Por Camila de Freitas Santos da Silva*
A escrita deste artigo nasce de um lugar simbólico e sensível: um chamamento a todas as mulheres do Brasil — meninas, garotas, jovens, adultas, idosas — para a inserção nesta etapa final de construção da Marcha das Mulheres Negras. Esta mobilização ocorre em escala global, nacional, estadual, regional e local, com a organização de caravanas rumo a Brasília, no dia 25 de novembro de 2025.
Trata-se de um movimento que reafirma a potência das mulheres negras enquanto sujeito político coletivo, mobilizando diferentes gerações em torno da luta por Reparação e Bem Viver.
Enquanto mulheres marchantes, a democratização do acesso à informação, articulada à formação política coletiva e diversa, é um compromisso ancestral e um dos nossos maiores desafios. O calcanhar de Aquiles está justamente na difícil tarefa de organizar as múltiplas vozes e experiências femininas, respeitando suas vivências e interseccionalidades, e dando a elas visibilidade nos diversos territórios e contextos sociais, políticos e históricos. Em períodos de grande desenvolvimento tecnológico, o desafio é construir pontes de comunicação que acolham a pluralidade e transformem a escuta em ação política.
Nesse sentido, a desigualdade no acesso aos meios de comunicação — seja pela internet, rádio, televisão ou pela comunicação oral — evidencia uma barreira que precisa ser enfrentada com urgência. Em um país de dimensões continentais e desigualdades estruturais profundas, muitas mulheres ainda permanecem à margem da circulação de informações essenciais para sua formação cidadã e participação política. Essa exclusão comunicacional reforça o silenciamento histórico que a Marcha busca romper.
Diante disso, eu, enquanto mulher negra, estudante, feminista interseccional e construtora do Comitê Impulsionador Portal do Sertão, sinto-me na posição de compartilhar expertises e aprendizados acumulados nos últimos meses, especialmente a partir do diálogo com as mais velhas.
No ano de 2025, celebramos uma década desde a uma década desde a última grande articulação da Marcha das Mulheres Negras, consolidada sob o lema “Contra o racismo, a violência e pelo Bem Viver” — pautas de imensa relevância histórica para o povo negro organizado.
Ao revisitarmos os documentos da última Marcha (2015), a centralidade dos eixos de luta permanece inegável. Eles estruturaram as pautas mais relevantes para o povo negro, abrangendo o direito à vida e à liberdade, a promoção da igualdade racial, o direito ao trabalho e à proteção das trabalhadoras, o acesso à terra, território e moradia, a justiça ambiental, a defesa dos bens comuns, o direito à seguridade social (saúde, assistência e previdência), à educação, cultura e comunicação, e à segurança pública.
Em cada um desses eixos, reside uma denúncia de caráter histórico e sistêmico: nós, mulheres negras e diversas, fomos colocadas, de maneira estratégica, às margens do acesso aos direitos sociais básicos — à vida, à dignidade e à própria humanidade. Contudo, essa marginalização perversa não nos tirou do cenário; paradoxalmente, fomos empurradas para o centro da luta e de sua construção.
Para analisar essa complexidade, o conceito de Interseccionalidade, discutido por autoras como Crenshaw (1989), Akotirene (2019) e Collins e Bilge (2021), torna-se uma ferramenta analítica essencial. Ele permite compreender como categorias sociais como raça, classe e gênero se articulam na constituição das experiências humanas, evidenciando a manifestação simultânea e interdependente das opressões.
Nessa encruzilhada, enquanto mulheres negras, somos atravessadas por dois marcadores estruturais de violência e de múltiplas opressões. Essa análise é fundamental, pois reafirma a existência e prevalência de um projeto político que historicamente nos nega o direito à alimentação, à moradia, à educação, à saúde, à segurança pública, ao trabalho reconhecido e remunerado, à autonomia e decisão sobre nossos corpos, à participação plena na política e, crucialmente, o direito ao amor — entendido como uma esfera vital de construção e identificação consigo, com o outro e com o coletivo.
Neste caminho de construção da Marcha de 2025, busco oferecer, de forma didática, caminhos interpretativos para a Reparação e o Bem Viver. Estas reflexões são nutridas pela oralidade das mais velhas e pelos espaços formativos dos Comitês.
Nesse sentido, considero o Bem Viver como uma prática de sabedoria ancestral que orienta nossas vidas, corpos e vozes. Ele dita a forma como pautamos a vida coletiva, as vivências de nossos afetos, do amor e a organização de nossas frentes políticas e de militância.
Este projeto não se limita à existência das mulheres negras, mas propõe um novo modo de vida para toda a sociedade, livre de racismo e exploração, fundamentado na dignidade, no acesso a direitos, na justiça e na equidade. Busca superar a prevalência das violências, considerando a alta incidência de assassinatos e agressões sofridas por companheiras, e visa, portanto, uma vida segura, plena e marcada pela liberdade e pelo respeito mútuo.
O Bem Viver é um novo formato de gestão e vivência da vida coletiva e individual. Ele define como nos relacionamos com a natureza, o território, os corpos, a sexualidade, os mais velhos e os saberes tradicionais, e como preservamos nossa cultura e existência. Nesse processo, reconhece nossa diversidade plural, os desafios territoriais, as carências e necessidades, e coloca o autocuidado como um ato político e coletivo.
Portanto, o Bem Viver reivindica liberdade para nossos corpos e mentes, confronta todas as formas de opressão — violência, preconceito, racismo, homofobia, fascismo — e exige políticas públicas que garantam acesso, permanência, democracia, escuta e respeito à diversidade religiosa e cultural. Viver o Bem Viver carrega consigo a possibilidade de marchar firmemente por diversos territórios — dos quilombos às periferias — construindo caminhos que abram oportunidades para ser o que se é e o que se quer ser, viver de forma plena e saudável, experienciar o amor, escolher e aprender, e, sobretudo, deixar ensinamentos para aqueles que virão depois.
O conceito de Reparação caminha em busca de justiça histórica e social, exigindo o enfrentamento direto ao racismo estrutural, à misoginia e a todas as formas de opressão que ferem a dignidade das mulheres negras e grupos marginalizados.
Politicamente, a Reparação evidencia as consequências de um sistema historicamente desigual. O genocídio da população negra ilustra que a morte não se limita à violência direta; ela se manifesta também pela ausência de políticas públicas em áreas vitais como educação, saúde, alimentação e segurança. A falta de direitos básicos também mata.
Nesse sentido, reparar significa transformar. Implica repensar as políticas públicas para garantir direitos, oportunidades, autonomia, e construir um futuro digno. Um exemplo cotidiano é o caso da Lei de Cotas: embora tenha garantido o ingresso de pessoas negras na universidade, a reparação plena exige a permanência digna. É crucial oferecer assistência estudantil completa (moradia, alimentação, apoio psicológico) para que a educação se consolide como um instrumento real de transformação.
Mesmo com avanços conquistados pelas mobilizações sociais, as falhas persistem: jovens negras e negros continuam morrendo pela fome, violência e ausência de direitos. A Reparação exige, portanto, não apenas o acesso, mas um compromisso contínuo com a equidade, que considere a diversidade territorial e as necessidades históricas, transformando a justiça social de um ideal em uma prática concreta.
Concluo este artigo reafirmando que as mulheres negras seguem em marcha. Seguimos porque acreditamos que apenas por meio da auto-organização coletiva, da escuta e do diálogo com as diversas mulheres — em suas múltiplas identidades, territórios e saberes — poderemos construir a Reparação e o Bem Viver.
Marchamos porque sabemos que nossos sonhos, ancestralidade e expertises, transmitidas pela oralidade, pelo encontro, pelas práticas de cuidado e pela lógica do afeto, são essenciais para a reconstrução social, em defesa da vida e da dignidade das mulheres negras, do povo negro e de nossas comunidades.
Marchamos porque outro caminho não nos foi ensinado. Somos historicamente responsáveis pela luta, e a assumimos com coragem e afeto. Marchamos porque, apesar das conquistas alcançadas, ainda há muito a ser feito. Marchamos por todas as garotas, meninas, jovens, adultas e idosas que virão e viverão — para que encontrem um mundo mais justo.
Marchamos pela vida, pela autonomia sobre nossos corpos, pelo direito de decidir e de escrever nossas próprias histórias. Pois é na escrita, na fala, na troca coletiva e na transmissão de saberes que nos encontramos, nos fortalecemos e nos reorganizamos para enfrentar as injustiças.
Marcho dos quilombos às periferias, pelo presente e pelo futuro, por todos os direitos que nos foram negados e pelos caminhos que ainda precisam ser trilhados. Eu marcho como resistência, como dívida ancestral e pelo compromisso com a vida, porque a luta das mulheres negras é, desde sempre, a luta de toda a sociedade. Seguiremos em marcha até que todas sejamos livres.
Organize-se, busque informações junto ao Comitê do seu estado, região ou localidade. Vamos construir juntas uma marcha forte e linda pelas ruas de Brasília!
*Mulher e negra, estudante de Psicologia pela Universidade Estadual de Feira de Santana. Atualmente, é Diretora de Mulheres da União dos Estudantes da Bahia e Conselheira Estadual de Juventude no segmento de Jovens Feministas.


