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Brasil enfrenta retrocessos no aborto enquanto desigualdades raciais ameaçam a saúde reprodutiva de mulheres negras

No Dia Latino-Americano e Caribenho de Luta pela Descriminalização e Legalização do Aborto, o Brasil se destaca pelos retrocessos que ampliam desigualdades
Colagem: Patricia Rosa

Por Patrícia Rosa e Késsia Carolaine

Mais de 30 anos após a criação do Dia Latino-Americano e Caribenho de Luta pela Descriminalização e Legalização do Aborto, o Brasil ainda enfrenta uma série de retrocessos acerca do tema. A data foi instituída no ano de 1990, na Argentina, durante o V Encontro Feminista Latino-Americano e do Caribe. O 28 de setembro foi criado para se tornar um marco na luta pelos direitos reprodutivos das mulheres e pessoas que gestam.

Enquanto países como Cuba, Uruguai, Argentina, Colômbia e Guiana Francesa já asseguram o aborto legal e seguro, o Brasil continua preso ao conservadorismo. Além de criminalizar a interrupção voluntária da gestação, acumula projetos de lei que tentam restringir ainda mais o pouco acesso existente e ignora políticas públicas de justiça reprodutiva. 

Mariane Marçal, que é assistente de coordenação de projetos e incidência política da ONG Criola, enfermeira obstétrica, sanitarista e mestre em Relações Étnico-Raciais, destaca a importância da luta pelos direitos reprodutivos e socioeconômicos das mulheres negras, como forma de garantir acesso e dignidade.

“A luta por esses direitos é essencial, porque envolve garantir saúde, dignidade e escolhas com liberdade. No Brasil, garantir a saúde significa enfrentar diversas injustiças profundas que afetam especialmente mulheres negras, pobres e periféricas.”

Imagem: Fernando Frazão/Agência Brasil
Um Congresso que, há décadas, projeta controlar os corpos das mulheres

No período de 2015 a 2025, pelo menos uma dezena de projetos de lei foram apresentados no Congresso Nacional tratando da questão do aborto, a maioria deles com o intuito de restringir qualquer acesso ao procedimento. Entre eles estão o PL 1904/2024, conhecido como “PL do Estupro”, que equipara o aborto após a 22ª semana ao crime de homicídio. Além do projeto de Lei 5069/2015, de autoria do então deputado Eduardo Cunha, que exigia que a mulher apresentasse boletim de ocorrência e passasse por exame de corpo de delito para ter acesso ao atendimento médico. Já a PEC 164/2012, conhecida como “PEC da Vida”, que voltou à tona em 2024, propõe a proibição do aborto em qualquer circunstância.

Luana Souza, ativista do Nós por Nós – Observatório de Justiça Reprodutiva do Nordeste, ressalta que o Brasil vive um enorme retrocesso nos últimos anos, com o crescimento da bancada de extrema direita Frente Parlamentar Evangélica (FPE) na Câmara dos Deputados, composta por 219 deputados. 

“A gente não pode perder de vista como esse crescimento do legislativo a partir de pautas antiaborto faz com que tenha uma maior fragilidade nas conquistas que já alcançamos.”

Grande parte desses projetos têm algo em comum: são de autoria de parlamentares homens e brancos. Em contrapartida, as principais atingidas pela falta de políticas públicas que conceda o direito a justiça reprodutiva e que legalize o aborto são meninas e mulheres negras. Segundo o Dossiê Mulheres Negras e Justiça Reprodutiva, publicado pela ONG Criola, houve 209.520 internações por aborto, entre os anos de 2020 e 2021. Desse total, 52.142 (24,89%) eram mulheres brancas, enquanto que as mulheres negras representaram 100.520 (47,98%). Em relação ao óbito, 73 mulheres morreram, sendo que 13 (17,81%) eram brancas e 33 (45,21%) mulheres negras.

“Isso é um retrato cruel da desigualdade racial e das violências históricas enfrentadas por mulheres negras, desde o processo de escravização. Não é coincidência, é consequência de um sistema que discrimina, inviabiliza as vidas e as vozes de mulheres negras. O acesso à saúde reprodutiva é negado de forma sistemática para mulheres negras”, avalia Mariane.

Mariane Marçal, assistente de coordenação de projetos e incidência política da ONG Criola, enfermeira obstétrica, sanitarista e mestre em Relações Étnico-Raciais – Imagem: Arquivo Pessoal
Quem protege as meninas negras?

Além da falta de acesso a saúde básica, mas principalmente, a reprodutiva, as meninas e mulheres negras continuam sendo as maiores vítimas de abuso sexual no Brasil. Dados apresentados na 19ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2025, revelaram que houve 87.545 casos de violência sexual em 2024. Desse total, 48.675 (55,6%) foram contra mulheres e meninas negras. O estudo também revela que o maior índice de estupros de vulneráveis da história, desde que as edições do anuário passaram a ser divulgadas, tem meninas negras com idade entre 10 e 13 anos como maiores vítimas .  

Mesmo com a lei que garante às vítimas de violência sexual o direito de realizar um aborto, o acesso a esse procedimento ainda é marcado por burocracias e barreiras, mesmo quando a vítima é menor de idade. Um caso emblemático ocorreu em 2020, envolvendo uma menina de 10 anos, moradora de São Mateus (ES), que engravidou em decorrência de estupro cometido pelo tio. Encaminhada a um hospital em Vitória (ES) para realizar o aborto, garantido pela legislação brasileira, ela teve o pedido negado. 

O procedimento acabou sendo realizado em Pernambuco, em meio a forte pressão popular e até mesmo de profissionais de saúde contrários à sua realização. Vale lembrar que no Brasil, o aborto é permitido em casos em que a gravidez é consequência de um abuso sexual, quando há riscos de saúde para a gestante e/ou em casos em que o feto é anencéfalo (não possui cérebro). 

“O Estado não garante minimamente a segurança dessa menina para evitar o abuso e não protege nossas meninas negras. Quando a gravidez chega, ou quando se fala em aborto, a violência já está marcada”, reflete Luana Souza.

Luana Souza, ativista do Nós por Nós – Observatório de Justiça Reprodutiva do Nordeste – Imagem: Arquivo Pessoal

Ela destaca ainda que, o Estado falha com as meninas negras, tanto na proteção contra violências sexuais quanto no acesso a direitos básicos.  

“É necessário que a educação sexual, integral da sexualidade, seja de fato um dispositivo, uma estrutura de garantia para que nossas meninas consigam construir um futuro sem abuso, compreendendo quais são os limites do consentimento e entendendo seu direito sobre o próprio corpo.”

A ativista alerta que a culpabilização dessas meninas, o tabu, a moralização, a negligência e a negação de direitos legais fazem do aborto uma questão grave de saúde pública, evidenciando desigualdades estruturais que ameaçam suas vidas e dignidade.

A precarização do acesso a serviços de saúde e, em especial, à saúde reprodutiva, é ainda mais evidente nas zonas rurais. Na sua atuação pelo programa Nós por Nós – Observatório de Justiça Reprodutiva, em cidades do interior da Bahia, Luana alerta para a grande lacuna de desinformação e de serviços capazes de garantir os direitos reprodutivos dessas mulheres.

“Se a gente já entende que, para as mulheres negras periféricas, o acesso legal ao aborto é praticamente nulo, imagine quando pensamos nos territórios quilombolas ou em áreas rurais: é inexistente esse processo. Para que uma mulher consiga minimamente dimensionar essa possibilidade, ela precisa enfrentar uma série de violências”, aponta.

Quem olha pelas mulheres negras?

Um estudo realizado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) coletou informações de 21 mil mulheres entre 2020 e 2023 em 465 maternidades no Rio de Janeiro, onde a taxa de mortalidade materna é elevada. Dentre as informações coletadas, concluiu-se que adolescentes ou mulheres acima dos 35 anos, negras, usuárias do Sistema de Saúde (SUS), com baixa escolaridade, são as que mais sofrem violência obstétrica. 

Segundo o relatório do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS), entre 2014 e 2019, apenas 6 em cada 10 mulheres negras tiveram acesso ao pré-natal. Além disso, até o ano de 2019, cerca de 81,2% das mulheres brancas tiveram acesso a uma assistência adequada, em desvantagem, apenas 67,8% das pacientes negras tiveram a mesma qualidade no atendimento. A negação de acesso aos exames necessários e a consultas preventivas apenas demonstra como o racismo já se estabeleceu na área da saúde, como afirma Mariane Marçal. 

“É um retrato cruel da nossa desigualdade racial e das violências e violações que são historicamente enfrentadas por corpos negros, por mulheres negras, desde o processo de escravização. Isso não é uma coincidência, é uma consequência desse sistema que discrimina, que inviabiliza as nossas vidas, que invisibiliza, inclusive, as nossas vozes também.”

A enfermeira obstétrica alerta que a falta de acesso a consultas preventivas, realização de exames necessários e um pré-natal de qualidade revela a atuação do racismo na saúde. “Isso revela o quanto o acesso de mulheres negras e brancas é desigual. Para mim, também evidencia a violência e o racismo obstétrico, que encontram sua máxima expressão nos óbitos maternos.”

Reparação e Bem-Viver também é Justiça Reprodutiva

No dia 25 de novembro, acontece em Brasília (DF) a Marcha das Mulheres Negras por Reparação e Bem-Viver. Ao falar de bem-viver para mulheres negras, tanto Luana quanto Mariane falam que é preciso que a justiça reprodutiva também seja pauta, para que as futuras gerações de meninas negras tenham uma vida plena. A Marcha também é significado de comunhão entre as mulheres, como afirma Mariane. “Acredito que o conceito de bem-viver rompe com a lógica individualista, patriarcal, capitalista e valoriza o cuidado comunitário, a continuidade da vida e a dignidade coletiva.” 

Para Luana, a Marcha nos convoca à ação, para que o bem viver seja pensado também, a partir da justiça reprodutiva. “Quando marchamos, mostramos nossa indignação, mas também construímos um caminho pelo nosso bem viver e pelo das nossas meninas negras, projetando um futuro em que a educação, o acesso à informação e o direito ao aborto sejam possíveis para nós”, finaliza.

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