Por Marry Ferreira / Imagem: Ivanoh Demers
Hollywood fez um trabalho excepcional na difusão de uma “cultura americana” e do sonho americano (american dream) em muitos lugares do mundo. A utilização do cinema como forma de persuasão e projeção cultural serviu não só para silenciar as desigualdades do país, como também para tentar atrair pessoas para “a terra das oportunidades”. Discursos como este projetaram os Estados Unidos como uma terra que promete esperança e apoia a democracia, enquanto justifica seu imperialismo e ações devastadoras em outros países como forma de assegurar seus ideais de liberdade.
Nesses dois anos e meio morando nos Estados Unidos, através da troca e construção coletiva com amigas(os) ativistas negras(os) de todo o mundo, vi em primeira mão que as histórias poderosas desta grande nação de imigrantes ainda não são as que tomam conta da indústria Hollywoodiana. Foi depois que pisei aqui que, como jornalista e ativista, aprendi ainda mais na prática sobre o poder do discurso de recriar, apagar, editar narrativas e influenciar sutilmente outros atores por meio de suas instituições – uma prática que, na política mundial, é chamada de Soft power (poder brando) e foi inicialmente divulgada nos anos 90 por Joseph Nye, da Universidade de Harvard.
Assim como Hollywood, o discurso sobre a cultura, os valores políticos e as políticas externas dos Estados Unidos são três grandes meios do soft power. E essa ferramenta impressionante que também legitima a soberania dos EUA, reforçando uma imagem popular do país como único poder no mundo – inclusive como “a América”, apagando a pluralidade e riqueza de todos os países que fazem parte das diferentes regiões das Américas.
O poder brando faz com que as pessoas cooperem com a propagação deste discurso e com a perpetuação do sistema, e assim, outras pessoas passam a seguir, admirar e invejar o modelo constituído – e por isso é uma estratégia que depende da existência de pessoas que compartilham e vivam esses ideais. Esse poder surge por meio do contato e se traduz em influência, e vai beneficiando, protegendo e sustentando os interesses daqueles que sempre detiveram o poder e a riqueza. No caso, dos Estados Unidos, que tentam caracterizar o mundo de acordo com suas próprias política, as ferramentas de comunicação de massa são um importante meio para que isso seja feito de forma rápida, eficaz e reproduzida por muitos.
O sonho americano foi baseado em uma ideia, filosofia e crença de que qualquer pessoa, independentemente de sua formação, fé, classe, gênero, cultura e raça, pode vir para os EUA e colher os benefícios de uma tal prosperidade se, claro, tivesse o desejo, a determinação e a vontade de trabalhar duro – a tal falada meritocracia. Nestes últimos anos, por diversas vezes vi pessoas questionando sobre a dureza de se morar em um país onde as políticas migratórias fazem com que boa parte de nós nunca se sintam em casa – mesmo aqueles que moram aqui há mais de 20 anos. Em respostas a tais questionamentos, quase sempre estão frases como “persista”, “é difícil mas vale a pena”, “aqui é a terra onde o filho chora e a mãe não vê”; além do discurso do “self-made”, que se refere às pessoas que “representam o melhor deste sonho americano” e conseguem uma ascensão econômica, como afirmam muitos empresários no famoso programa de TV Shark Tank.
O sonho americano se coloca então neste lugar de que os Estados Unidos são uma nação concebida em liberdade e dedicada à igualdade entre todes – um discurso que ignora, por diversas vezes, a exclusão de pessoas que construíram esse país, de afro-norte americanas(os), indígenas e outros grupos que ainda não vivem uma realidade plena de liberdade e equidade. Durante séculos, pessoas negras foram escravizadas e forçadas a trabalhar em condições brutais e desumanas. A economia do país foi construída sobre a exploração e a segregação dessas pessoas, além de decisões políticas que concentravam trabalhadores e trabalhadoras negras em ocupações cronicamente subvalorizadas, institucionalizaram disparidades raciais em salários e benefícios e perpetuam a discriminação em áreas como emprego, moradia, educação e saúde. Como resultado, ainda hoje, há disparidades raciais gritantes que persistem e afetam afro-estadunidenses e imigrantes negras(os). Imigrantes estes que, durante a pandemia do COVID19, se demonstraram o motor do país como trabalhadores essenciais, fazendo grandes cidades, como Nova York – a cidade que não dorme – finalmente dormir quando o setor de serviços e turismo parou suas atividades para que conter o vírus fosse possível.
O atual presidente dos Estados Unidos afirma que “tornou a América grande novamente”, mas os dados mostram exatamente o contrário. A concepção clássica do sonho americano – que consiste em ter uma casa, família, educação e uma fonte sustentável de renda – não é uma narrativa que contempla a maior parte dos(as) negras(os) norte-americanos, e sequer os imigrantes.
De acordo com o Census Bureau, no primeiro semestre de 2020, 76% das famílias brancas possuíam casa própria, em comparação com apenas 47% das famílias negras. A diferença entre pessoas negras e brancas com casa própria é maior agora do que era quando o Fair Housing Act foi sancionado em 1968, ainda de acordo com a pesquisa. Essa lacuna de 29 pontos percentuais, perpetuada por décadas de políticas habitacionais e econômicas favoráveis aos compradores brancos e projetadas para excluir compradores negros, foi ainda mais exacerbada pela pandemia. Os dados também provam que uma porcentagem maior de famílias negras deve empréstimos estudantis do que famílias brancas; que, durante muitos anos, imobiliárias em cidades como Minneapolis, St. Louis, Seattle e Chicago, proibiam a venda de propriedades específicas para pessoas negras; e que, em 2013, pessoas negras e latinas tinham duas vezes mais probabilidade do que brancas de receber ofertas de empréstimos para casa própria com juros mais altos.
A discriminação no emprego também perpetua a desigualdade no bem-estar econômico. Nos últimos 40 anos, os trabalhadores negros têm suportado consistentemente uma taxa de desemprego de aproximadamente o dobro de seus colegas brancos. Famílias negras também experimentaram uma renda média de 25% a 45% mais baixa do que suas contrapartes brancas, e essas disparidades persistem independentemente do nível de escolaridade e da estrutura familiar. Para Philip Alston, o relator especial das Nações Unidas para a pobreza extrema e os direitos humanos, essa “terra de oportunidades” está “rapidamente se tornando campeão de desigualdades”.
No caso das ações de política externa, vemos como exemplo a acusação de que, durante a pandemia, os EUA redirecionaram para si mesmos um conjunto de 200 mil máscaras que tinha como destino original outros países, inclusive o Brasil. O que foi descrito por alguns como “pirataria moderna” e como uma forma que o país encontrou de conter os altos casos em seu território, também informa sobre o valor das vidas do Norte e do Sul Global. Outro exemplo foram com os imigrantes que cruzaram as fronteiras e foram presos em prisões e campos em todo o país, incluindo crianças que foram colocadas em gaiolas e separadas de suas famílias, com o discurso de que o país não poderia receber mais imigrantes ou refugiados.
Quando falamos sobre o soft power, Hollywood e o sonho americano, falamos sobre várias coisas, incluindo uma percepção de que os EUA pode até ser uma sociedade imperfeita, mas admirável; e a de que a política externa do país serve não apenas a seus próprios interesses, mas ao bem-estar comum mais amplo. No entanto, quem tem permissão para participar desse tal sonho? Quem tem lucrado com as sanções em prol de valores e aspirações nacionais?
O poder brando pode facilmente ser superestimado quando se fala do país onde “todos os homens são criados iguais”. Mas este também é o país com uma longa história de segregação, e onde o racismo estrutural da formulação de políticas federais, estaduais e locais continua a produzir inequalidades gritantes. Para que essas disparidades sejam eliminadas, será necessário muito mais do que a ideia de um sonho excludente e de falas meritocráticas.