Por Angela Figueiredo* / Imagem: Agência Brasil
Este texto foi organizado para responder à atividade do Odara – Instituto Mulher Negra, que convidou uma série de ativistas, pesquisadoras e intelectuais negras para responder a pergunta “Por que votar em mulheres negras?”. Eu quero agradecer e parabenizar esta iniciativa, tão importante para o cenário das eleições 2020. Enquanto eu estava rascunhando a minha intervenção, tive o prazer de assistir a uma live com Angela Davis e Gina Dent sobre o feminismo negro abolicionista. Como sempre, a fala de Angela é inspiradora, e me estimulou a fazer esta reflexão.
A pergunta feita pelo Odara é também feita a mim cotidianamente por diversas outras pessoas neste período eleitoral e de isolamento social, proveniente da pandemia causada pelo vírus covid-19. Por que eu votarei em mulheres negras? Ou, por que todos nós devemos e precisamos votar em mulheres negras?
Organizei 30 motivos que justificam meu voto e, ao redigir tais razões, dei-me conta de que eu poderia seguir escrevendo muitas páginas, e com entusiasmo, sobre as razões para enegrecer e feminilizar o meu voto e convencer vocês, eleitoras e eleitores, a fazerem o mesmo.
- Em primeiro lugar, quero dizer que nós, do Fórum Marielles, apoiamos, votamos e votaremos em mulheres negras que tenham um alinhamento entre autonomia, competência e assunção de pautas relevantes para os movimentos sociais, e um projeto político voltado para o combate às desigualdades sociais, raciais e de gênero, uma proposta de administração/gestão pública em que caibam todos, todas e todes;
- Eu voto em mulheres negras porque quero romper com a hegemonia branca, patriarcal e heterossexual na política baiana, que tem mantido historicamente três ou quatro famílias no poder. Um poder que segue uma linha patrilinear, sendo passado de pai para filhos, sobrinhos, irmãos e, se não houver mais homens para ocupar esses espaços, entram as mulheres brancas. Este esquema de herança do capital político precisa acabar!
- Eu voto em mulheres negras porque somos as mais afetadas pela pandemia, quer seja pela infecção causada pelo vírus covid-19, por sermos a maioria das trabalhadoras que exercem funções consideradas essenciais, a exemplo do emprego doméstico; ou porque estamos ainda mais sobrecarregadas, cuidando de quem está em casa, auxiliando os filhos nas tarefas escolares, lavando, limpando e exercendo tarefas essenciais para a vida humana, mas somos invisibilizadas. E nós não estamos nas funções que decidem como e quando utilizar os recursos públicos;
- Eu voto em mulheres negras porque os dados revelam que somente 3% delas ocupam cargos máximos nas prefeituras no Brasil;
- Porque as mulheres pretas foram somente 5% do total de candidatos eleitos para as Câmaras Municipais em 2016, segundo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE);
- Porque parte significativa dos domicílios no Brasil, 45% deles, possuía apenas uma mulher como provedora, em 2016;
- Eu voto em mulheres negras para corrigir injustiças históricas, visto que elas são 27% da população e governam apenas 3% das prefeituras no país;
- Porque o perfil e a trajetória das mulheres prefeitas demonstram que elas são lideranças comunitárias e têm experiência prévia em gestão pública, além de nível de escolarização superior ao dos homens. 50% das atuais prefeitas brancas possuem ensino superior, e 71% das prefeitas negras também;
- Eu voto em mulheres negras para reafirmar que Salvador é a cidade das mulheres, como dizia a antropóloga Ruth Landes, em 1937, ao se dar conta de que as mulheres negras não performavam os papéis tradicionais de gênero, não se constituíam enquanto sexo frágil ou tinham os mesmos benefícios concedidos às mulheres brancas durante a gravidez e a amamentação;
- Voto em mulheres negras porque elas nunca foram protegidas por serem mulheres. Como afirma Angela Davis (2016), durante a escravidão as mulheres negras eram, sobretudo, trabalhadoras escravizadas;
- Voto em mulheres negras porque quero homenagear Carolina Maria de Jesus, que com sua escrita ensinou ao mundo que sua experiência de catadora de papel não limitava a sua capacidade de análise política e social;
- Carolina Maria de Jesus, que usou a escrita como uma arma para denunciar a sua condição de vida e o descaso público, ameaçava os vizinhos que a importunava, dizendo que colocaria o nome deles no seu diário, onde registrava sua história de vida. Carolina sabia que conhecimento é poder.
- Eu voto em mulheres negras porque o lugar que estamos na sociedade, na base das hierarquias social e racial, nos permite compreender o mundo de uma perspectiva “privilegiada”, ou epistemologicamente privilegiada para entender as dificuldades que afetam a vida da grande maioria negra e pobre, como afirma a feminista negra Patrícia Hill Collins (1990);
- Eu voto em mulheres negras porque acredito na crítica radical de Angela Davis (2018) ao sistema de justiça e ao encarceramento em massa, como uma forma de conter pessoas desempregadas e sem direito à casa, comida, educação e trabalho;
- Eu voto em mulheres negras porque quero acabar com a violência contra as mulheres, historicamente negligenciadas pelo sistema de justiça. Quantas mulheres são assassinadas, mesmo tendo denunciado o agressor?
- Eu voto em mulheres negras porque quero um modelo de sociedade em que o individualismo não seja a base que orienta as ações;
- Eu voto em mulheres negras porque acredito na sua criatividade e capacidade de atrair recursos, gerar emprego e renda, de forma mais colaborativa e inclusiva;
- Eu voto em mulheres negras porque acredito na sua generosidade e capacidade de se reinventar, criando um mundo para além do capitalismo global racializado e misógino;
- Eu voto em mulheres negras para me opor às imagens de controle criadas pela sociedade (COLLINS, 1990), que delega às mulheres negras apenas lugares subalternos;
- Eu voto em mulheres negras para me opor ao racismo e ao sexismo que imperam na cultura brasileira;
- Eu voto em mulheres negras para desmantelar as hierarquias raciais e as desigualdades estruturais no mercado de trabalho, no acesso à saúde e à educação;
- Eu voto em mulheres negras para conter a violência policial contra nós, negras e negros, para encontrar outras formas possíveis de a polícia se relacionar com as comunidades;
- Eu voto em mulheres negras para fazer justiça à Marielle Franco;
- Eu voto em mulheres negras para me opor à declaração da juíza Inês Marchalek Zarpelon, da 1ª Vara Criminal de Curitiba, que afirmou na sua decisão que um homem negro seria “seguramente integrante do grupo criminoso, em razão da sua raça, agia de forma extremamente discreta”;
- Eu voto em mulheres negras porque acredito que somente elas serão capazes de criar um novo pacto civilizatório, alinhado às diversas demandas políticas que resultaram na Marcha das Mulheres Negras contra o Racismo a Violência e pelo Bem Viver, ocorrida em novembro de 2015, em Brasília;
- Eu voto em mulheres negras porque me oponho ao modo como o Estado nega os direitos à saúde, trabalho, educação e moradia da população racializada, considerada como o “outro”, inferior e subalternizado, desde o período colonial, contribuindo para o aumento da população encarcerada (DAVIS, 2018);
- Eu voto em mulheres negras para que a democracia seja efetiva, pois só haverá democracia com igualdade racial;
- Eu voto em mulheres negras para afirmar que vidas negras importam, em todos os setores da sociedade;
- Eu voto em mulheres negras para inverter a lógica colonial de ocupação de espaços de poder;
- Eu voto em mulheres negras para exercer a desobediência política, a desobediência ao capitalismo, ao racismo, ao heteropatriarcado e à heteronormatividade branca na política;
*Professora e pesquisadora da UFRB, ativista, feminista negra, Coordenadora do Coletivo Angela Davis e da Escola Internacional Feminista negra decolonial e integrante do Fórum Permanente de Formação política Marielle Franco. Autora de livros e artigos sobre desigualdades raciais e de gênero, feminismo negro e descolonização do conhecimento.
Referências:
Patricia Hill Collins. Black Feminist Thought: Knowledge, Consciousness, and the Politics of Empowerment. Nova York: Routledge, 1990.
Angela Davis. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016.
Angela Davis. A liberdade é uma luta constante. São Paulo: Boitempo, 2018.
Carolina Maria de Jesus. Quarto de despejo: Diário de uma Favelada. São Paulo: Ática, 1995.
Ruth Landes. A Cidade das Mulheres. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2002.