Generic selectors
Exact matches only
Search in title
Search in content
Post Type Selectors

A batalha judicial da advogada negra que luta por uma vaga de desembargadora no TJPE

Após ter sua candidatura reconhecida, validada e amplamente votada, a advogada Ana Paula Azevedo é quase excluída da lista do TJPE

Por Catiane Pereira

Desde 2024, a advogada Ana Paula da Silva Azevêdo enfrenta uma batalha jurídica para garantir o direito de disputar a vaga de desembargadora no Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE). Ela é a única mulher negra validada por banca de heteroidentificação na disputa.

Mesmo após ter sua candidatura reconhecida pela OAB-PE, conquistar mais de 5 mil votos da advocacia e ser a quarta mulher mais votada no processo, Ana Paula foi alvo de decisões judiciais que tentaram retirá-la da lista sêxtupla, conjunto de seis nomes que serão enviados ao TJPE e de onde sairá a nova nomeação para o cargo de desembargador(a). Pela primeira vez, a eleição para desembargador(a) do estado contou com regras que previam paridade de gênero e cotas raciais

O processo seletivo

O processo se dá através do quinto constitucional, um dispositivo da Constituição que reserva um quinto das vagas nos tribunais para membros do Ministério Público e advogados, com a finalidade de promover a renovação e diversificação do Poder Judiciário.

“Batalha” de liminares

Uma das polêmicas começou com a candidatura de Diana Câmara, que foi reprovada duas vezes pela banca de heteroidentificação, etapa obrigatória para concorrer como cotista racial no processo. Mesmo assim, ela obteve uma liminar proferida por um Conselheiro Federal da OAB que lhe permitiu seguir na disputa como cotista racial sub judice (estar no concurso de forma provisória, dependendo de uma decisão judicial). Em seguida, decisões da Justiça Federal e do Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF5) confirmaram sua permanência como cotista, após ação movida por Taciana de Castro, candidata autodeclarada branca, mesmo a candidata Diana tendo chegado a lista pela ampla concorrência e o próprio Conselho Federal ter revogado a sua condição de cotista, em detrimento da única mulher negra validada pelo processo: Ana Paula, para que Taciana pudesse ser incluída em seu lugar

“Esse processo não discute se eu serei a nova desembargadora. Ele discute o direito de uma mulher negra ser considerada uma opção, conforme o que já estava previsto no edital”, afirma Ana Paula. A exclusão da lista aconteceu apesar de sua aprovação pela banca da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Enquanto isso, a paridade de gênero foi respeitada integralmente para garantir a presença de homens na lista.

“Quando pessoas negras vão chegando, as linhas de chegada vão sendo afastadas. São criados novos obstáculos e desafios”, diz a advogada.

Após uma Reclamação Constitucional enviada por Ana Paula, em decisão liminar proferida no início de julho, o ministro do STF Alexandre de Moraes reconheceu que a exclusão de Ana Paula contrariava a jurisprudência, ferindo o princípio da legalidade e o direito à ação afirmativa. A Corte validou a obrigatoriedade da aprovação por banca de heteroidentificação e reafirmou a constitucionalidade das cotas raciais no Judiciário. 

“Essa decisão é simbólica como uma correção de uma injustiça. Ela reafirma o reconhecimento da constitucionalidade das políticas afirmativas raciais no primeiro quinto constitucional com previsão de paridade de gênero e cota racial em Pernambuco”, afirma Ana Paula.

Filha de uma família sem histórico na advocacia, pernambucana, advogada, professora da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP) e doutoranda em Direito pela UFPE, Ana Paula destaca que sua candidatura nasceu da força coletiva do movimento negro, não de recursos ou estrutura de campanha. 

Ana Paula recebeu apoio de participantes do Congresso Nacional de Juristas Negras, que divulgaram em 25 de julho uma carta de apoio à advogada, denunciando o racismo institucional no Sistema de Justiça brasileiro. As autoras afirmam que a ausência de mulheres negras em tribunais superiores não se deve à falta de qualificação, mas a barreiras raciais e de gênero que mantêm o Judiciário distante da diversidade da população. 

“A diversidade constitui valor fundamental da República, conforme estabelece nossa Constituição Federal. Contudo, tanto nas indicações discricionárias do Executivo quanto em decisões judiciais, observamos constante negligência a esse princípio”, afirma trecho do documento.

Procurada pela Afirmativa, a candidata Diana Câmara afirmou que se reconhece “com plena convicção e pertencimento” como uma mulher parda, identidade que, segundo ela, está registrada em seus documentos oficiais e é parte de sua vivência pessoal, familiar e social. Ela afirmou que não é de sua autoria ações judiciais sobre o caso e que entrou na lista pela ampla concorrência, o que, em sua avaliação, permitiu que outra candidata cotista também fosse contemplada.

Ela relatou que, no processo eleitoral da OAB-PE, foi reprovada pela banca de heteroidentificação da UFPE em duas ocasiões, ambas por 3 votos a 2, o que, para ela, “evidencia a existência de dúvida razoável sobre meu fenótipo, inclusive entre os próprios avaliadores”. Diana informou que apresentou um laudo dermatológico, certidões da Polícia Civil e da Polícia Federal e fotos pessoais para sustentar sua autodeclaração, e que, com base nesses elementos, o Conselho Federal da OAB concedeu medida liminar que lhe permitiu disputar como cotista.

Cronologia da odisséia jurídica

  • 2022 – OAB de Pernambuco reformula seu regimento para assegurar paridade de gênero e cotas raciais no processo de formação das listas sêxtuplas destinadas ao Quinto Constitucional (Regimento interno da OAB/PE Art. 141). A nova regra prevê 50% de mulheres e, no mínimo, 30% de pessoas negras entre os nomes indicados. A autodeclaração racial passa a ser validada por banca de heteroidentificação.
  • Junho de 2024: Após a aposentadoria do desembargador Itabira de Brito, houve a publicação da Resolução nº 100/2024, que regulamentou o processo seletivo, incluindo critérios raciais e de gênero, além de convênio com a UFPE para conduzir a banca de heteroidentificação.
  • Setembro de 2024: Candidaturas foram registradas. Dentre as pessoas inscritas, apenas duas — Ana Paula da Silva Azevêdo e Paulo Artur Monteiro — foram aprovadas na primeira fase da banca de heteroidentificação. 
  • Outubro de 2024: Pessoas reprovadas tentaram reverter a decisão da banca. A Comissão Eleitoral da OAB/PE desconsiderou o parecer técnico da UFPE e aprovou as autodeclarações dos candidatos: Diana Patrícia Lopes Câmara, Luciana da Fonseca Lima Brasileiro, Luzia Helena de Valois Correia, Frederico Preuss Duarte e Pedro Avelino de Andrade, permitindo a participação deles como cotistas.
  • Outubro de 2024: A decisão foi contestada por Ana Paula e outros dois candidatos validados pela banca.O Conselho Estadual da OAB/PE restabeleceu a obrigatoriedade da validação pela banca de heteroidentificação. Com isso, os reprovados passaram a concorrer apenas pela ampla concorrência.
  • Outubro de 2024: A candidata Diana Câmara, reprovada em ambas as etapas da banca, conseguiu uma liminar no Conselho Federal da OAB que lhe permitiu participar como cotista “sub judice” da votação — ou seja, estar no concurso de forma provisória, dependendo de uma decisão judicial. 
  • Novembro de 2024: As eleições aconteceram no dia 18 de novembro. Ana Paula da Silva Azevêdo teve votação expressiva: foi a quinta colocada no geral e a quarta entre as mulheres. A lista sêxtupla respeitou os critérios raciais e de gênero e foi homologada no dia 21 de novembro. 
  • No entanto, na mesma noite, a candidata Taciana de Castro acionou a Justiça Federal para retirar Ana Paula e reconhecer Diana Câmara, mesmo já integrando a lista pela ampla concorrência, sem aprovação da banca e com a liminar revogada. A decisão atendeu ao pedido, retirou Ana Paula e abriu espaço para que Taciana, candidata branca, fosse incluída na lista.
  •  Abril de 2025: O Conselho Federal da OAB julgou improcedente o recurso que incluía Diana Câmara na lista sêxtupla e reafirmou a legitimidade das bancas de heteroidentificação como condição para o acesso às cotas raciais. 
  • Maio de 2025: Mesmo assim, no mês seguinte, o TRF5 mudou de posição e, por dois votos a um, determinou novamente a exclusão de Ana Paula da lista sêxtupla, gerando indignação em setores da advocacia negra e no meio jurídico.
  • Julho de 2025: Ana Paula Azevêdo levou o caso ao STF via Reclamação Constitucional. O processo foi distribuído para o Ministro Alexandre de Moraes, que concedeu liminar suspendendo os efeitos da decisão do TRF5 e garantindo a permanência da advogada na lista sêxtupla. O STF reafirmou a constitucionalidade das cotas raciais e reconheceu a validade das bancas de heteroidentificação.
Imagem: Fabio Rodrigues Pozzebom/ Agência Brasil.

Agora, o processo aguarda manifestação final da OAB-PE, do TRF5 e da Procuradoria-Geral da República. O caso se tornou emblemático por escancarar as resistências à aplicação de políticas afirmativas nos espaços de poder e por destacar o quanto mulheres negras ainda precisam lutar para ocupar lugares de decisão na estrutura do Judiciário brasileiro.

Negros seguem sub-representados no Judiciário brasileiro

Apesar de representarem a maioria da população brasileira, pessoas negras ainda enfrentam uma profunda sub-representação nos espaços de poder. Segundo o Censo do Poder Judiciário de 2023, realizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), apenas 14,25% das magistradas e magistrados se autodeclaram negros. 

Em Pernambuco, o cenário é igualmente desigual. O Tribunal de Justiça do Estado (TJPE), criado há mais de dois séculos, nunca teve uma mulher negra em sua composição. Atualmente, conta com apenas um desembargador que se autodeclara negro entre 57 profissionais. Essa ausência histórica escancara a urgência de medidas afirmativas capazes de reparar desigualdades que se mantêm mesmo diante de políticas públicas.

“Tem inúmeras estudantes negras, advogadas negras, que a partir deste caso também podem se sentir inspiradas a concorrer às próximas eleições do Quinto Constitucional e a outras oportunidades”, afirma Ana Paula. Para ela, sua permanência na lista sêxtupla é mais do que uma conquista individual, é também  um marco simbólico e coletivo que pode abrir caminhos para outras mulheres negras no Judiciário. 

Compartilhar:

.

.
.
.
.

plugins premium WordPress