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“O encarceramento em massa é uma política de controle racial, e negar a essas pessoas à educação e literatura é perpetuar essa exclusão”, afirma diretor de comunicação da Academia Brasileira de Letras do Cárcere

O projeto nasceu em 2023 e tem levado dignidade e voz a pessoas privadas de liberdade e egressos por meio da escrita
Imagem: Divulgação

Por Elizabeth Souza

A literatura como fator de transformação social. É através dessa premissa que a Academia Brasileira de Letras do Cárcere (ABLC) busca levar dignidade e protagonismo a pessoas privadas de liberdade e egressos do sistema prisional, buscando garantir que tenham o direito de ter suas obras publicadas. Criada em 2023, a partir da iniciativa do desembargador aposentado Siro Darlan, a ABLC teve sua fundação oficial em 2024. 

“Na minha visão, o sistema prisional brasileiro é um dos maiores retratos do racismo estrutural”, diz Jota Carvalho, diretor de Comunicação da ABLC, em entrevista à Revista Afirmativa. Análise corroborada pelos dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2025. O relatório revelou que, em  2024, o Brasil registrou 909.594 pessoas privadas de liberdade, correspondendo a um aumento de 6,3% em relação ao ano anterior. Desse total, 94% são homens e 68,7% negros. 

“O encarceramento em massa é uma política de controle racial, e negar a essas pessoas o acesso à educação, à cultura e à literatura é perpetuar essa exclusão”, reitera Jota. 

Em um ambiente de superlotação, vulnerabilidade e de corriqueiras investidas contra os direitos humanos, a Academia Brasileira de Letras do Cárcere surge como ponte rumo a caminhos de esperança e de humanização oferecendo aos indivíduos que integram o projeto o direito de se expressarem e darem nomes às suas dores, desejos e sonhos. 

Revista Afirmativa [RA]: Qual a relação que a ABLC busca criar com pessoas privadas de liberdade através da literatura?

Jota Carvalho [JC]: A ABLC busca criar uma relação de pertencimento e valorização. Através da literatura, pessoas encarceradas encontram um canal legítimo de expressão, um lugar onde sua voz e sua experiência são reconhecidas como patrimônio cultural. A escrita se torna um instrumento de resgate da autoestima, de reflexão e também de reinserção social.

RA: Como acontece o projeto nas penitenciárias? Há outros tipos de iniciativas?

JC: Nas penitenciárias, o projeto acontece principalmente por meio de oficinas de leitura e escrita, rodas de conversa literárias e acompanhamento das produções de textos e livros. Além disso, a ABLC promove cerimônias de posse simbólicas, reconhecendo oficialmente os novos “imortais”. Há também iniciativas externas, como palestras, participação em feiras literárias e parcerias com instituições culturais e educacionais.

RA: Como vocês observam o papel da literatura enquanto fator de transformação social?

JC: Eu vejo a literatura como uma das ferramentas mais potentes de transformação social. Ela abre horizontes, cria possibilidades de reflexão crítica e permite que pessoas marginalizadas ocupem um espaço de protagonismo cultural. Quando alguém em situação de cárcere escreve, está não apenas contando a própria história, mas também questionando o sistema, produzindo memória e construindo alternativas de futuro.

RA: Você pode contar algum exemplo de vida encarcerada que foi transformada através da ABLC?

JC: Um exemplo marcante é o do acadêmico Fábio da Hora Serra, conhecido como “Sagat”. Ele passou 12 anos preso e, nesse período, transformou sua trajetória escrevendo sua autobiografia ‘O Bandido que Virou Artista’. A literatura lhe permitiu reconstruir sua identidade e hoje ele é reconhecido como autor e acadêmico da ABLC.

RA: Como se dá o processo de criação de livro através da ABLC? Já teve algum processo de publicação literária?

JC: O processo começa dentro das prisões, com a escrita em cadernos ou folhas avulsas. Esses textos são organizados, revisados e avaliados pela comissão da Academia. Alguns viram livros publicados de forma independente ou em parceria com editoras parceiras. Já tivemos casos de publicações concretizadas, como os livros de Marcinho VP.

RA: Atualmente, quais são os impeditivos para que pessoas encarceradas possam criar/publicar livros?

JC: O maior impeditivo é a burocracia e a censura institucional. Muitas vezes, os manuscritos são barrados pela administração penitenciária sob a justificativa de ‘segurança’. Além disso, há a dificuldade de acesso a materiais básicos, como papel e caneta, e a falta de políticas públicas que incentivem a produção cultural no cárcere.

RA: Tem algum caso de impedimento de publicação de livros feitos a partir da ABLC? Qual?

JC: Sim. O exemplo mais conhecido é o de Marcinho VP, cujo livro ‘Preso de Guerra’ enfrentou vários obstáculos para ser publicado. As autoridades penitenciárias tentaram impedir a circulação da obra, alegando que ela poderia ‘fazer apologia ao crime’. Na verdade, o que o livro fazia era denunciar as violações dentro do sistema prisional.

RA: Quais desafios vocês enfrentam para manter o projeto funcionando?

JC: Os maiores desafios são a falta de recursos financeiros, a ausência de apoio institucional consistente e a resistência de parte da sociedade, que ainda não enxerga o encarcerado como um sujeito de direitos. Além disso, há a dificuldade de garantir segurança e continuidade nas ações dentro das penitenciárias.

RA: Quais as perspectivas de futuro para a ABLC?

JC: As perspectivas são de expansão e fortalecimento. Queremos ampliar o número de cadeiras ocupadas, levar oficinas literárias para mais unidades prisionais, criar parcerias com editoras e universidades e garantir que cada acadêmico possa ter suas obras publicadas. Também buscamos reconhecimento nacional e internacional.

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