo e de circulação social.
Nesse contexto, como o Estado é responsável por formar uma unidade, o nacionalismo tende a hierarquizar as multiplicidades cultural, étnica, religiosa e sexual, criminalizando, domesticando ou estigmatizando aquele que não interessa à identidade nacional.
Nessa perspectiva, o autor aproveita as lições de Foucault para conceituar o racismo como uma tecnologia de poder que opera por meio do controle havendo, por conseguinte, a discriminação sistêmica de grupos étnico-raciais subalternizados.
Oportuno esclarecer que não é possível confundir racismo, preconceito e discriminação. Se o primeiro é um fenômeno sistêmico, o segundo externaliza-se como um julgamento prévio, enquanto que a discriminação é um tratamento diferenciado. Nessa vereda, é plausível que certos indivíduos do grupo dominante digam ter sofrido preconceito ou discriminação. No entanto, como o racismo está entranhando nas estruturas de poder, este atinge somente grupos étnico-raciais subalternizados, razão pela qual não há qualquer possibilidade de sustentar o argumento de racismo reverso, já que não há opressão sistêmica em relação ao grupo dominante.
Com efeito, os negros tornam-se produto do racismo, de maneira que o fenótipo, a cor da pele e as praticas culturais são dispositivos materiais utilizados para gerar privilégios, vantagens políticas, econômicas e afetivas em favor do grupo hegemônico.
Assim, como a tese do jurista está calcada no racismo estrutural, ele explora as diferenças entre racismo individual, institucional e estrutural. No racismo individual é flagrante o viés patológico, comportamental e imoral revelado por aquele que o pratica.
No racismo institucional, o que se observa é a presença massiva de determinado grupo étnico-racial nas instituições, o qual irá trabalhar para fortalecer e manter esse grupo determinado no poder. Nessa forma de racismo vimos o legislativo, o judiciário, o executivo, as reitorias das universidades e grandes corporações aparelhadas com pessoas do grupo hegemônico.
Na dimensão estrutural, o pensador esclarece que as instituições somente são racistas, porque a sociedade também o é, ou seja, as estruturas que solidificam a ordem jurídica, política e econômica validam a autopreservação entre brancos, bem como a manutenção de privilégios, uma vez que criam condições para a prosperidade de apenas um grupo. Como resultado, as instituições externam violentamente o racismo de forma cotidiana.
Enquanto ideologia, o racismo constitui-se como representação do imaginário social sobre as identidades raciais, de maneira que o imperativo é manter o branco no lugar de líder nato e racional enquanto que o negro em condições subalternas. Denota-se, portanto, que o racismo formata as subjetividades nas relações sociais, visto que do ponto de vista da consciência e dos afetos, o racismo valida quem merece ser considerado sujeito.
Na cultura, o racismo é sofisticado, pois propaga o relativismo cultural e o multiculturalismo como forma de domesticação de corpos, determinando a superioridade, o valor e o significado da cultura dominante em detrimento de outros grupos dos quais a branquitude produz a exotificação e a inferiorização desses.
O autor alerta que o individuo que se apresenta como antirracista não pode argumentar que o racismo é estrutural como desculpa para não rever as suas ações, vez que a responsabilização é parte do processo. Assim, é fundamental perceber que há uma dialética entre as ações individuais e a estrutura.
No tocante a representatividade, o autor elucida que por si só ela não é suficiente para resolver o racismo, pois embora enxergar negros em espaços de poder seja importante, o recrutamento de alguns negros nesses espaços serve puramente para reforçar o racismo, visto que visibilidade negra não é poder. Assim, não é possível admitir uma maquiagem ao problema, uma vez que o racismo exige mudanças profundas e concretas para que não seja eterniza o cenário de desigualdade racial.
Assim, para o filósofo, há uma segregação não oficial entre negros e brancos, já que existe uma naturalização de negros em posições subalternizadas e, de outro lado, há uma supremacia branca politicamente constituída.
O estudioso perpassa por várias dimensões do racismo: histórica, política, ideológica, econômica e jurídica, e como não pretendemos esgotar o tema, é crucial a leitura de sua obra na integralidade, a qual sintetiza de forma incisiva, crítica, propositiva e primorosa que o racismo é o grande obstáculo de um projeto de nação.
*Advogada. Integrante da Comissão de Direitos Humanos da OAB – Subseção Osasco. Participa do Comite de Igualdade Racial do Grupo Mulheres do Brasil e da Educafro.