Por diferentes circunstâncias, essas duas mulheres negras compartilham a dor de tantas outras: enterrar o próprio filho
Por Brenda Gomes e Thaís Vieira*
Uma vida de mal me quer, não vi fé. Profundo ver o peso do mundo nas costas de uma mulher. Quando o rapper Emicida escreveu a letra da música “Mãe” fazia referência há tantas mulheres negras que, como a sua mãe, precisam aprender a superar os processos de violências, nos quais estão expostas todos os dias. O que deixa um questionamento: Se o amor de mãe é considerado o maior entre todos os sentimentos, a dor de perder um filho em consequência de um crime pode ser considerada a pior entre as violências? Talvez esta pergunta passe todos os dias pelas cabeças da pernambucana Mirtes Renata Souza, 33 anos, e da baiana Danúbia Santos Silva, 38 anos. A trabalhadora doméstica Mirtes Renata, como tantas outras mulheres, tinha o desejo da maternidade consigo. Apesar de não ter planejado, ficou feliz quando soube que estava grávida de Miguel Otávio Santana. Mesmo com toda dificuldade financeira da família, o menino nasceu rodeado de amor, com direito a avó “babona” que fazia de tudo pelo “Neguinho”, como era carinhosamente chamado. Até o dia que, certamente, a pior entre as dores cortou o coração de Mirtes. Como um dia comum, naquela terça-feira (2 de junho deste ano) Mirtes fez suas atividades e saiu para levar a cadela da família que a empregava para passear, no seu retorno para o prédio de luxo onde trabalhava foi surpreendida pelo porteiro que falou que alguém tinha caído do prédio. Mirtes não imaginava que aquele era Miguel.
“Cada minuto desde que ele estava no meu ventre até o dia que aconteceu a tragédia, ele me ensinou muita coisa. Eu sempre me esforcei para dar o máximo de atenção, amor e carinho. Sempre fiz o que pude pelo meu filho”
Sari Corte Real apertou o botão que matou Miguel
Naquele dia Mirtes deixou Miguel, de 5 anos, sob os cuidados de Sari Corte Real, primeira-dama da cidade de Tamandaré (PE), sua então empregadora, que estava fazendo as unhas, mas se comprometeu a cuidar do menino. “Ela estava responsável por Miguel, tanto que quando saí eu falei: ‘Sari, eu não vou levar as crianças comigo’. Meu filho e a filha dela, porque eles estavam aperreando”. Miguel caiu do prédio e morreu. Sari foi presa em flagrante por homicídio culposo, quando não há intenção de matar. Foi indiciada pela polícia por abandono de incapaz que resultou em morte. O delito é considerado “preterdoloso”, quando alguém comete um crime diferente do que planejava cometer. Após o pagamento de fiança no valor de R$ 20 mil reais, ela foi liberada para responder o processo em liberdade. Inicialmente a acusada não teve o nome divulgado pela polícia.
“Se fosse ao contrário eu estaria no presídio apanhando todo santo dia das presas. Eu não tenho vinte mil para pagar a fiança”, afirmou a mãe de Miguel
Após avaliar as imagens, a polícia constatou que a criança saiu do apartamento de Sari, no 5º andar, para procurar a mãe e foi até os elevadores do condomínio. Por meio de perícias, o Instituto de Criminalística de Pernambuco (IC) constatou que a acusada acionou a tecla do elevador que dá acesso à cobertura às 13h10, saindo do elevador em seguida. O laudo contradiz a versão dada pelo advogado de Sari. Miguel parou no 9º andar, seguiu em direção a um corredor e parou em frente a uma janela da área técnica, escalou um vão e alcançou uma unidade condensadora de ar. Miguel tinha 1,10 metro e a janela, 1,20 metro. Marcas das sandálias que a criança usava atestaram que ele ficou em pé na condensadora. Para descer de lá, Miguel pisou em um segundo equipamento do mesmo tipo e se dirigiu a um gradil que tem função estética. A criança escalou as grades e, ao chegar ao quarto “degrau”, se desequilibrou e caiu. A perícia descartou a hipótese de que alguém estivesse com a criança no 9º andar. Para isso, foi calculado o tempo em que o garoto saiu do elevador e caiu no térreo: cinquenta e oito segundos. Também não havia vestígios de outra pessoa no corredor em que a criança entrou.
O pesadelo de ver o próprio filho caindo do prédio, estirado no chão, é o cenário das noites de Mirtes e da sua mãe, Marta Santana, que também já havia sentido a dor de perder um filho assassinado. “Minha mãe sente muito a falta de Miguel. Ele era único neto dela. Ela já sentiu a dor da perda uma vez quando perdemos meu irmão de uma forma bem trágica também, e agora eu sinto neste momento o que minha mãe sentiu. Ela está sentindo dobrado porque ela sentiu do meu irmão e sente o do neto”. Marta também era trabalhadora doméstica da mesma família, mas nesse dia estava de folga. Mesmo após a divulgação da gravação das imagens da tragédia, Sari e seu esposo, o prefeito de Tamandaré, Sérgio Hacker (PSB), compareceram ao velório de Miguel. Cumprimentaram Mirtes e sua mãe, que ainda não tinham visto as imagens. Ainda assim, a presença de Sari e Sergio causou alvoroço entres os parentes do menino, o que fez com que o casal se retirasse logo.
Além disso mulher, tem outra coisa. Minha mãe não dorme enquanto eu não chegar
O verso do cantor Adoniran Barbosa atravessou gerações. Ele se destacou por cantar a rotina dos menos favorecidos, solitários, despejados. Em especial, esse verso da canção Trem das Onze ilustra a vida de muitas mães de jovens brasileiros. Danúbia Silva (38) também não dormia até ter a certeza que o filho, Marcus Vinicius Cidreira Santos, de 21 anos, já estava em casa com a esposa, Luana, e com o filho recém-nascido, no bairro da Santa Cruz, periferia de Salvador (BA). Além de Marcus, Danúbia tem outras três filhas; as “três Marias”, como ela as chama carinhosamente (9, 11 e 15 anos), que moram com ela e com seu marido Sérgio Silva, no bairro de Cajazeiras, também em Salvador. Danúbia trabalhou como manicure, vendedora e até cuidadora de crianças, mas um dia encontrou sua vocação profissional como cozinheira, função que exerce há mais de 10 anos.
Mesmo com a energia das Marias, o amor e a parceria com o primogênito eram notáveis de longe. “Com ele eu não me sentia só. Ele saía lá do Nordeste e vinha aqui me ver… Todos os dias de manhã meu filho mandava uma mensagem para mim desejando bom dia”, conta. Por volta das 9h, da sexta-feira, dia 24 de abril de 2020, Marcus saiu para levar o lixo, comprar o pão e um bolo para comemorar o primeiro mês de vida do seu filho, levando em sua carteira seus documentos de identidade, três números telefônicos de familiares e uma nota de R$10. Neste dia, a família de Marcus não teve motivos para comemorar. Segundo relatos de testemunhas, o jovem foi atingido por tiros e chutes na costela durante uma operação da Polícia Militar, a execução não ocorreu no momento devido aos populares que estavam no local. Reconheceram Marcus, e interviram falando que o jovem não tinha envolvimento algum com os criminosos procurados pelos PMs. Mesmo assim a instituição demorou a prestar socorros, não lhe atribuindo nenhuma humanização, como protocolo típico da PM em relação às vidas negras e periféricas. Marcus faleceu no Hospital Geral do Estado (HGE) às 11h21 e até então sua família não havia tido notícias sobre seu paradeiro. Como era de costume entre mãe e filho, Marcus mandou uma mensagem para Danúbia pela manhã, instantes antes de seu assassinato. A mãe não visualizou no momento. Ao longo do dia, Danúbia e Luana Menezes – companheira de Marcus – permaneceram em contato, pois não sabiam do ocorrido e acreditavam na possibilidade do jovem ter ido ajudar alguém na comunidade ou estar na casa da avó. Mãe e esposa estavam preocupadas com a demora, mas acreditavam que Marcus retornaria para casa vivo.
Somente às 17h, após Danúbia e seu marido se deslocarem para a 28ª Delegacia – no Nordeste de Amaralina, a mãe descobriu que seu filho foi alvejado por supostos “meliantes”, a partir da versão da Polícia Militar. Ela não acredita que membros do crime organizado no bairro poderiam ter atirado em seu filho: “Ele foi nascido e criado na comunidade, era trabalhador, conhecido e muito solidário com todos por lá”.
Futuros interrompidos
Miguel Otávio tinha sonhos, e Mirtes tinha sonhos para Miguel. Mesmo com a pouca idade, a mãe conta que era só passar um policial que o menino gritava “Oi, amigo!”. Era o sonho dele. Mas ela queria que ele fosse além, que estudasse para ser “um advogado, um médico”. Tinha esperança que o esforço que estava fazendo para criar o menino compensaria e melhoraria e o futuro da família. O futuro de Miguel naquele dia dependeu de Sari, esta que abdicou do cuidado e da vida do menino. Marcus Vinicius trabalhava como motoboy em aplicativos de entrega e em uma pizzaria no bairro da Pituba. Tinha um sonho de trabalhar como músico, gostava muito de tocar bateria, mas pelas condições financeiras, acabou largando o ofício. Chegou a prestar concursos para a Guarda Municipal e Polícia Militar e tinha o desejo de servir o Exército. Após o Carnaval deste ano Danúbia ficou desempregada e passou a planejar vender pizzas como forma de levantar uma renda extra para a família. Quem faria o serviço de entrega era Marcus. Porém seus planos não chegaram a se concretizar.
“Digo que continuo tendo quatro filhos, meu filho foi morar com Deus, mas ele continua sendo meu filho”
Casos seguem em segredo de justiça
Além da dor de perder um filho, Mirtes ainda se depara com a incerteza da agilidade do caso. Já que, apesar da visibilidade que alcançou, Sari está ligada a uma família influente e poderosa da região da Zona da Mata Sul. Onde seu esposo, juntamente com os irmãos Isabel Hacker e Franz Hacker, são prefeitos de cidades vizinhas (Tamandaré, Rio Formoso e Sirinhaém, respectivamente). Segundo advogado que acompanha o caso, Dr. Rodrigo Almendra, o processo de Miguel é um pedido de condenação formulado pelo Ministério Público. Por ser uma ação sobre crime contra criança, o processo correrá em segredo de justiça.
O mesmo silêncio aflige o coração de Danúbia. O caso está sendo acompanhado por advogadas, também em segredo de justiça. A vontade de justiça movem estas duas mães.
Quem vai catar os corpos?
Histórias como a de Danúbia e Marcus acontecem todos os dias em todos os estados brasileiros. Pois quando o assunto é violência do Estado e crime de genocídio contra negros, o Brasil pode dar aula. De acordo com o Anuário da Violência elaborado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 75% das vítimas de letalidade policial são negras, no país onde 56% da população se autodeclara negra. São prantos que ecoam de vários lugares, que não têm sequer o direito de viver o luto, pois depois da morte física, começa a morte simbólica, na aliança perversa entre o Estado e a mídia hegemônica. Meninos, adolescentes e jovens perdem suas histórias e viram os bandidos que morreram em troca de tiros com a polícia. Mesmo que quase todos eles nunca tenham passagem. Não é apenas o extermínio de mais um jovem, é também a destruição de uma mãe, de uma família. “Tem dias que eu não consigo falar, tem dias que eu não consigo ouvir, nem olhar uma foto. É difícil”, declara Danúbia. A coordenadora do Programa de Direitos Humanos do Odara – Instituto da Mulher Negra e do Projeto “Minha Mãe não dorme enquanto eu não chegar”, Benilda Brito, destaca que além do aumento da pobreza, houve um aumento da violência nas periferias durante a pandemia do novo coronavírus. “Há uma certeza da impunidade das violências policiais nas comunidades. A gente tem visto um aumento muito grande. Com os órgãos fechados, ou trabalhando em horários reduzidos, as comunidades estão ainda mais sozinhas, contando com poucos parceiros para se cuidar”. O projeto, criado em 2015 pelo Instituto Odara, atua principalmente em três regiões de Salvador: Cabula, Uruguai e Nordeste de Amaralina, acompanha cerca de 120 mulheres de famílias que perderam seus entes por conta da violência policial. “A nossa assistência e parceria estimula o desejo delas de sonhar novamente”, afirma Brito.
As atividades são realizadas através de algumas ações emergenciais e preventivas como rodas de conversas, orientações jurídicas, fortalecimento comunitário, denúncias, mobilizações sociais, união, práticas e estratégias de autocuidado e valorização à vida. O perfil do público é quase sempre o mesmo: 95% mulheres negras, chefes de família, trabalhadoras domésticas ou trabalhadoras informais, em sua maioria com 3 a 5 filhos, muitas já perderam mais de 1 filho pela violência, e possuem apenas o ensino fundamental.
Mais do que números: Cacos nos corações e calos nas mãos
As histórias de Mirtes e Danúbia apresentam o semblante da injustiça no Brasil. Relembrar os momentos da gestação, da maternidade, vivenciar toda trajetória de seus filhos e de repente terminar em um cemitério, por negligência do Estado, que atira primeiro para depois perguntar o nome. Ou pelos caprichos e irresponsabilidade da socialite primeira-dama, branca e influente que não quis parar de fazer as unhas para pegar na mãozinha da criança de cinco anos e levá-la até sua mãe, trabalhadora doméstica negra, que até quando esteve doente da covid-19 continuou trabalhando e vivendo na casa da família em Tamandaré, onde Hacker é prefeito. O desenho da desigualdade durante a pandemia mostra que mesmo dentro de casa, meninos negros são os alvos preferidos do Estado. Mesmo com as medidas de isolamento social, houve um aumento de 26% de mortes pela Polícia Militar no Brasil, entre os meses de abril 2019 e o mesmo período de 2020. A pesquisa foi realizada pelo grupo GLOBO. Segundo o Atlas de Violência de 2019, jovens negros estão mais suscetíveis à violência letal do que jovens brancos. A chance de um jovem negro ser assassinado é 2,7 vezes maior do que a de um jovem branco. 75,4% das pessoas mortas em intervenções policiais entre 2017 e 2018, no Brasil, eram negras. Entre Junho de 2019 e Maio de 2020, os dados coletados pela Rede de Observatórios de Segurança demonstram que o estado da Bahia teve 332 ações policiais com vítimas, registrando 260 mortes e 24 chacinas, sendo o 2º estado que mais mata em operações policiais no país. Ainda segundo o Atlas da Violência 2019, Salvador é a 5ª cidade mais violenta do país, atrás somente de Fortaleza (CE), Rio Branco (AC), Belém (PA) e Natal (RN). Os crimes contra a vida de pessoas negras não são casos isolados e não acontecem por mera coincidência. O debate sobre o genocídio do povo negro vem sendo pautado pelos movimentos negros no Brasil há pelo menos quatro décadas. Sobretudo quando falamos de extermínio da juventude, saúde das mulheres negras e maternidade. Elas são violentadas com a negação do acesso às políticas de direitos sexuais e reprodutivos, com a violência obstétrica, e com a maternidade brutalmente interrompida pelo racismo. Por outro lado, a cultura racista e sexista no Brasil faz com que as mulheres negras sejam as principais sujeitas a ocuparem as vagas de trabalho doméstico. Dados de 2017 e 2018 compilados pelo Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos) e Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) revelaram que neste período havia 6,23 milhões de pessoas trabalhando nesta ocupação, 92,6% eram mulheres, sendo 62,5% negras e 30,1% brancas. Entre as mulheres negras, 46% são chefes de família eram responsáveis pela renda integral da família. Por este motivo, durante muito tempo esta categoria trabalhista não possuía direitos assegurados. E são comuns os relatos destas trabalhadoras sobre criarem os filhos das famílias empregadoras e não conseguirem acompanhar o crescimento dos próprios filhos. Outras tantas introduziram suas filhas na profissão ao dividirem as tarefas nas casas onde trabalhavam. Muitas outras levam seus filhos ainda pequenos para seus locais de trabalho por não terem com quem deixar, ou para aliviar a saudade, como fez Mirtes Renata, no dia da trágica partida de Miguel. Ainda é um desafio para a sociedade compreender que o racismo e a violência policial são violações de direitos humanos. Que não pode ser aceitável que estatísticas de morte digam sempre, em maioria, sobre pessoas negras. Que os corpos contados nas estatísticas falam sobre sujeitos que possuem trajetórias, sonhos, famílias. Como disse Benilda Brito: “Quando um jovem é assassinado, toda a comunidade sofre”. Há uma relação direta entre o Estado e a naturalização da morte trágica das pessoas negras. Como demonstra os estudos do pesquisador e filósofo camaronês, Achille Mbembe, essa relação é chamada de necropolítica: “…. a expressão máxima da soberania reside, em grande medida, no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer”. A morte e desumanização das pessoas negras é política de Estado. A dor, a revolta e o desejo de justiça que hoje movem as vidas de Danúbia Silva e Mirtes Renata é a defesa mais radical dos Direitos Humanos. Cabe a nós, sociedade, nos posicionarmos pela aceitação da tragédia cotidiana, ou pelo apoio, justiça e solidariedade a estas mães.