Por Karla Souza
No coração do Vale do Javari, na fronteira do estado brasileiro do Amazonas com o Peru e a Colômbia, território do povo indígena Korubo, uma matriarca segurava um aparelho portátil, do tamanho da palma da mão. Do alto-falante, saía a voz de um pastor estrangeiro, traduzida: “Vejamos o que Paulo diz ao considerar sua própria vida em Filipenses, capítulo 3, versículo 4: ‘Se alguém pensa que tem motivos para confiar na carne, eu tenho mais’”. Era a Bíblia, em áudio, atravessando a política de não contato que vigora no país há quase 40 anos.
O dispositivo foi identificado como Messenger, equipamento alimentado por energia solar, capaz de funcionar mesmo sem eletricidade ou internet. Segundo reportagem publicada no último dia 27 de julho pelos jornais The Guardian e O Globo, sete desses aparelhos foram relatados no território Korubo, embora apenas um tenha sido encontrado pela investigação. O equipamento transmite passagens bíblicas e palestras religiosas. A distribuição parte da organização batista In Touch Ministries, sediada em Atlanta, nos Estados Unidos.
Em 2021, o diretor de operações da In Touch Ministries, Seth Grey, relatou ao O Globo que entregou pessoalmente 48 unidades do Messenger ao povo Wai Wai, que vive na Amazônia brasileira, mas não está entre os povos isolados. À reportagem do The Guardian, o mesmo dirigente confirmou que outras organizações missionárias têm transportado o dispositivo para áreas protegidas, mesmo com as restrições legais existentes.

Desde 1987, a política de não contato da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) estabelece que apenas os próprios povos indígenas podem decidir se e quando estabelecer contato com o mundo exterior. A norma visa preservar territórios, culturas e vidas de comunidades sem imunidade a doenças comuns. O Brasil possui atualmente 114 registros de povos isolados, dos quais 29 foram confirmados pela Funai.
Criado para ser durável, cada Messenger pode atingir até 20 pessoas por vez. O conteúdo religioso que veicula não depende da mediação de um missionário. Ao contrário, é o próprio aparelho que assume esse papel.
Essa não é a primeira vez que grupos missionários tentam violar a política de não contato. Em 2020, o missionário americano Andrew Tonkin foi denunciado à Funai, ao Ministério Público Federal e à Polícia Federal após usar hidroaviões para mapear trilhas e tentar entrar ilegalmente em áreas do Vale do Javari. Conforme O Globo, Tonkin é ligado à Missão Novas Tribos do Brasil, organização que atua no país desde os anos 1950 promovendo a evangelização de povos indígenas.