E se Anastácia falasse? Livro reúne contos de mulheres negras privadas de liberdade na Bahia

A iniciativa é fruto do Projeto Abolicionista Corpos Indóceis e Mentes Livres, que há 15 anos promove oficinas de literatura no sistema prisional baiano
Integrantes do projeto Corpos Indóceis e Mentes Livres durante lançamento do livro Se Anastácia Falasse / Imagem: Divulgação

Por Andressa Franco

Você já viu o rosto dela. Olhos vítreos, expressão silenciosa, mas acusatória, impossível de esquecer. A máscara de ferro cobrindo boca e queixo, símbolo de uma violência que atravessa séculos. O retrato conhecido como “Escrava Anastácia” está presente em livros de história, exposições, camisetas, postagens de denúncia. Agora, atravessa também as grades da Penitenciária Feminina do Estado da Bahia. É o rosto dela – em uma nova versão, sem a mordaça – que estampa a capa do livro Se Anastácia Falasse, lançado no último 22 de maio dentro do próprio presídio. A publicação reúne uma coletânea de contos escritos por mulheres negras encarceradas, fruto de oficinas de criação literária conduzidas pelas professoras Denise Carrascosa e sua filha Beatriz Carrascosa França. 

A obra, publicada pela Editora Ogum’s Toques Negros, dá continuidade ao trabalho do Projeto Abolicionista Corpos Indóceis e Mentes Livres, que há 15 anos atua dentro do sistema prisional baiano como forma de remissão de pena e, sobretudo, de afirmação de existência. Na ocasião, foi concedido também o 3º Prêmio Literário Abolicionista Maria Firmina dos Reis a duas mulheres negras e um homem trans negro, sentenciados e privados de liberdade. 

Livro se Anastácia Falasse reúne uma coletânea de contos escritos por mulheres negras encarceradas / Imagem: Divulgação

A professora de literatura e feminista negra abolicionista Denise Carrascosa coordena esse que é um projeto de extensão da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e que já mobilizou escritoras como Conceição Evaristo e ativistas como Angela Davis. Além de render a criação da Biblioteca Abolicionista Maria Firmina dos Reis no presídio feminino. Em entrevista para a Afirmativa, ela conta a origem da iniciativa, as tentativas de silenciamento do Estado e como a literatura se relaciona com o abolicionismo penal.

“Se Anastácia Falasse” tem como conselheiras editoriais do Selo Corpos Indóceis e Mentes Livres: Beatriz Carrascosa França, Bruna Barros, Denise Carrascosa França, Florentina Souza, Luciany Aparecida, Mel Adún e Patrícia Freitas. Edição de Denise Carrascosa e Mel Adún. Projeto Gráfico de Dadá Jaques e Guellwaar Adún. Arte da Capa e Direção de Arte de Yhuri Cruz. Revisão e Digitação de Beatriz Carrascosa França. Os livros podem ser adquiridos pelo site da Editora Ogum’s.

Revista Afirmativa: Pode começar resgatando as motivações que levaram à criação do projeto Corpos Indóceis, Mentes Livres?

Denise Carrascosa: O projeto é criado em 2010, após a defesa da minha tese de doutorado na UFBA. Nela eu pesquiso como a literatura que vem das prisões está produzindo uma libertação no campo da escrita, da linguagem e da subjetividade das pessoas que são assujeitadas no Brasil, no pós-Carandiru, a partir da década de 1990, ou seja, no pós-ditadura militar. Como essas pessoas estão assujeitadas às técnicas de tortura e de opressão do sistema prisional, vinculadas às questões de raça. Em 2009, já enfrentávamos aquela curva ascensional de encarceramento feminino que se dá com a promulgação e vigência da Lei de Drogas. Minha tese detecta a publicação de escritos de homens, inclusive homens negros, mas não de mulheres escritoras que estivessem presas, principalmente negras. Então vou a campo para a Penitenciária Feminina do Estado da Bahia, e crio um projeto de extensão como professora do curso de letras da UFBA. Como ativistas abolicionistas, a gente precisava entender o que estava acontecendo e estabelecer solidariedade ativa com as pessoas que estavam sendo alvo desse processo de superencarceramento. Eu nomeei o grupo Corpos em Indóceis para estabelecer um debate com a filosofia de Foucault, que dizia que as pessoas, ao entrarem no sistema prisional, passam por um processo de docilização. Mas desde a leitura que eu fiz na tese de doutorado, dos textos das pessoas que estavam presas, eu percebia que não. Essas pessoas, através dos seus escritos, demonstravam que a técnica prisional oprimia, subjugava, torturava, mas não docilizava suas vontades de liberdade. 

Professora Denise Carrascosa / Imagem: Reprodução Redes Sociais

R.A.: O que mudou nesses 15 anos de atuação — na estrutura, na percepção institucional e, sobretudo, na escuta e na produção das mulheres participantes?

D.C.: Ao longo do projeto a gente foi entrando em contato com o sistema de opressões brutal que aquelas mulheres viviam no cárcere, e entendeu que era preciso denunciar. Então, a gente foi radicalizando a nossa relação com o Estado, num sentido feminista-negro-abolicionista. Isso resultou na suspensão do projeto por três meses em 2017, porque fizemos uma performance que se chamava Não Sou Bicho, Sou Mulher, que denunciou a torturacontra as mulheres presas. Até que no Julho da Pretas de 2017, em uma conferência na reitoria da UFBA, a filósofa abolicionista Angela Davis reitera a denúncia que fizemos e cobra o retorno do projeto. Então a gente consegue, depois de uma reunião com a Secretaria de Administração Penitenciária, em que a própria Conceição Evaristo estava presente. Depois de radicalizar nosso processo de enfrentamento à violência carcerária, a gente percebe que era preciso criar estratégias que possibilitassem a permanência do projeto. Uma delas é a construção da Biblioteca Maria Firmina dos Reis, em 2012, que no início se chama Mentes Livres. Ela se torna um instrumento de ampliação da leitura e instrumentaliza a remição de pena. Cada livro lido e resenhado por essas mulheres por mês, garante quatro dias a menos de remição de pena. 

R.A.: Que temas emergiram com mais força nas escritas das autoras do livro “Se Anastácia Falasse”? Há um traço comum ou uma pluralidade marcante?

D.C.: A biblioteca se chamou Mentes Livres até o bicentenário do nascimento de Maria Firmina dos Reis, em 2022, quando desenvolvemos um trabalho com o tema do abolicionismo e renomeamos para Biblioteca Abolicionista Maria Firmina dos Reis. Começamos a trabalhar com as obras dela e produzimos a primeira coletânea, chamada Firminas em Fuga, publicada pela Ogum’s Toques Negros com os poemas dessas mulheres. Esse é o primeiro volume da coleção, que a gente chama do Selo Editorial Abolicionista da editora Ogum’s. O segundo volume foi publicado como O Pacto de Bocapio. Ele recupera a performance Não Sou Bicho, Sou Mulher, e faz uma tradução dela a partir de um texto teatral. Agora vamos para a terceira, que se chama Se Anastácia Falasse. São pequenas histórias em formato de contos e crônicas que relatam o cotidiano dessas mulheres dentro da prisão. Elas narram os processos que as levaram até a prisão, a estadia sob tutela violenta do Estado e os desejos e projetos de futuro. São nove mulheres escritoras, como elas estão assujeitadas à violência carcerária, o traço comum é a denúncia, que vai compor o arquivo da memória da tortura contemporânea no Brasil dentro das prisões. Essa coletânea vai trazer temas como a relação com a comunidade, com a família, a saudade, o banzo, a melancolia, a trajetória de sofrimento, as memórias traumáticas de terem sido abusadas, a fé, a esperança, em luta pela liberdade. 

R.A.: O título evoca uma figura histórica emblemática. O que significou escolher “Anastácia” como símbolo dessa obra?

D.C.: A imagem da Anastácia amordaçada é familiar para toda sociedade e para a memória brasileira da escravidão. Mas para quem está encarcerada, essa figura é muito mais forte porque essas pessoas vivem o cotidiano do amordaçamento, da tortura. Então, no momento em que levo a figura de Anastácia para as oficinas, a gente começa discutindo a personagem histórica. Mas também os vários enredos que a transformam em uma guerreira, em santa, com poderes de cura, que associam Anastácia a figura de orixás como Obatalá e Omolu, aqui na Bahia.. Algumas das histórias do livro estão remetendo a essa hipótese de fabulação crítica. Se o espírito egum de Anastácia está conosco, vamos imaginar se ela falasse. O que ela teria para nos contar? Nesse processo, lembro de ter visto o Monumento à Voz de Anastácia, no Rio de Janeiro com minha filha, em 2022. O Yhuri Cruz tinha feito uma intervenção visual na imagem de Anastácia amordaçada, retirando a máscara de ferro e fazendo com que ela sorrisse. Em 2024, perguntamos se ele não gostaria de se somar a nós na empreitada de publicar esses escritos, fazendo a direção de capa, e ele aceita. E detalhe, como há muitas denúncias, todos os capítulos são organizados a partir de um pseudônimo para proteger as escritoras e propiciar que essas histórias sejam contadas. São elas: Aline França, Conceição Evaristo, Ruth Ducaso, Miriam Alves, Mel Adún, Carolina Maria de Jesus, Geni Guimarães, Cidinha da Silva, Jovina Souza e Maria Firmina dos Reis. 

R.A.: Como a senhora percebe a relação entre literatura, liberdade e abolicionismo penal no cotidiano das atividades do projeto? E como avalia a luta pelo abolicionismo penal no Brasil de hoje?

D.C.: Há 20 anos eu venho pesquisando essa relação. Eu entendo que dentro de um cenário de absoluta subjugação e brutalidade contra o corpo, a mente e o espírito, que é o cenário da pessoa que está encarcerada no Brasil (que é majoritariamente negra) existem poucas possibilidades de lutar pela manutenção da saúde mental, pela sobrevivência física e pela conexão espiritual à sua ancestralidade. Uma dessas formas é a leitura e a escrita. É a forma que propicia uma reconexão com as palavras, a linguagem, a identidade social, o axé das rezas, das cantigas, das danças para sua ancestralidade. Porque a gente pensa a literatura num sentido expandido, não é só o texto escrito, é também o corpo em movimento através das imagens, da música, da dança. É uma das formas possíveis de continuar lutando pela manutenção da humanidade dentro de um espaço de brutalidade. Mas também, do ponto de vista da circulação social da representação da pessoa criminosa, é importante que essas mulheres sejam deslocadas de suas imagens estereotipadas e de controle, como diria Patrícia Hill Collins, que as enquadram como delinquentes, animalizadas. Esse deslocamento acontece a partir do posicionamento delas como autoras, intelectuais e escritoras. Isso vai tensionando, para que o imaginário social brasileiro desconstrua a vinculação entre mulher negra, pobre e mulher criminosa e assujeitada à brutalidade masculina e do Estado. Essas mulheres pensam, escrevem, são criadoras, têm projetos de futuro e uma imaginação política. Elas também são sujeitas de direitos nessa sociedade em que a gente vive para além das prisões. 

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