Violência e abuso sexual contra mulheres nos tatames e ringues: um problema cultural nas Artes Marciais

Recentemente foram expostos casos de assédio sexual em diversos esportes, como da ginasta Simone Biles e de outras ginastas estadosunidenses. No Brasil, também dentro da ginástica, houve grande repercussão contra o ex-técnico Fernando Lopes, acusado de abusos contra crianças e adolescentes e outro muito conhecido,

Por Lathara Veríssimo

Arte: Ani Ganzala 

Recentemente foram expostos casos de assédio sexual em diversos esportes, como da ginasta Simone Biles e de outras ginastas estadunidenses. No Brasil, também dentro da ginástica, houve grande repercussão contra o ex-técnico Fernando Lopes, acusado de abusos contra crianças e adolescentes e outro muito conhecido, na natação, da atleta Joanna Maranhão, que sobreviveu a abusos que sofreu de seu ex-técnico durante a infância.  Porém, mesmo parecendo haver muitos processos acontecendo aos olhos da grande mídia, o problema está longe de ser resolvido. Os casos continuam acontecendo e alguns ganham menos visibilidade. É o caso das artes marciais e desportos de contato, ambientes que se construíram principalmente dentro de uma hierarquia paternalista. Uma violência velada, que ocorre todos os dias, com meninas e mulheres de várias idades. 

Os assediadores, que podem ser desde colegas de treino a professores, se escondem atrás da exposição e envergonhamento das vítimas. Por serem, quase sempre pouquíssimas praticantes mulheres, a maioria acaba se calando para não sofrer os outros vários tipos de violências como ridicularização, difamação e exclusão de espaços. Infelizmente, em muitos dojos (locais onde se treina artes marciais), essas violências se apoiam justamente na estrutura marcial de hierarquia, quando não na submissão da força.  

Apanhado sobre as violências

Muito se fala sobre a disciplina e o respeito ensinados dentro do ambiente marcial, mas ainda é pouca a abertura para debatermos sobre as enormes diferenciações que existem entre os praticantes homens e mulheres. Apesar dos avanços que tivemos nas últimas décadas, ainda são enormes as barreiras para tudo que está fora do padrão de um “samurai” idealizado: as mulheres, queers, pessoas com deficiências, entre outros.

Imagem: Julia Larson

Ao entrar em um dojo dificilmente você vai sair ileso de escutar piadas sexistas, etaristas e capacitistas. Frases como: “você bate como uma mulher”, “bate direito, que você não é aleijado” ou “você tem a disposição de um velho”, são frequentes. Algumas ofensas até vêm disfarçadas de elogios: “você é mulher, mas bate como um homem”, “Nem parece que você é…(insira aqui qualquer coisa que não seja homem cis sem deficiência)”.

Frequento academias de luta há quase uma década e vivenciei desde o final da adolescência e esses primeiros anos de vida adulta como praticante, atleta e hoje monitora. Mesmo treinando em diferentes academias devido à mudança de cidade, nunca sai da minha Equipe pela segurança que sempre tive nela. Sair de uma Academia cheia de atletas mulheres, no Rio, uma cidade na qual a luta profissional feminina está tão desenvolvida e mudar para um local em que os Dojos de competição são quase exclusivamente masculinos é uma enorme mudança e choque de realidade. É horrível como muitas precisamos vivenciar ou ver na nossa frente a diferenciação para entender que ela acontece de forma absurda. 

As formas de assédio e violência presenciadas em cada dojo são variadas. Pegar o número em grupos de whatsapp sem autorização e enviar mensagens privadas com cantadas; passadas de mão “sem querer” em partes íntimas durante movimentações; e até de fato tentativas e consumação de estupro na própria academia. As diversas violências visam colocar as mulheres em locais em que estas, supostamente,  “pertencem”, ou melhor, onde muitos gostariam que elas pertencessem e que nunca saíssem.

A professora de Kickboxing pernambucana Lívia da Silva conta que quando começou a praticar a modalidade, em 2014, na academia só havia homens. Para que aceitassem sua participação nos treinos, ela era obrigada a praticar tarefas como limpeza e organização, mesmo sendo uma aluna pagante. 

Dentro dos preceitos marciais, cuidar do seu dojo, mantendo sua academia limpa e organizada é um dever de todos os alunos, principalmente os menos graduados ou mais novos. Mas, há uma enorme diferença entre todos os alunos seguirem os preceitos marciais e apenas uma aluna, a única mulher, ter de seguir. 

Esse é infelizmente um dos vários relatos absurdos que podemos escutar de mulheres que buscam trilhar seu sonho no esporte. Lívia, que hoje é faixa preta (professora), conta também sobre a diferenciação de tratamento que recebe por ser uma professora mulher. 

Lívia participou de um dos maiores eventos de sua categoria de luta, o WAKO Senior World Championship, na Bósnia, o Mundial Amador da maior entidade de Kickboxing do mundo, e retornou ao Brasil como uma das 10 melhores do mundo. Quando voltou do evento, ela viu outro atleta, de graduação inferior, menos experiente e que tinha participado de um evento menos expressivo, sendo chamado para aplicar seminários. O que não aconteceu com ela.

Nomeando a violência

Certa vez escutei de um professor que ele estava incomodado pois hoje “qualquer coisa poderia ser assédio”. O preocupante não é o fato de muitas mulheres estarem pontuando assédio, mas sim como mulheres se posicionando e informando que não aceitarão esse tipo de tratamento incomoda, e muito. 

Já escutei dezenas de histórias sobre colegas de treinos, professores e instrutores que passaram da linha do respeito. Mas, no momento em que pedi pra que relatassem para construção dessa matéria, a maioria preferiu não contar. Se calaram por medo da exposição, pela vergonha de se ter seus nomes mencionados como “problemáticas”, ou mesmo pelo medo do assediador descobrir sobre os relatos e tentar algum tipo de vingança. 

Imagem: Heloísa Freitas

A professora Lívia viveu isso. Ela relata sobre a constante perseguição de seu ex-professor, que já tem, inclusive, boletins de ocorrência abertos contra ele. As perseguições já ocorreram em academias onde ele estava dando aula, na rua, e no trabalho de uma de suas alunas.

Assim como os outros vários tipos de opressões que existem, o problema inicial é identificar e nomear o que está acontecendo, para que se possa resolver o problema. Mas, muitas atletas e praticantes guardam para si ou até mesmo saem das academias por medo de serem expostas e constrangidas. É o que conta a professora de Muay Thai, M. M.* (BA), que resistiu ao sofrer tentativas de abuso de seu antigo professor de Jiu Jitsu. Ela conta que empurrava e xingava ele quando aconteciam as tentativas, mas que acabava passando como “louca” para os outros alunos. M. comenta que as mulheres continuam sendo culpabilizadas nestes casos, além de todo constrangimento e exposição. 

E esse é o grande porém, como criar coragem e denunciar quando se é minoria no lugar? Às vezes a única mulher da turma, ou uma das poucas. Dentro de uma realidade ideal o Girl Power funciona muito bem, mas dentro de uma vivência na qual mulheres ainda lutam por espaços, literalmente, às vezes nos sentimos obrigadas a aceitar muitas coisas. M. também fala que dos comentários que escuta e exclusões pelas quais passa, o que ela pode fazer é fingir que não a estão afetando. 

Uma solução parcial: as turmas femininas

Uma solução encontrada por algumas academias é a criação de turmas femininas, que podem ser ministradas por professores homens ou mulheres. Nessas aulas, existem apenas alunas, para que façam movimentações técnicas e atividades em duplas apenas com outras alunas mulheres. Os professores Lívia da Silva e Rafael Vinícius (RJ) dão aulas em turmas exclusivamente femininas e afirmam a importância da iniciativa. O professor aponta que a grande questão das turmas femininas é possibilitar o melhor desenvolvimento das atletas. 

O professor Rafael, que começou sua trilha no esporte em 1989, conta que no início as mulheres buscavam as artes marciais e iam aos treinos por razões fitness e alívio de estresse. Eram escassas as mulheres que treinavam para competições. Mais recentemente, quando passou a treinar a atleta do UFC Poliana Botelho, começou a reunir atletas femininas para realizarem treinos com ela. Assim, criou uma das equipes femininas de MMA de maior expressão no Brasil, as Meninas Super Poderosas (MSP). 

Imagem: Rodnae Productions

Para Rafael, o treino exclusivamente feminino é o mais correto e é o que ele segue em seus treinos com as MSP. Pois, assim permite o maior desenvolvimento potencial de cada atleta. “Eu percebi que consigo exigir muito mais das meninas treinando elas entre elas (…) É onde eu consigo tirar o máximo delas e acredito que tá dentro da filosofia que acho que eu acho que é o certo.”conta o Professor Rafael.  Somado a isso, tanto ele quanto Lívia batem na tecla de que treinar equipes femininas é um grande diferencial. Primeiro quanto ao foco que as mulheres têm, sendo significativamente mais esforçadas. Outra questão que trazem é que as mulheres são mais sinceras sobre treino, homens costumam esconder dores, cansaço e medos e mulheres se abrem mais para expor, o que ajudaria a ajustar o treino para extrair o melhor rendimento delas. 

O professor fala ainda sobre a evolução da participação feminina nos esportes. Para ele, as mulheres estão se impondo e ocupando os espaços que pertencem a elas. Segundo ele “É muito legal ver a forma que as mulheres estão se impondo e botando a cara mesmo. Eu vejo as mulheres hoje no esporte em geral: futebol, vôlei, MMA, mais decididas, sabendo mais da representatividade e sabendo mais do lugar delas no esporte e sabendo que ali é o lugar delas, que elas não estão no esporte dos homens, estão no esporte que é de todos e isso ai é muito legal.”

Já a professora Lívia vivencia um processo não tão animador em Cabo de Santo Agostinho, Região Metropolitana de Recife (PE), onde dá aulas. Apesar dela já ter consolidado sua turma feminina, ainda sonha e luta para a realização de um campeonato feminino na sua região.

Falsos privilégios: a parceria masculina e o respeito entre os homens 

Nesse ponto preciso trazer um relato que toca a mim também. A professora N.* (BA) conta que sabe que existem muitos relatos de assédio. Mas, que ela, por ser ex-esposa de Mestre, sempre se enxergou em um local de privilégio, por não ouvir piadas e não ser excluída durante os treinos. N. afirma que sabe que não era respeitada, mas sim que o respeito era em relação ao seu ex-marido. 

Atualmente eu, Lathara Veríssimo, sou casada com um professor e experimentei uma situação similar. Jamais chamaria isso de privilégio. Entendo que estamos tão acostumadas a passar por situações de abusos, que ao ficarmos isentas acreditamos estar privilegiadas. Mas, deixar de sofrer certo tipo de violência não é privilégio. Às vezes é apenas outro tipo de violência que vamos sofrendo. Uma das que mais me incomoda em Salvador (BA) é a invalidação da minha fala e a crença de que sou um objeto do meu marido. Outros professores se recusam a falar comigo, mesmo quando o assunto é referente aos meus treinos. Pedindo sempre para que meu marido trate diretamente com eles a maioria dos assuntos. 

Qual a solução?

Primeiro é importante evidenciar que isso não é a realidade de todas as academias, longe disso. Hoje, principalmente, com a ocupação feminina em massa nos tatames, o machismo vai perdendo pouco a pouco seu espaço. Mas, ainda se trata de um ambiente predominantemente masculino e as figuras de autoridade também são em grande maioria homens. 

No entanto, não precisa se esperar que as mulheres sejam maioria para que esse ciclo se encerre, afinal, somos maioria da população no mundo e nem por isso tivemos o fim dos estupros ou casos de assédio. Assim, é importante se pensar em soluções que tragam a resolução para o problema que é histórico e ainda persiste. 

Para a Professora Lívia, que tanto passou pela situação de vítima como é uma agente de combate à violência a solução vem a partir dos seguintes passos: “Primeiro tem que ter a conversa, tem que se falar nisso. E depois tem que ter a atitude de coibir, né, de dizer assim: ‘se você fizer isso, há uma punição’. E para que haja uma punição tem que ter a denúncia e a mulher tem que ter a segurança em denunciar. Por que de que adianta a gente falar se a gente não tem a segurança se ele vai ser punido?”

Professora Lívia – Imagem: Arquivo pessoal

Várias mulheres estão se reunindo buscando conscientizar umas às outras. Quanto mais unidas formos e mais dialogarmos sobre o que está acontecendo, mais fracos serão os elos do machismo. 

As associações de desporto estão criando Comissões da Mulher, que buscam conscientizar a todos os membros do esporte, acolher vítimas e tomar providências contra os assediadores. Mas, o que as mulheres querem é não sentir medo e ter a segurança de que independente do ambiente que escolham estarem presentes, treinando ou realizando quaisquer atividades, não passarão por abusos. E caso aconteça, que elas possam expor sem serem acusadas e constrangidas, e que os abusadores sejam devidamente punidos pelos atos.  

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