Por Andressa Franco e Elizabeth Souza
Santo Domingo, República Dominicana, 1992. Mulheres negras de toda a América Latina e do Caribe se reuniram para o I Encontro de Mulheres Afrolatinoamericanas e Afrocaribenhas. O evento foi um marco para a articulação política e social das mulheres negras da região, e teve entre seus saldos a criação da Rede de Mulheres Afro Latinoamericanas, Afrocaribenhas e da Diáspora; e o estabelecimento do dia 25 de Julho como Dia Internacional da Mulher Afro Latinoamericana, Afrocaribenha e da Diáspora. Diversas ativistas negras brasileiras participaram deste momento e o Movimento de Mulheres Negras no país só se fortalece desde então.
Pará, 2011. A paraense Raimunda Nilma de Melo Bentes, hoje com 76 anos, propõe a realização de uma marcha nacional de mulheres negras no Brasil. Engenheira agrônoma, ela é uma das fundadoras do Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará (Cedenpa), em 1980. Na época de idealização da Marcha, o Cedenpa integrava a coordenação da Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras (AMNB).
“Eu fiz a proposta, mas quem fez a marcha foram as pessoas que se desdobraram para que ela acontecesse. No início, a maioria não acreditou, mas a gente estava decidida a ir mesmo que fosse com cem mulheres”, lembrou a ativista em entrevista ao Believe Earth.
Após essa proposta inicial, diversas organizações de mulheres negras e movimentos sociais passaram a se reunir e a planejar a marcha. Um processo de articulação que durou quatro anos, 2011 a 2015, com mobilizações em diferentes estados do Brasil, incluindo a criação de comitês estaduais e municipais para organizar e coordenar as ações, bem como a elaboração de cartas em apoio à Marcha de Norte a Sul do país.
“Nós tivemos muitas reuniões, mobilização, rodas de conversa para as pessoas saberem por que estávamos marchando”, lembra Alaerte Martins, integrante da Rede de Mulheres Negras do Paraná.
Bahia, 2013. O Odara – Instituto da Mulher Negra cria o Julho das Pretas, estratégia de incidência política que acontece através de uma agenda conjunta e propositiva, encabeçada por diversos movimentos de mulheres negras, de todas as regiões do país. A primeira edição aconteceu no mesmo ano sob o tema “Fortalecimento Institucional das Organizações de Mulheres Negras da Região Nordeste”. Naquele momento, e nos dois anos seguintes, o Julho das Pretas foi estratégico para a mobilização rumo à Marcha de 2015.
Brasília, 2014. No dia 25 de julho, organizações anunciaram durante o Festival Latinidades 2014: Griôs da Diáspora Negra, que a data da Marcha das Mulheres Negras seria o dia 13 de maio de 2015, em Brasília, sob o tema Contra o Racismo e a Violência e pelo Bem Viver. No mesmo dia, foi publicado o Manifesto da Marcha das Mulheres Negras 2015 contra o Racismo e a Violência e pelo Bem Viver, pelo Comitê Impulsor Nacional da Marcha. O documento denunciava a ação sistemática do racismo e do sexismo acobertado pelo poder público, pondo em xeque a vida de mulheres negras.
No início de 2015, o Comitê Nacional Impulsor da Marcha anunciou a mudança da data para novembro daquele ano, como estratégia de aumentar o tempo de mobilização.
Marchando na capital federal
Brasília, 2015. Todos os esforços das organizações de mulheres negras de todo o país culminaram na realização da Marcha das Mulheres Negras contra o Racismo e pelo Bem Viver, no dia 18 de novembro, com a presença de cerca de 100 mil mulheres em Brasília.
A carioca Clátia Vieira, coordenadora do Fórum Nacional de Mulheres Negras, era uma das integrantes do Comitê Impulsor Nacional. Para ela, a Marcha foi um divisor de águas para as organizações de mulheres negras. “A partir da nossa organização, de ponta a ponta nesse país, foi possível dar visibilidade à luta das mulheres negras, fortalecer nossas organizações e com isso muitas delas foram eleitas, assumiram lugares de destaque e pautaram o Estado cada qual no seu território. A Marcha foi o disparador para a construção de uma abolição verdadeira feita pela mão das mulheres negras nesse país.”
A Marcha deixou entre seus legados a Carta das Mulheres Negras. Documento entregue à presidência da república e à sociedade brasileira, destacando os dados de desigualdade e apresentando propostas para construção de um novo pacto civilizatório, baseado no Bem Viver. São propostas sobre direito à cidade, segurança pública, justiça ambiental, direito à seguridade social, educação, cultura, justiça, entre as mais diversas agendas.
Pavimentando caminhos rumo a 2025
Próximo de completar 10 anos da 1ª Marcha Nacional de Mulheres Negras, organizações de diversas regiões do Brasil e do mundo se organizam para a segunda edição, que acontecerá em 25 de novembro de 2025. Diferente da primeira vez, onde cerca de 100 mil mulheres ocuparam as ruas de Brasília, o esperado para o próximo ano é alcançar a marca histórica de um milhão de mulheres negras marchando por Reparação e Bem Viver na capital federal.
“A consequência [da marcha de 2015] foi a criação de vários coletivos e organizações novas, por isso em 2025 acreditamos que vamos levar um milhão de mulheres para Brasília com toda certeza, porque agora estamos muito mais organizadas”, projeta Alaerte.
Brasil, dia 21 de março de 2024. Mulheres negras de diversas organizações do país se reuniram para o lançamento oficial da Marcha das Mulheres Negras por Reparação e Bem Viver, iniciativa que aconteceu de forma híbrida – presencial em 22 cidades brasileiras e na Argentina, e virtualmente através de uma live. As mulheres ocuparam as redes, praças, ruas, quadras, escolas, anunciando a Marcha de 2025.
“Vamos marchar para reivindicar e anunciar para a sociedade que modelo de nação nós queremos. Nós queremos uma nação centrada no Bem Viver, onde a vida é assegurada porque ela é um direito nosso. Vamos marchar por Reparação, porque esse país, essa nação nos deve uma reparação histórica”, assevera Naiara Leite, baiana, Coordenadora Executiva do Odara – Instituto da Mulher Negra e uma das lideranças responsáveis pela organização da Marcha.
Colocação também apontada por Terlúcia Silva, coordenadora da Abayomi – Coletiva de Mulheres Negras na Paraíba. “A gente não abre mão da reparação que o Estado brasileiro precisa pensar com urgência por todos os anos de escravização e todo o resquício da escravidão, que recaem sobre as mulheres negras. Essa é uma mobilização estratégica do ponto de vista da luta contra o racismo nesse país.”
País este, onde mulheres negras representam o maior grupo populacional, correspondendo a 28% da nação. E que, no entanto, permanecem alvo dos piores marcadores sociais, bem como vitimadas pelas diversas violências que impedem a elas o acesso a uma vida com pleno gozo de direitos, como reforçam os dados do último Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
De acordo com o relatório, mulheres negras permanecem sendo as maiores vítimas de feminicídio (63,9%). O contato com a violência, inclusive, começa logo cedo, neste país que falha gravemente na salvaguarda da infância de meninas negras. Negligência evidenciada através dos números que apontam que elas são os principais alvos de estupro no Brasil: 61,6% das vítimas tem até 13 anos e 52,2% são negras.
Reparação e Bem Viver
“A existência da escravidão pressupôs um aparato jurídico, político, econômico, que deu base e sustentação legal para a transformação de pessoas em mercadoria e para o desfazimento dos modos de ser e culturas milenários. Então, ainda que a abolição formal tenha chegado em 1888, vivemos diante do legado do tráfico transatlântico”, explica Tássia Mendonça, coordenadora de portfólio de equidade racial do Instituto Ibirapitanga. Ela deixa ainda um importante alerta: o movimento por reparações corre um grande risco de não alcançar o propósito de ruptura com esse legado, mas capturado por uma narrativa de inclusão pontual de pessoas negras em espaços delimitados de vantagens políticas e socioeconômicas. “Reparação não é sobre o acesso a bens, a recursos e espaços historicamente dominados pelas lógicas da branquitude. Pelo contrário, só será possível fazer justiça reparatória a partir do desfazimento da branquitude como lugar simbólico, político e material de concentração de poder e de definição de que humanidades são possíveis ou não.”, completa.
“Políticas de reparação no Brasil e na diáspora devem garantir a existência de direitos e a proteção da cidadania e do bem-estar de mulheres e meninas negras. Portanto, reparar é garantir sua existência com qualidade de vida e garantir a defesa de direitos já existentes, além de outros, que ainda necessitamos para viver em cidadania plena”, reforça Luciana Brito, historiadora e professora da Universidade Federal da Recôncavo da Bahia.
A 2ª Marcha de Mulheres Negras, assim como a primeira, tem o objetivo de aquilombar mulheres, colocando em prática a mandinga que permeia a filosofia ubuntu, “eu sou porque nós somos”. A Marcha é a expressão viva da coletividade como caminho concreto rumo ao Bem Viver e a Reparação, rompendo com a lógica de dominação vigente no país que nunca teve um compromisso concreto com a emancipação do povo negro, como apontam as palavras atravessadoras de Cleusa Silva, paulista, coordenadora da Casa Laudelina de Campos Melo.
“Marchamos por reparação econômica, histórica e geográfica, pelos mais de 380 anos de escravização colonial, pelo Bem Viver para garantir a vida das mulheres e da população negra e que a população originária esteja de pé, pelo direito à vida em toda a sua humanidade.”
Ao ser questionada sobre Bem Viver, a baiana Rita de Cássia Santa Rita, uma das fundadoras do Grupo de Mulheres do Alto das Pombas (Grumap), responde que acredita que essa “utopia de viver em uma sociedade fincada em relações harmoniosas”. “É uma sociedade em que o desenvolvimento econômico não cria impacto sobre o ambiente, não gera desigualdade social, racial, onde vivemos em equidade. É um bem-estar coletivo, a valorização das culturas tradicionais, a economia é solidária, a participação verdadeiramente democrática, como nunca essa sociedade brasileira viveu. Essa é a sociedade que o movimento de mulheres negras busca construir.”
Para Valéria Porto, da Central Regional Quilombola na Bahia, uma sociedade de Bem Viver é aquela que proporciona a inclusão a partir das especificidades de cada mulher negra. “Uma sociedade de Bem Viver é inclusiva e garante a vida das mulheres, sobretudo das mulheres negras. Nós mulheres negras quilombolas existimos e queremos viver.”
Abram os caminhos, que vem aí a 2ª Marcha Nacional de Mulheres Negras por Reparação e Bem Viver.