Chacina do Cabula completa 10 anos sem julgamento: “O estado da Bahia não tem interesse de julgar esse caso com imparcialidade”, afirma advogado

A chacina aconteceu no dia 6 de fevereiro de 2015, quando nove policiais militares mataram 12 jovens negros em circunstâncias que apontam para execução

Por Andressa Franco

De quanto tempo o judiciário baiano precisa para prestar contas à sociedade, e levar um desfecho às famílias dos 12 jovens negros assassinados pela Polícia Militar da Bahia, na Vila Moisés, localizada no Cabula, bairro periférico de Salvador?

10 anos ainda não foram o suficiente, já que esse é o tempo que se passou desde o dia 6 de fevereiro de 2015, quando nove policiais militares mataram 12 jovens com idade entre 15 e 28 anos que, segundo a polícia, eram suspeitos de integrar uma quadrilha que planejava roubar um banco da região. 

No entanto, uma investigação do Ministério Público sobre o caso, conhecido como Chacina do Cabula, concluiu que a ação dos agentes foi uma execução motivada por vingança. Isso porque, 10 dias antes, um tenente foi atingido com um tiro no pé durante uma operação no bairro. Foram 143 tiros, 88 certeiros, a maioria deles em um ângulo que sugere que os jovens estavam rendidos e foram executados.

Na época, o então governador e atual ministro da Casa Civil, Rui Costa (PT), chegou a comparar a ação dos policiais como a “de um artilheiro em frente ao gol”. Além disso, o então secretário de Segurança Pública, à frente da pasta desde 2011, era Maurício Teles Barbosa, que foi exonerado em 2020 após ser investigado pela Operação Faroeste, que apurava um esquema de venda de decisões judiciais. Seu posicionamento na época da chacina foi de que preferia “acreditar na versão dos meus policiais até que algum outro fato apareça”.

Falta de celeridade

Foram muitas as etapas atravessadas pelo processo que julga os policiais responsáveis, começando por uma absolvição sumária meses depois do crime, a anulação dessa sentença anos depois e a retomada das audiências de instrução e oitivas das testemunhas apenas no ano passado. Mas a passos muito lentos, de modo que seguimos sem agendamento da sessão do júri, e os autores dos assassinatos seguem trabalhando.

“É um absurdo que um ano depois da retomada das audiências não se tenha encaminhado um tribunal de júri. Porque ao longo dos nove anos anteriores já existia muita prova produzida e suficientemente elencada. Um caso que ganhou dimensão pública, que não existe dúvida sobre a torpeza da motivação”, critica Wagner Moreira, coordenador do IDEAS – Assessoria Popular, que acompanha o caso.

Para ele, o maior erro da condução do processo no decorrer dessa década, foi a não federalização do caso.

“É explícito que o estado da Bahia não tem condições de julgar esse caso com imparcialidade. Mais do que isso, não tem interesse de que chegue à instância do tribunal de júri. Existe um pacto de impunidade para que essa polícia continue servindo aos interesses de governos”, avalia.

O processo corre em segredo de justiça, e a última movimentação antes da retomada das oitivas havia sido em fevereiro de 2019, quando a Procuradoria-geral da República recorreu da negativa do Superior Tribunal de Justiça (STJ) a respeito justamente da federalização do caso. A PGR havia solicitado a federalização em 2016, argumentando que havia fundados indícios de violência policial na operação, e que as investigações do caso realizadas na Bahia não tinham a isenção necessária, tendo havido até mesmo ameaças ao promotor de Justiça responsável pelo caso, que pediu afastamento.         

Além disso, os próprios moradores do bairro e familiares das vítimas já chegaram a relatar que os policiais que participaram da chacina continuaram atuando na área e fazendo ameaças. “Os policiais continuam aqui atuando, são as mesmas guarnições e, ao longo desses sete anos, no período de fevereiro, as ações se intensificam […] um dia antes morre alguém, um dia antes eles invadem o bairro, inclusive, relatando isso: ‘olha, eu participei da chacina do Cabula’ ou ‘vou matar vocês em grupo’… Essa tem sido a rotina nesses bairros”, desabafou uma moradora, que preferiu não se identificar, ao portal Alma Preta.

Os policiais acusados pela chacina foram denunciados pelo Ministério Público do Estado da Bahia (MP-BA) em maio de 2015. Contudo, o juiz que a recebeu, Vilebaldo José de Freitas Pereira, da 2ª Vara do Júri, saiu de férias no mês seguinte, e sua substituta, a juíza Marivalda Almeida Moutinho, tomou a decisão monocrática de inocentar os agentes, passados apenas cinco meses do crime. 

Levou dois anos para que o Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA) anulasse a sentença que os inocentou, conduzindo os policiais militares novamente ao banco dos réus, devido à intervenção do Ministério Público, da Defensoria, da Anistia Internacional e com a pressão do movimento negro. Por conta dessa anulação, o STJ entendeu que não havia mais fatores que implicassem na incapacidade das autoridades locais julgarem o caso, negando assim a federalização.

A atualização mais recente do processo penal do caso da Chacina do Cabula, foi quando a ação voltou a tramitar na Vara do Júri de Salvador, levando ao agendamento de uma audiência de instrução e julgamento, para oitivas das testemunhas dos PMs acuados das mortes, para o dia 1º de março de 2024. Sendo que as testemunhas de acusação já foram ouvidas. 

“A não federalização acarreta tudo isso. Retomar a oitiva de testemunhas nove anos depois é acabar com a leitura das testemunhas do ponto de vista da memória e da compreensão do processo”, ressalta Wagner. Ele explica que ainda que para os familiares e testemunhas, o trauma tenha guardado as informações e a riqueza dos detalhes, é muito complexo para a estratégia de acusação voltar a coletar os depoimentos. “Isso fala sobre um erro absurdo que foi reiterado pelo TJ-BA.”

O Ministério Público da Bahia informou através de nota que foi designada pela Justiça a realização de uma audiência no dia 18 de março, na qual deverão ser ouvidas as testemunhas de defesa e interrogado os acusados.

Luta pela memória das vítimas

A despeito de toda a morosidade, o caso não caiu em esquecimento pela comunidade, ativistas, amigos e familiares das vítimas. Quando a chacina completou nove anos, a campanha Reaja ou Será Morta, Reaja ou Será Morto, de Salvador, organizou um ato em solidariedade e memória das 12 vítimas: Evson Pereira dos Santos, Ricardo Vilas Boas Silva, Jeferson Pereira dos Santos, João Luis Pereira Rodrigues, Adriano de Souza Guimarães, Vitor Amorim de Araújo, Agenor Vitalino dos Santos Neto, Bruno Pires do Nascimento, Tiago Gomes das Virgens, Natanael de Jesus Costa, Rodrigo Martins de Oliveira e Caique Bastos dos Santos. 

Memorial lembra morte de jovens em Vila Moisés, no Cabula — Imagem: Reaja – Organização Política

Meses depois, em maio de 2024, um dos policiais envolvidos na chacina foi preso, mas não pelas mortes cometidas no Cabula, e sim por ter a imagem vinculada a um post político. Lázaro Alexandre, que se tornou influencer e acumula mais de 160 mil seguidores no Instagram, ficou preso por 15 dias, depois que uma apuração de conduta disciplinar da PM-BA constatou que ele e outro PM, Ivan Leite, também influencer, “violaram preceitos éticos e disciplinares contidos no Estatuto da Polícia Militar da Bahia”.

O post político em questão era um card publicado pelo perfil @BolsoRoma com as fotos dos dois policiais, pedindo votos para Jair Bolsonaro e João Roma, candidato a governador da Bahia em 2022. O próprio Lázaro foi candidato a vereador de Salvador nas eleições de 2024 pelo PSDB, com apoio do prefeito Bruno Reis (União Brasil) e do secretário de Governo da prefeitura, Cacá Leão (Progressistas).

Para Wagner, a conquista desse alcance e popularidade nas redes, reflete a complacência da sociedade. “Nenhuma penalidade veio. Eles apenas ficaram mais conhecidos para aqueles que acreditam na letalidade como forma de controle social”, completa.

Ao todo, nove agentes estão como réus e todos aguardam julgamento em liberdade: Julio Cesar Lopes Pitta, Robemar Campos de Oliveira, Antonio Correia Mendes, Sandoval Soares Silva, Marcelo Pereira dos Santos, Lázaro Alexandre Pereira de Andrade, Dick Rocha de Jesus, Isac Eber Costa Carvalho de Jesus e Lucio Ferreira de Jesus. 

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