Por Andressa Franco*
No último dia 3 de outubro o deputado federal Allan Garcês (PP-MA) apresentou o Projeto de Lei 3797/2024, que tem como objetivo criar uma “bolsa vida” para famílias que resolverem adotar crianças cujo a mãe deseje realizar aborto. A proposta prevê um pagamento de um salário mínimo mensal por um período de um ano para a família adotiva, além da dedução do Imposto de Renda de despesas como aluguel. O projeto se soma as 101 proposições legislativas que buscam diminuir possibilidades do aborto legal e que tramitam no Congresso Nacional.
No último dia 28 de setembro, organizações de todo o país fizeram manifestações em defesa do direito ao aborto. A data marc o Dia da Luta pela Descriminalização e Legalização do Aborto na América Latina e Caribe.
No Brasil, dados da última pesquisa de âmbito nacional (PNA 2021) mostram que 1 a cada 7 mulheres já fez um aborto antes dos 39 anos, a maioria delas tendo realizado ainda na adolescência.
A criminalização da prática no Brasil empurra as mulheres, sobretudo negras, para práticas inseguras, realizadas na clandestinidade. Os dados apontam ainda, que o aborto permanece há décadas como uma das cinco causas de mortalidade materna, e a curetagem por aborto, o segundo procedimento obstétrico mais realizado no SUS.
“O aborto é praticado entre todas as classes sociais. Só que são as mulheres negras, pobres são as mais vitimadas e que vão precisar ser hospitalizadas em decorrência das condições de insegurança na qual o aborto é feito.”, ressalta Verônica Santos, integrante do Nós por Nós – Observatório de Justiça Reprodutiva do Nordeste, iniciativa do Odara – Instituto da Mulher Negra.
Aborto legal sob ameaça
No Brasil, o aborto é permitido desde o Código Penal de 1940, em caso de risco à vida da gestante ou quando a gravidez é resultante de estupro. Em 2012, o Supremo Tribunal Federal-STF estendeu este direito para gestações de fetos anencéfalos.
Nos últimos anos, a crescente influência de forças conservadoras e movimentos antiaborto agravam o cenário de violação dos direitos das mulheres. Através de bancadas na Câmara Federal, por meio de projetos de lei, eles buscam restringir ainda mais o direito ao aborto legal ou mesmo proibi-lo completamente.
De acordo com um levantamento do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA), temos atualmente no país 101 proposições legislativas que buscam diminuir possibilidades do aborto legal na legislação brasileira tramitando no Congresso Nacional.
“A mudança desse cenário seria que conseguíssemos eleger candidaturas comprometidas em garantir e defender o aborto legal já realizado no Brasil, a legislação já vigente. Comprometidos com os direitos das mulheres e com uma visão laica, inclusiva”, analisa Jolúzia Batista, assessora técnica do CFMEA. Ela explica que candidaturas que têm esse perfil, geralmente têm mais dificuldade de acessar recursos do fundo partidário. “Os partidos são refratários a esses temas, mesmo do campo da esquerda”, pontua.
Enquanto países como México, Colômbia e Argentina, por exemplo, tem avançado na descriminalização do aborto, o Brasil se vê sob o risco de retrocesso dos casos permitidos há mais de 80 anos no país. Em maio deste ano, por exemplo, a ONU chegou a cobrar o país sobre sua capacidade de garantir o acesso ao aborto legal nos casos permitidos por sua própria legislação.
Para Verônica, é inegável que estamos vivendo um cenário de retrocesso. O que atribuiu especialmente ao avanço da extrema direita brasileira nos últimos anos.
Para além dos PLs que buscam retroceder os direitos já estabelecidos, a doutoranda em saúde coletiva pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) se preocupa com o que chama de contrapoder que acontece nos serviços na ponta.
“Mesmo estabelecido em lei o acesso ao aborto legal, há uma batalha que se trava toda vez que uma mulher ou menina tenta acessar esse serviço porque a lei não tem sido cumprida. Justamente porque essas pessoas que estão na ponta entendem que podem atuar de forma superior ao que está posto na constituição”, pontua.
Verônica se refere especialmente aos serviços de saúde, quando o profissional se recusa a fazer o procedimento. Ou quando o procedimento acaba sendo judicializado por diversas razões, como a própria negativa do atendimento de hospitais ou médicos por questões pessoais, religiosas ou administrativas; quando a gravidez está em estado avançado; em casos de falta de infraestrutura e acesso ao procedimento, já que no Brasil há uma limitação no número de hospitais públicos que realizam abortos legais; e até mesmo quando se tratam de meninas menores de 14 anos – ou seja, casos de estupro de vulnerável – e são impedidas por responsáveis legais.
Um caso que exemplifica esse contrapoder tanto nos serviços de saúde quanto na Justiça, ganhou grande repercussão no Brasil em 2022, quando, em Santa Catarina, uma menina de 11 anos foi impedida de realizar um aborto após ser estuprada. A gestação tinha 22 semanas quando foi descoberta. Depois do aborto legal ser negado por um hospital em Florianópolis, a garota foi levada a um abrigo, onde foi mantida pela Justiça para evitar que fizesse o aborto autorizado. “Você suportaria ficar mais um pouquinho?”, questionou a Juíza Joana Ribeiro Zimmer na época, em vídeo que teve grande repercussão. A gestação só foi interrompida às vésperas de completar 29 semanas, quando o Ministério Público Federal expediu recomendação para que o Hospital Universitário de Florianópolis realizasse o procedimento.
“Há um retrocesso que se dá tanto institucionalmente através dessas proposições [projetos de lei], mas que acontecem cotidianamente na ponta dos serviços por essas figuras que tem o poder da caneta naquele momento”, ressalta a ativista, que lembra o atravessamento racial nestas decisões, já que as principais vítimas do estupro no Brasil são meninas negras.
Agenda é negligenciada no Nordeste
Se o número de PLs que tramitam no Congresso Nacional é alarmante, a situação não é muito diferente das câmaras estaduais do Nordeste. Um dossiê publicado pelo Nós por Nós apresenta um levantamento inédito que aponta os projetos tramitados na região acerca do tema, entre os anos de 2017 e 2022.
O relatório conclui que a lacuna e invisibilidade dos dados sobre justiça reprodutiva no Brasil, em especial na região, têm sido uma questão crítica que afeta a compreensão e a formulação de políticas relacionadas aos direitos reprodutivos das mulheres.
A situação é ainda mais grave, ao observar que a região Nordeste foi a que mais teve casos de gravidez entre crianças e adolescentes de 10 a 14 anos na última década: foram 61,2 mil, segundo dados do Sistema de Informação de Nascidos Vivos.
Para Verônica, o assunto é totalmente negligenciado pelos parlamentares. A pesquisa também revela que no período da pesquisa, a média de proposições relacionadas a direitos sexuais e reprodutivos foi de apenas 1,5 por estado.
“Esse é um número muito assustador que lança luz sobre um processo realmente de negligência das questões da saúde da mulher. É importante também dizer que dos PLs encontrados nenhuma proposição fala especificamente sobre as variáveis que atravessam os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres negras.”
A influência religiosa
O debate sobre aborto voltou a ganhar centralidade em junho deste ano, quando a Câmara dos Deputados tentou aprovar o PL 1904, também conhecido como PL da Gravidez Infantil e PL do Estupro, que equipara o aborto ao crime de homicídio. A proposta gerou grande mobilização da sociedade civil, levando ao arquivamento do texto.
O autor do projeto é Sóstenes Cavalcante (PL), líder evangélico na Assembleia de Deus, teólogo, além de ter presidido da chamada Bancada da Bíblia, que historicamente tem apoiado e proposto ainda mais restrições no acesso ao aborto. Um exemplo é a PEC 181/2015, que originalmente tratava da ampliação da licença-maternidade para mães de bebês prematuros, mas foi modificada para incluir a defesa da vida “desde a concepção”, o que poderia, na prática, inviabilizar o aborto até mesmo em casos já permitidos pela lei.
O grupo também tem atuado para barrar projetos que buscam ampliar as condições legais para o aborto, apoiando projetos como o Estatuto do Nascituro. Além de ter pressionado o STF contra uma ação que pedia a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação.
“Talvez esse seja um dos principais obstáculos que nós temos no momento para o avanço dessa agenda”, afirma Verônica. A ativista aponta ainda estratégias utilizadas por esse grupo para fazer propostas como essas avançar. “Às vezes, não se coloca ‘aborto’, mas ‘defesa a vida’, ‘valores da família’ e quando você vai ler do que se trata, é dessa questão. Há um sistema bem orquestrado.”
A despeito da laicidade do Estado, recentemente foi aprovada também a criação da Frente Parlamentar Católica, que visa “defender os princípios éticos, morais e doutrinários da igreja católica”.
“É preciso dizer que o Brasil é um país conservador e muito conduzido por essa ideia religiosa. A igreja tem uma influência muito grande sobre a vida das sociedades latino-americanas, o que inclui essa questão”, avalia Letícia Rocha, doutoranda em ciências sociais pela UNIFESP e integrante da organização Católicas Pelo Direito de Decidir.
Para ela, desde o avanço dos debates sobre saúde sexual e reprodutiva, especialmente após as Conferências sobre População e Desenvolvimento (Cairo, 1994) e IV Conferência Mundial Sobre a Mulher (Beijing, 1995), a igreja entrou em um “período de defesa com relação ao avanço dessas questões que vão sendo muito fortemente conduzidas pelo movimento feminista pelo mundo e aqui no Brasil”.
Caminhos para avançar
Apesar desse cenário, as organizações de mulheres seguem se articulando, compartilhando estratégias e aprendizados. O que, na avaliação de Letícia, é um importante caminho para avançar.
“Não estamos estagnadas vendo essas violências, estamos fazendo ativismo em meio a tudo isso. A gente acredita em um país que seja verdadeiramente laico, que não haja interferência de religiosos em assuntos que dizem respeito ao Estado”. Estabelecer o diálogo e promover informação de qualidade são caminhos que defende para resultados a longo prazo.
Verônica defende que os dados alarmantes que temos em relação ao aborto e à violência sexual contra meninas, “é decorrente de passos anteriores que falharam”. Incluindo a ausência de uma política de educação sexual. “Se a gente não tem uma política de educação sexual que chegue nas escolas, de forma popularizada nos serviços de saúde, vamos ter esse cenário.”
Uma necessidade fundamental destacada por ela nesse sentido, é a reforma do Plano Nacional da Educação, para que seja inserida a educação sexual.
“É preciso enfrentar a narrativa de que a educação sexual leva à iniciação da vida sexual precoce. A educação sexual é um mecanismo de proteção, promoção e prevenção das diversas questões que atravessam o universo dos direitos sexuais e reprodutivos”, finaliza.
*com contribuições de Elizabeth Souza