Menino Joel: Primeiro dia de julgamento é marcado por contradições sobre omissão de socorro e tentativa de caracterizar o Nordeste de Amaralina como território violento

Joel foi morto no dia 21 de novembro de 2010, no Nordeste de Amaralina, em Salvador (BA), durante uma ação da 40ª CIPM

Por Andressa Franco

Chegou ao fim na noite desta segunda-feira (6) o primeiro dia de julgamento do assassinato do menino Joel Conceição Castro, de 10 anos, no Fórum Ruy Barbosa, em Salvador (BA). Foram 13 anos de espera até que o ex-policial militar Eraldo Menezes de Souza e o tenente Alexinaldo Santana Souza fossem julgados. Ambos denunciados pelo Ministério Público da Bahia por homicídio qualificado, cometido por motivo torpe, oferecendo perigo comum e impossibilitando a defesa da vítima.

Ao longo do dia, foram ouvidas quatro testemunhas de acusação e seis testemunhas de defesa, finalizando assim a fase de instrução da sessão presidida pela juíza Andréa Teixeira Lima Sarmento Netto, do 2º Juízo da 2ª Vara do Tribunal do Júri.

Joel foi morto no dia 21 de novembro de 2010, no Nordeste de Amaralina, em Salvador (BA), durante uma ação da 40ª Companhia Independente da Polícia Militar (CPMI), à época comandada pelo tenente Alexinaldo. O menino foi atingido e morto com um tiro no rosto dentro do seu quarto, quando se preparava para dormir. Em dezembro do mesmo ano, a perícia apontou o ex-soldado Eraldo como autor do disparo. De acordo com a família, os policiais negaram socorro à criança.

Menino Joel em propaganda do Governo do Estado da Bahia – Imagem: Reprodução

Larissa de Jesus dos Santos, irmã da vítima, conta que a expectativa é de que a justiça seja feita, sem mais prorrogação. “Foram sonhos destruídos, uma família destruída. São coisas que não vão tampar o buraco, mas é como se meu irmão descansasse em paz.”, desabafa emocionada, ao lembrar do menino que dedicou os poucos anos que lhe foram permitidos viver à capoeira. “Era o único irmão que levaria o legado de meu pai à frente. E eles mataram. Eles acabaram com o sonho. Isso dói.”

No mesmo ano de sua morte, Joel chegou a estrelar uma propaganda do governo da Bahia para promover o turismo no estado, exibindo suas habilidades na capoeira.

“Nosso grande desafio é fazer com que o Conselho de Sentença seja sensibilizado pela vida de um menino negro. Nossa expectativa é que, a partir das oitivas das testemunhas, as pessoas não lembrem do menino Joel exclusivamente a partir da morte, mas que a vida dele era frutífera e foi ceifada de forma violenta”, avalia uma das ativistas do Instituto Odara, que assessora juridicamente a família da criança.

Ato organizado pelo Instituto Odara pedindo Justiça Pelo Menino Joel e outras crianças vítimas da letalidade policial em frente ao Fórum Ruy Barbosa em Salvador (BA) nesta segunda-feira (06) – Imagem: Jamile Novaes
Segundo dia

Nesta terça-feira (7), iniciou-se a partir das 8h, às sustentações do Ministério Público e da defesa dos réus. Cada uma das partes possui 2h30 de argumentações livres e apresentações de provas para tentar  convencer os sete jurados, formados por cinco homens e duas mulheres escolhidos através de sorteio. Depois ainda é possível haver réplica e tréplica. Ao final o Júri decidirá se os acusados são ou não responsáveis pela morte do menino, e a juíza decidirá pela sentença. Eles podem pegar entre 12 a 30 anos de prisão. 

O que dizem as testemunhas

As quatro testemunhas da acusação apresentaram relatos similares sobre a noite do crime. Dois vizinhos lembram de ouvir os disparos, ver os policiais na rua próximo à casa de Joel Castro, e o Mestre Ninha, pai do pequeno Joel, e homônimo ao menino, Joel Castro. Poucos minutos depois, vieram os gritos de Jéssica, irmã da criança. Registraram ainda que os agentes não prestaram socorro, e não deixaram as pessoas se aproximarem.

“Não teve confronto, nem outras pessoas atirando. Os policiais estavam em frente à residência, pediam que a família se afastasse: ‘se afaste sua desgraça, senão eu vou atirar’”, testemunhou um dos vizinhos, que, assim como outras testemunhas da acusação, explicou que a família conseguiu socorrer Joel com ajuda de um morador da rua.

A outra testemunha ressaltou ainda que o movimento na rua era calmo e tranquilo naquele domingo à noite. “Todos os vizinhos se conhecem, é como se fosse uma família”, disse a testemunha, que também relatou já ter presenciado abordagens truculentas da polícia no bairro.

Enquanto se preparavam para dormir, a família ouviu tiros na rua, ignoraram, e segundos depois um tiro entrou pela janela fechada do quarto do menino e lhe atingiu no rosto. Segundo relato de Jessica, irmã de Joel, foi questão de segundos para ouvir o baque do corpo de Joel no chão e encontrá-lo sangrando. Jeanderson, irmão mais velho que hoje vive fora do país, o carregou no colo para fora de casa, junto a Jéssica e Joel Pai. Mas o socorro foi negado pelos agentes.

Eraldo foi demitido da Polícia Militar após conclusão de processo disciplinar (PAD) do crime contra Joel, em 2012, instaurado em paralelo ao inquérito da Polícia Civil.

Em seu interrogatório na Corregedoria da corporação, o ex-soldado disse que o disparo ocorreu de forma acidental “durante uma troca de tiros com marginais”, depois de ter escorregado, o que fez com que “involuntariamente apertasse o gatilho”. No entanto, foi descartada a hipótese de que Eraldo efetuou apenas um disparo de forma acidental, “já que além do projétil encontrado no corpo da vítima, foram encontrados dois estojos percutidos pela arma do dito respondente, o que leva à conclusão de que foram ao menos dois os disparos”, afirma o documento.

O PAD concluiu que o fato do disparo não ter sido direcionado a Joel não isenta de responsabilidade o atirador, que, “agiu com imprudência”. “Ora, mesmo num embate com bandidos armados, não pode o policial militar sair dando tiros a esmo, notadamente num local onde residem famílias, sob pena de atingir inocentes, como ocorreu”, diz trecho.

O testemunho de Joel Pai foi o último da acusação. Muito emocionado, o capoeirista lembrou do momento em que gritou “Socorro, vocês mataram meu filho” ao pedir ajuda aos policiais. Segundo ele, os agentes presentes no local negaram que o tiro que atingiu a criança havia sido disparado por eles, e não foi prestado socorro.

Do lado da defesa, testemunharam membros da corporação, como o tenente-coronel Elson Cristóvão Pereira e o capitão Josair Santiago Pereira da Silva. Eles destacaram o “perfil profissional” de Alexinaldo, como equilibrado e disciplinado.

A promotora do Ministério Público chegou a questionar as testemunhas sobre como se dá tecnicamente a abordagem e o planejamento das operações policiais em diferentes bairros da capital baiana. De acordo com levantamento feito pela Iniciativa Negra por uma Nova Política de Drogas em 2021, a Pituba aparece com um índice de apreensão de drogas maior que em bairros como o Nordeste de Amaralina. Ainda assim, o bairro nobre teve zero homicídios, enquanto o outro registrou 58 no ano analisado.

Interrogatório dos réus: contradições sobre omissão de socorro

Durante o interrogatório dos réus, ambos negaram que os fatos ocorreram como relatado pela família e vizinhos que testemunharam. O ex-soldado e o tenente apresentaram suas versões do contexto da operação, onde a 40ª CIPM atendia a um chamado por presença de indivíduos armados no bairro. “Aconteceu de maneira totalmente fora do meu controle, jamais ia querer um resultado desses”, chegou a declarar o tenente Alexinaldo, que comandava a guarnição.

Ambos apostaram na narrativa de caracterizar o Nordeste de Amaralina como um território violento, dominado pelo tráfico de drogas, e onde era corriqueiro que a polícia fosse recebida a tiros. Como se esse contexto justificasse os possíveis “efeitos colaterais” da atuação das forças de segurança do estado.

Na versão dos acusados, eles teriam seguido com a guarnição, que somava nove agentes, em busca dos indivíduos armados, chegando a realizar a apreensão de uma arma no hall de uma varanda de portão baixo. Uma moradora teria indicado com gestos aos policiais onde estava o objeto. Ainda de acordo com o testemunho de Alexinaldo, a perseguição teria continuado depois disso.

Em defesa própria, os acusados dizem que assim que chegaram na rua em que o menino morava foram recebidos a tiros. Eles contam que supostamente entraram no beco de onde os suspeitos saíram. A guarnição revidou, mas logo cessou os disparos, já que os supostos indivíduos já estavam fora de vista.

Os dois réus negaram diversas vezes qualquer tipo de contato com a família, populares ou com o menino Joel ferido nos braços do irmão. Ainda que todas as testemunhas de acusação tenham relatado que levaram segundos entre os disparos, e os gritos de socorro na rua, onde a família havia clamado por ajuda aos agentes, sem serem atendidos.

A principal divergência entre os relatos da acusação e dos réus diz respeito à não existência de outros atiradores além da polícia na rua, e a omissão de socorro para a família que carregava o menino desfalecendo. Tanto Eraldo quanto Alexinaldo afirmam que, ao retornarem às imediações da casa da família, o menino Joel já havia sido socorrido.

“Eu cheguei a temer que eu pudesse ter atirado, porque eu procurei a vítima e disseram que já tinha sido atendida. […] Não tinha nenhum familiar da vítima no local e os moradores estavam hostilizando os policiais, acusando de ter atirado”, contou o tenente, mais uma vez negando que tenha havido qualquer pedido de ajuda de familiares. “Quando sai o laudo e consta que o disparo foi feito por um dos policiais, foi ali que o mundo caiu.”

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