Resiliência e Rebeldia: Lições dos povos pretos em tempos de Pandemia

Por Yérsia Souza de Assis[1]/ Imagem: Pierre Verger

 

-Alô, tia? Benção? Como a senhora está? Agora é quarentena!

-Oi, Deus te faça feliz. Eu estou bem, sei que é quarentena. Vi na televisão.

-A senhora está com medo?

– Eu não. O povo brincou com Deus, agora tá vendo como é.

-Eu tô. Sei lá, meio doido.

-Não precisa ter medo. Fazer tudo certinho. Porque, alguma hora, isso vai passar.

-É, né? É que eu sou medrosa.

-Todo mundo é um pouco, mas não precisa ser muito. Vai passar, acredite. E olhe, eu que já vi tanta coisa, por isso sei que vai passar.

-É, vou acreditar. Tá bem então. Tchau, tia. Benção?

-Deus te abençoe, e não venha me visitar.

 

Logo quando começou a quarentena a minha mãe ligou para vários idosos da minha família, inclusive para Tia Carmem. Nessas ligações eu e ela falávamos no viva-voz, e a transcrição que abre esse texto é de uma destas conversas. Esta nossa tia, no meu caso tia – avó, no alto dos seus 95 anos me passou uma sensação de serenidade e constância difíceis de acreditar. Não conseguia me convencer que uma senhorinha de 95 pudesse estar tão “de boas” nesse contexto caótico. Pensei vários dias na serenidade dela, que, para mim, era quase injustificada. Como é que pode uma velhinha – leia -se, grupo de risco – estar tão serena. Dizendo que ‘vai passar’, quando o que eu mais acredito é que não vai passar, e que vamos viver a beira do abismo por tanto tempo que periga nos acostumarmos a ele.

Eu me pegava pensando na trajetória dela, 95 anos. Deu adeus ao cunhado que lutou na Segunda Guerra Mundial, e também o recebeu em seu regresso. Viu Aracaju crescer e se fazer cidade. Lembra da narrativa da escravidão, da senzala e da Casa Grande, pois, quando nasceu a Escravidão no Brasil tinha acabado há apenas 37 anos. Sua mãe, minha bisavó, foi uma beneficiaria da Lei do Ventre Livre, por exemplo. Quando pensei sobre isso, calculei a trajetória, a jornada intensa de uma mulher negra que fez tantos serviços: babá, governanta, cuidadora, até se firmar como costureira/bordadeira e rendeira. Ainda assim, não conseguia pensar como era possível estar tão serena. Continuava pensando e buscando uma ‘razão’ para tal.

Inquietação central, muito estimulada pela minha trajetória profissional, voltada à pesquisa, ou seja, sou movida por dúvidas, perguntas, questionamentos. Por isso, corria atrás de uma razão, de uma fagulha que me explicasse como a ‘velha Carmem’, maneira carinhosa que a chamamos, estava tranquila e relaxada. Em meio a isso, leio muitas notícias, matérias, comentários e relatos nas redes sociais sobre a situação do Brasil, da Europa, da América Latina e do Continente africano, sobretudo, Angola, país que é uma segunda casa para mim, lá tenho amigues e uma “família” angolana. Por isso, tenho tido muita atenção às notícias e ações que o Estado angolano, junto com seu povo, tem tomado para conter a Covid – 19.

Nessas leituras e buscas por informações me deparo com um comentário de tanta altivez, que dizia: ‘Caros compatriotas havemos de passar esse corona! Nós, povo de Angola, que passamos a escravidão, o colonialismo, a mão perversa do colono e tantas outras perversidades, havemos de passar mais essa’. Li e reli algumas vezes o comentário, vi os feedbacks e as reações positivas e negativas acerca do comentário. Neste momento, pensei como os povos pretos em África e na diáspora podem nos legar lições importantes e fundamentais ao enfrentamento desse contexto que parece ser tão caótico a ponto de revelar a sensação de não poder ser enfrentado. Nos colocando em um lugar de inoperância e impotência. Mas, como pensar que as populações negras em África e diáspora são impotentes, quando enfrentam e travaram tantas guerras, saques, pilhagens, espólios e doenças. Como pensar que esses povos não são altivos e potentes quando em meio a tanta dor, violência, violações, conseguem fundar expressões que apontam a espirituosidade e a espiritualidade como o Candomblé. Ou tantas atividades voltadas a música, dança, cantos e contatos com natureza, outro legado fundamental que os povos pretos em África e diáspora nos ensinam: a simbiose, o contato, o respeito e o reconhecimento que pertencemos em horizontalidade ao mesmo espaço, de que somos todos coabitantes deste planeta.

Como não pensar que os povos que foram relegados a perspectiva do não futuro, da desesperança, conseguem, ainda assim, desempenhar papéis significativos quando reivindicam, lutam e se organizam. Criaram legados, mesmo até sem saber onde seria possível chegar ou ir, como Palmares e todos os nossos quilombos de hoje, os rurais, urbanos e os que carregamos em nós, como bem nos ensinou Beatriz Nascimento. São ensinamentos de resiliência e rebeldia. Resiliência em negociar com a incerteza, com a falta de horizonte, e ainda assim, ter a Rebeldia de enfrentar e passar por isso. Apontando que a resiliência foi e é combustível para o motor da Rebeldia. Nestes tempos da Covid- 19, vale observar a trajetória dos povos pretos em África e Diáspora como uma inspiração de viver da resiliência na intenção da rebeldia. Entendo essas experiências como históricas, sociais, afetivas, espirituais e ancestrais que nos auxiliam na criação das forças necessárias ao combate.

Entendendo isso, consegui compreender a serenidade da velha Carmem que em suas palavras de ‘vai passar’ passam sinais de ser resiliente diante dos fatos, mas rebelde para passar por eles. Hoje, precisamos da resiliência dos povos pretos de África e suas diásporas para sobreviver, e amanhã precisaremos da Rebeldia desses mesmos povos para viver.  Afinal, as nossas e nossos que tanta fizeram, tanto lutaram, em muitas condições apenas para sobreviver, nos deixam também como legado que mais do que sobreviver, nós merecemos viver!

 

[1] Yérsia é preta nagô, neta de Zé Paizinho, neta de uma Rendeira, filha de Professora, Ekédjí no Ilê Axé Omin Mafé. Doutoranda em Antropologia pela UFSC/NUER

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